Educar para formar sujeitos históricos

No Brasil, entre jovens de 17 a 19 anos apenas 49% tem acesso ao nível médio. No campo, o número, que já era baixo, cai para 12%. Como mudar essa realidade? Esse é dos temas comentados pelo professor Gaudêncio Frigotto, do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na entrevista abaixo.

Qual é a diferença entre educação para o campo e educação do campo?

Gaudêncio Frigotto: Esta diferenciação, quem a traz é um processo de reflexão dentro do próprio Movimento Sem Terra. Historicamente sempre se pensou uma educação sem sujeitos no campo. A primeira idéia é a do Extensionismo, isto é, estender o conhecimento aos trabalhadores e trabalhadoras do campo como se eles fossem desprovidos de conhecimento, de história, de cultura, de saberes, etc. A segunda idéia vem do Ruralismo pedagógico, que está articulado a este Extensionismo: é a idéia das cartilhas para os alunos e alunas do campo numa perspectiva de um conhecimento restrito, ou seja, uma educação para adaptá-los a trabalharem como colonos, como pequenos agricultores, já que os filhos e as filhas dos grandes proprietários, dos latifundiários iam estudar na cidade, no exterior.

De onde vem essa forma de entender a educação?

Frigotto: É uma forma dialética, resultado da relação entre colonizador e colonizado. Ela vem do processo histórico nosso de país. A própria palavra colono se refere àquele que trabalha na terra do outro ou que produz com a cultura e com o saber do outro.

Historicamente esse é o pensamento dominante na sociedade brasileira, ou seja, que a educação no campo é uma educação menor, é uma educação para pessoas rudes. O que significa a ruptura? Essa ruptura se dá porque a um dado momento o capitalismo entra no campo e cria o agronegócio, ampliando o latifúndio. Esse fenômeno abrange hoje quase quatro milhões de famílias no campo, aproximadamente 20 milhões de pessoas, que é o MST.

Nos últimos dez anos, o Movimento teve um avanço enorme em pensar a educação brasileira. Qual é esta mudança? É que a escola e que os processos educativos que se dão nela não começam nela. Esta é a tese da Roseli Caldart, autora do livro Pedagogia do MST, muito bonita, muito consistente. Elas começam na sociedade e estão voltadas para a sociedade. A escola faz parte de um conjunto de relações sociais constituídas e constituintes dessa sociedade. Então a educação para o campo tem essa idéia de estender o conhecimento, de fora para dentro. E a educação do campo se traduz como “aqui há sujeitos, aqui há história, aqui há memória, aqui há singularidades e particularidades, produção de conhecimento, etc”.

O ponto em que se está hoje no debate – e acho que o Movimento avançou em cima disso – é que também nós não podemos parar nesta singularidade do ser do campo. Ele é ponto de partida e ponto de chegada, mas nós temos que permitir a este jovem, a esta criança ir agregando elementos de universalidade a esta sua singularidade, de sujeito do campo, do trabalhador do campo. Ele tem que ter acesso e contribuir para o conhecimento universal. Ele tem o conhecimento para contribuir. Ele não quer estender, mas ele quer partilhar isso.

Aí é que está importância da relação entre a cultura, o trabalho, a história, a memória e um desenvolvimento que dialogue com os demais grupos sociais. O MST não está fechado nele. Ele dialoga com o movimento dos trabalhadores do campo. Tem um diálogo com aqueles que lutam por uma mudança da sociedade e esta é uma luta mais universal.

Qual é o quadro da educação no campo em geral?

Frigotto: No Brasil, entre jovens de 17 a 19 anos apenas 49% têm acesso ao nível médio. Quase 70% é noturno. No campo, só 12% têm acesso. E mesmo assim, uma parte estuda na cidade. Nas áreas de Reforma Agrária não tem nível médio. A maior parte do ensino médio que se encontra por aí são as escolas agrotécnicas, em que aparecem alguns alunos que são de assentamentos.

Como reverter esse quadro?

Frigotto: O Movimento está agora diante dessa segunda fase do governo Lula e está ciente de que sem luta, sem organização, mesmo tendo um presidente de dentro da classe trabalhadora, não tem garantia. Há uma pressão dos grandes grupos econômicos para garantir os seus ganhos. O MST, e os movimentos sociais de forma geral, estão nesse momento buscando a cobrança de que haja uma mudança nessa política para que haja recursos para expandir e criar escolas. E não basta criar o prédio. No Brasil há um déficit enorme de professores. Apenas no nível médio faltam cerca de 150 mil professores. E o Movimento não quer quaisquer professores. Ele quer professores que não reproduzam os velhos sistemas da Educação para o campo, que trabalhem os processos sociais no campo e construam os processos pedagógicos. A luta é concomitante. Primeiro para criar, nos assentamentos da Reforma Agrária, escolas de ensino básico completo. Fazer valer o preceito constitucional e da própria LDB (Lei de Diretrizes e Bases).

Em uma outra entrevista, o sr. falou que é negado às classes populares o direito á educação ou então se oferece uma escola de “adestramento” ao patronato e ao capital. Essa é uma prerrogativa das classes mais baixas ou está se estendendo à educação como um todo?

Frigotto: Essa mentalidade mercantil, reducionista da educação atinge todas as faixas, mas atinge de forma diferente. Porque de um modo geral os filhos de classe média e alta estudam em escolas confessionais ou escolas privadas que têm uma mentalidade mercantil, mas, pelo menos, ainda oferecem o acesso à cultura, ao conhecimento. Quem é mais atingido sem dúvida são as classes populares porque quem educa as classes populares é a escola. Um dado q aparece nesse senso escolar 2006 que a imprensa está divulgando é extremamente elucidativo disso: como nós des-educamos os jovens para fazer uma educação do atalho, que é muitas vezes reducionista, tecnicista, adestradora.

Houve uma queda de 94% no número de matrículas de jovens no ensino médio em 2006 em relação a 2005. Entretanto, quando nós vamos ver a educação de jovens e adultos em nível médio, o antigo supletivo de nível médio, nós vamos encontrar um aumento de 114%. Provavelmente isso significa que estes 94% que antes estudavam no nível médio ou que iam fazer o nível médio regular migraram para o nível médio mais rápido. É a filosofia que se passa de que o imediato é mais importante e com isso há mais ganho.
Só que esse jovem está despreparado para enfrentar o mundo da produção e da competição capitalista e também para entender-se como sujeito, como protagonista, para poder se organizar.

É uma dupla mutilação: o jovem não está atualizado em bases científicas e técnicas, para atuar na roça, para usar o agrotóxico sem prejudicar a sua saúde, para tirar o leite com higiene, etc; e é lesado na sua cidadania.