Pela Soberania Alimentar dos Povos

Por Sebastian Valdomir REDES - Amigos da Terra - Uruguai Para o dirigente do MST e da Via Campesina, João Pedro Stedile, o Fórum de Soberania Alimentar que aconteceu no final de fevereiro em Mali, na África, foi um importante momento na articulação entre redes internacionais e movimentos sociais que tem um objetivo comum: conquistar a soberania alimentar.

Por Sebastian Valdomir
REDES – Amigos da Terra – Uruguai

Para o dirigente do MST e da Via Campesina, João Pedro Stedile, o Fórum de Soberania Alimentar que aconteceu no final de fevereiro em Mali, na África, foi um importante momento na articulação entre redes internacionais e movimentos sociais que tem um objetivo comum: conquistar a soberania alimentar.

“O Fórum está dando resultados concretos, articulando atores sociais e deixando um conceito coletivo muito mais amplo do que tínhamos até agora sobre soberania alimentar”, destaca Stedile. Em entrevista, o dirigente camponês fala sobre alguns dos temas de discussão no Fórum, como os combustíveis feitos com base agrícola e o diálogo entre movimentos sociais e governos.

Qual é a avaliação inicial do Fórum de Soberania Alimentar?

O Fórum pela Soberania Alimentar de Mali teve uma importância política muito grande por vários aspectos. Primeiro porque representou um passo maior na articulação de redes internacionais e de setores sociais que fazem seu trabalho nesta grande luta contra o neoliberalismo, mas que não tinham um espaço próprio. O Fórum Social Mundial tem outro caráter. É um espaço que se parece mais com uma “feira de idéias”; já o Fórum de Mali se propôs a reunir essas redes para buscar ações concretas.

Desta maneira nós conseguimos juntar, durante estes dias, os movimentos que integram a Via Campesina, pescadores, pastores, a Marcha Mundial de Mulheres, povos indígenas, ambientalistas e alguns outros setores urbanos. O mais importante é que conseguimos reunir estas redes setores sociais. O tema soberania alimentar, mesmo estando presente nos pensamentos filosóficos de quase todas as correntes políticas e ideológicas (como na obra de José Martí e Mariátegui), não conseguiu emplacar na esquerda em geral, que não o assimilou como uma bandeira política importante.

Os problemas da fome e da pobreza no campo, a falta de mercado para produtos agrícolas de camponeses, ficaram mais evidentes e se multiplicaram nos últimos 30 anos, coincidindo com a revolução verde e com a intensificação do neoliberalismo. Neste Fórum acredito que demos um grande passo sob o ponto de vista teórico e político. Este processo de unidade levou também a construir um conceito mais amplo e preciso sobre o que é, de fato, a soberania alimentar.

Quais os avanços do ponto de vista conceitual e teórico neste processo?

Existia uma concepção genérica de soberania alimentar como direito dos povos a produzir seus próprios alimentos. Acrescentamos que é também um dever. Porque toda a população que deseja ser livre e autônoma tem a obrigação de gerar seus próprios alimentos. Portanto, é mais do que um direito, é uma determinação, uma condição política. Por isso, nós passamos a aplicar este conceito em todos os espaços territoriais: países, regiões, cidades e comunidades. Neste ponto, outro avanço foi o entendimento de que a soberania alimentar somente será possível se acontecer em paralelo com a soberania política dos povos que tenham condições políticas para exercer a autonomia dos seus territórios ou sobre o Estado para que este possa aplicar políticas que gerem autonomia na produção de alimentos.

Por último acredito que avançamos no conceito de destacar a necessidade de se utilizar técnicas agrícolas que respeitem o meio ambiente, ou seja, que aumente a produtividade e autonomia de uma forma saudável, preservando a natureza para as futuras gerações.

Para concluir, o Fórum está dando resultados concretos, articulando atores sociais e deixando um conceito coletivo muito mais amplo do que tínhamos até agora sobre soberania alimentar.

Quero tocar no tema de organização porque se percebeu no Fórum, que a Via Campesina é muito mais diversa neste ponto. Nós aqui na América Latina temos uma maturidade organizativa que não existe em outros continentes.

Isso é parte de uma realidade que vem de 15 anos de neoliberalismo e do fato de que a maioria dos países do sul ainda não chegou à fase de industrialização de suas economias. Do ponto de vista político, mesmo quando não há consensos em certos temas, também evoluímos no debate sobre os inimigos que impedem a soberania alimentar dos povos e dos países.

Identificamos que, dentro do neoliberalismo, as empresas transnacionais, que são em torno de 20, controlam toda a cadeia de produção alimentar: sementes, agrotóxicos, comércio agrícola, agroindústrias e comércio internacional. No Fórum houve um acordo de que estas empresas são nossas inimigas. Isso não esteve em nossas reuniões políticas anteriores. Outro ponto é que os governos neoliberais também são obstáculos, porque quando os governos nacionais se aliam ao imperialismo passam a promover políticas que interessem ao capital internacional.

Para ser honesto com a discussão, se no conceito temos um consenso, politicamente não há concordância. Há uma opinião majoritária, mas algumas redes ambientalistas e Ongs identificam como solução do problema um comércio justo, nas pequenas experiências locais. Isso pode resolver o problema de comunidades ou de pequenos produtores, mas não combate o sistema em si.

E na conjuntura atual, qual é o peso destas redes e ONG na composição atual da Via Campesina?

Na Via Campesina não têm influência, mas em um ambiente como este, e até mesmo no próprio Fórum Social Mundial tem. Acredito que as Ong são de muitos tipos: amigas, aliadas e comprometidas. Mas infelizmente, muitas são entidades oportunistas. Nos últimos anos, algumas delas foram cooptadas por governos ou organismos como o Banco Mundial, que investiram muito dinheiro nelas. Por isso, acabam exercendo uma grande influência ideológica nas sociedades e países onde o povo está mais desorganizado.

A rigor, na luta geral por mudanças na sociedade, na balança da luta de classes, para usar uma antiga terminologia, pesa a correlação de forças, ou seja, quantas pessoas conseguem se organizar para um objetivo político. As Ongs nunca vão se propor (e não é seu trabalho) a organizar o povo para alcançar objetivos políticos. Do ponto de vista político elas não têm força e é por isso que a classe dominante não se preocupa com elas

Agora, do prisma da luta ideológica, aí sim acredito que têm influência razoável, não na Via Campesina, mas sim nos países que vivem esta crise da organização popular. Em época de crise a confusão se instala, quando idéias oportunistas e individualistas propõem falsas saídas.

Como ficou o movimento latino-americano e como eles foram representados nos documentos finais?

Nós na América Latina temos uma unidade muito grande entre os movimentos sociais. Existe uma grande articulação entre os camponeses e também com outros setores como os ambientalistas, as mulheres. Isso ajuda muito. Creio que os asiáticos também têm uma boa unidade.

A África é um desafio grande porque é um continente muito espoliado, roubado, criminalizado e explorado, que sofre todas as maldições do capitalismo e do imperialismo. No continente quase não existe organização popular e as que existem são de caráter localizado, talvez pela tradição tribal e também pela influência de Ongs européias que surgem com idéias colonizadoras que pouco contribuem para a auto-organização dos movimentos africanos.

Porém, no conjunto do Fórum, os latinos (por ter esta unidade que mencionei) tiveram uma grande influência e, em geral, todos nós aprendemos com este intercâmbio. Nós saímos daqui com alguns conhecimentos que não tínhamos e que podem enriquecer nossa prática quando retornarmos aos nossos países.

Os movimentos na América Latina adquiriram a experiência de trocar pontos de vista com os governos. Como devem proceder agora as organizações sociais: vão manter o diálogo com os governos ou irão recorrer às Nações Unidas para apresentar uma iniciativa de declaração especial sobre soberania alimentar?

São dois aspectos diferentes. Uma coisa é a política dos movimentos sociais frente a qualquer governo, sejam progressistas, de centro ou de direita. Eu acredito que se deve manter a política que se mostrou correta que é uma espécie de autocrítica em relação à experiência da 3ª Internacional dos partidos comunistas clássicos e que mantiveram aos movimentos como correias de transmissão entre governo e base.

A esquerda mais contemporânea desenvolveu a idéia de que os movimentos sociais devem se manter autônomos dos partidos e dos governos. Acredito que essa autonomia deve ser preservada e que é uma condição de sobrevivência das organizações sociais. A autonomia permite então que os movimentos tenham um relacionamento independente com governos, seja de pressão ou de diálogo, dependendo da situação em cada país. Para construir um projeto político comum é preciso unir forças.

Isto não pode ser alterado mesmo com os governos progressistas, já que eles próprios precisam da mobilização das massas para realizar as transformações que querem implementar. O caso de Chávez na Venezuela é típico: seu governo está mais avançado que os movimentos sociais. Ele lança as propostas de mudança, mas falta ainda a capacidade organizativa das organizações sociais para impulsioná-las. Deveríamos estar mais adiantados do que todos os movimentos para fazer pressão. Mas, mesmo na América Latina, onde tivemos mudanças e governos progressistas, ainda não temos uma ofensiva do movimento de massas.

Outro aspecto é a nossa política com relação ao governo da Venezuela. O presidente Chávez se deu conta de duas coisas no processo do país: em primeiro lugar que o estado burguês do país ainda não permite no espaço de tempo de 8 anos, transformar a essência do Estado. Por isso, muitas medidas políticas que o governo adota o Estado as boicota.

A Venezuela é o país latino-americano que talvez esteja mais longe de aplicar a soberania alimentar, porque mesmo que eles incorporem o conceito, na prática o país ainda depende da importação de mais de 80% dos alimentos que consome. Isso é culpa do modelo econômico petroleiro dependente imposto ao povo venezuelano ao longo do século 20. Portanto, é provável que seja o país mais frágil neste aspecto. O governo sabe disso, por isso que pediu apoio da Via Campesina da América Latina. Em Mali, todos os movimentos presentes se comprometeram a ajudar o povo da Venezuela a impulsionar as transformações estruturais na agricultura com o objetivo de acelerar o processo de autonomia de produção de alimentos.

Há três temas que estiveram presentes nas discussões do Fórum, mas que não foram para o debate central e, pelo que se sabe, irão marcar a agenda dos próximos anos que são os biocombustíveis, as ações dos movimentos diante à questão ambiental e os transgênicos, principalmente relacionado às sementes Terminator.

Estes foram temas citados e, na América Latina, existem algumas redes, incluindo a Via Campesina, que aprofundaram estes temas. É claro que a questão dos desastres ambientais está ocorrendo em todos os países latino-americanos. Como morador da cidade de São Paulo, assisti este verão a catástrofes semanais. Gente morrendo em decorrência da chuva na maior cidade do hemisfério sul. Isso é inadmissível. Praticamente em todas as semanas acontecia um temporal. É evidente que isso não é normal, mas sim conseqüência do aquecimento global e das modificações no clima. Porém, não existe ainda na sociedade brasileira (e em geral) um debate político basicamente porque os meios de comunicação são controlados pelas classes dominantes.

Em relação aos temas dos biocombustíveis, foi muito interessante o fato de se ter relacionado esta questão com reflexões que agora devemos levar para nossos países, sobretudo aqueles que estarão à mercê das ações das transnacionais, como é o caso do México, Argentina, e Brasil. Nestes países, as transnacionais têm a capacidade operativa de transformar grandes áreas produtivas para a produção de biocombustíveis. No Fórum avançamos na construção de um novo conceito: não chamar de biocombustíveis, mas sim de agro-combustíveis. A primeira expressão é incorreta porque seria um combustível feito com vida. Mas vida tem um conceito muito amplo. Agora nós temos que começar a adotar uma forma correta de chamar os combustíveis energéticos feitos a partir de vegetais e de produtos agrícolas.

O segundo ponto que avançamos foi a necessidade de promover o debate de uma nova matriz energética para os transportes, que é o maior causador de contaminação e o maior consumidor de petróleo. Esta discussão é fundamental. Não adianta nada discutir como produzir álcool mais barato, se a indústria automobilística continua fabricando esta grande quantidade de carros, mesmo que sejam movidos a álcool. É importante também que estejamos a favor da produção de energia a partir de produtos agrícolas, mas que isso não substitua a produção de alimentos e que não utilize produtos alimentícios, como a soja ou o milho.

Por fim, entendemos que, se é importante ter energia renovável como o agro-combustível – que pode ser cultivado todos os anos – é fundamental que esta produção seja sustentável. O agronegócio pode produzir soja, cana, amendoim, algodão para energia, mas o fará de forma insustentável, baseado no agrotóxico e na monocultura. Aspectos que trazem conseqüências perversas como o aquecimento global. Todos estes debates ainda são embrionários, mas saímos daqui com algumas reflexões que vão servir para ter uma melhor compreensão de como tratar o tema dos agro-combustíveis.