Milho transgênico: desfile de argumentações e dúvidas no ar

Maurício Hashizume
Agência Carta Maior

Dois dias antes da reunião que pode liberar o milho transgênico no Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) organizou, nesta terça-feira, dia 20, audiência pública (saiba mais) para tratar do assunto, em cumprimento a uma decisão judicial expedida pelo juiz Nicolau Konkel Júnior, do Tribunal Regional Federal (TRF) do Paraná.

Integrantes da própria CTNBio, representantes de multinacionais detentoras de patentes de milho transgênico, dirigentes de associações de produtores, cientistas e acadêmicos, militantes de movimentos sociais, membros de organizações ambientalistas e entidades de defesa do consumidor expuseram argumentos favoráveis e contrários à autorização imediata da venda e do plantio do milho transgênico. A audiência foi solicitada para que o processo do milho Liberty Link, da Bayer, fosse analisado, mas o presidente da comissão, Walter Colli, professor titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ/USP), decidiu adicionar também como objeto da audiência outras seis variedades de milho transgênico de outras empresas como Syngenta, Monsanto e Dupont, Pioneer e Dow.

Na opinião de organizações que fazem parte da Campanha “Por um Brasil Livre de Transgênicos”, autores do pedido para a realização da audiência pública acatada pelo juiz do Paraná, o evento serviu para aumentar as dúvidas sobre a aprovação da comercialização do milho transgênico. Os representantes das empresas solicitaram a liberação de variedades geneticamente modificadas, divulgaram em nota, “não apresentaram informações e evidências científicas que garantam a biossegurança de seus produtos”. A própria Bayer, acusam, “não ofereceu respostas objetivas a respeito da existência de qualquer estudo de impacto socioambiental relativo ao Liberty Link”.

As organizações, entre elas o Greenpeace, a Assessoria e Serviços em Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), a Terra de Direitos e a Via Campesina (coalizão internacional que reúne movimentos sociais camponeses dos cinco continentes), questionaram a ausência de divulgação dos critérios utilizados para a seleção e o desequilíbrio na escolha dos expositores do campo científico, entre eles três técnicos do mesmo departamento da Empresa Brasileira de Tecnologia Agropecuária (Embrapa). As entidades criticaram também o fato de que, entre os cientistas que puderam falar, a maioria absoluta autorizou o cultivo de organismos geneticamente modificados (OGMs), enquanto que pesquisadores com opinião divergente foram preteridos. Declaram ainda no documento conjunto que, mais uma vez “está sendo desrespeitado o princípio de precaução, que visa proteger a população de eventuais conseqüências nocivas causadas por decisões que implicam impactos na saúde, no meio ambiente e noutras áreas da vida social”.

A procuradora Maria Cordiolli, do Ministério Público Federal (MPF), que vem acompanhando de perto as reuniões da CTNBio, afirmou que entrará com uma ação para anular a audiência pública com a justificativa de que requisitos básicos – como a apresentação para consulta da documentação existente sobre o produto em questão – não foram cumpridos. Nesta quarta-feira (21), a CTNBio está reunida em reunião interna para continuar alisando o tema e o pedido da Bayer para a liberação do Liberty Link poderá ser votado na quinta-feira (22). Coincidentemente, nesta quarta-feira (21), termina o prazo para que o presidente Lula vete ou sancione a MP 327 que, entre outros itens, diminui o quorum necessário para a aprovação de pedidos de comercialização de OGMs na CTNBio e legaliza as plantações de algodão transgênico no país (leia matéria).

Exposições

Um dos únicos cientistas presentes que defendeu mais cautela e rigor na apreciação do milho transgênico, Flávio Lewgoy, do Comitê de Ética da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul e ex-professor titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lembrou o caso do suplemento alimentar triptofano transgênico que gerou uma bactéria causadora de moléstia neurogênica e condenou dezenas de pessoas à morte nos Estados Unidos. “Não sou da turma que acha que transgênico é a semente da morte. Minha preocupação é a análise científica e muita coisa não está sendo devidamente levantada neste debate, especialmente no que diz respeito aos riscos ao meio ambiente e à saúde pública”, desabafou. “Cientista sofre duplamente: na tentativa de traduzir os riscos que conhece e, depois, quando sofre as críticas de quem os ignora”.

Já Edílson Paiva, um dos pesquisadores da Embrapa que se apresentou na audiência pública da CTNBio, fez uma defesa aberta pela aprovação urgente do milho geneticamente modificado. “Já existem mais de 100 milhões de hectares de plantas transgênicas cultivadas no mundo. Os Estados Unidos, maiores produtores de soja, têm 90% do seu cultivo transgênico, e o grão já pertence à cadeia alimentar por mais de dez anos”, comentou Paiva. “Para quem sabe como é feita essa engenharia genética, o que se tem feito é uma grande campanha de desinformação em que não são utilizados fatos científicos”, emendou, chamando a atenção para a estrutura prevista na Lei de Biossegurança, que classificou como “a mais rígida do mundo”.

O interesse pela liberação do milho transgênico, salientou o produtor Sérgio Bortolozzo, vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Piauí, não é só interesse das empresas que detém a patente da variedade. Ele pediu “tecnologia nova” para poder competir no mercado mundial. Durante a audiência, o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS) entregou ao presidente da CTNBio, Walter Colli, um abaixo-assinado com 30 mil assinaturas pedido a aprovação imediata do milho transgênico.

“Quem vai pagar o risco pela não aprovação?”, insistiu Leila Oda, da Associação Nacional da Biossegurança (ANBio). Os transgênicos, segundo ela, não são tóxicos e podem ajudar a preservar o meio ambiente, pois a propalada redução de agrotóxicos e o alegado aumento da produtividade em áreas menores diminuiriam a degradação ambiental. A advogada Patrícia Fukuma, do Instituto Brasileiro de Educação para o Consumo de Alimentos e Congêneres (IBCA), por sua vez, pediu o fim de ações protelatórias e convocou um esforço coletivo em nome de avanços já que “o Brasil já optou pela biotecnologia” quando aprovou a Lei da Biossegurança. “Estamos perdendo tempo enquanto os outros estão fazendo”.

Esse impedimento a que estão submetidos os produtores foi o cerne da apresentação do professor titular de genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), Ernesto Paterniani, que representou a Academia Brasileira de Ciência (ABC) na audiência. A preservação dos recursos genéticos, argumentou Paterniani, cabe ao Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen) da Embrapa. “Isso não tem nada a ver com proibir os agricultores de plantar milho transgênico”, declarou, atestando a inexistência de riscos para a saúde humana, animal e ambiental. “Cada agricultor precisa ter esse direito. Não pode haver proibição tecnológica”, repetiu. Na mesma linha, Silmar Peske, da Associação Brasileira de Sementes e Mudas (Abrasem), associou essa preservação com bancos internacionais de germoplasma e assegurou ser possível controlar, sem grande problemas, a possível contaminação de plantações convencionais por transgênicos com técnicas simples de administração de tempo e espaço.

A coexistência entre organismos geneticamente modificados (OGMs) e cultivos convencionais foi um dos temas centrais da audiência pública. O direito de escolha, tanto dos produtores quanto dos consumidores, é um dos pilares das discussões sobre OGMs. Marcelo Silva, da Divisão de Defesa Sanitária Vegetal (DDSV) da Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento (Seab) do Paraná, apresentou o tamanho do problema enfrentado por órgãos públicos para a segregação da soja transgênica. Silva apresentou inclusive o resultado de um exame feito com amostras de sementes tidas como convencionais que acusou a presença de transgênicos. “Estamos comprovando com dados que a soja transgênica já contaminou a soja convencional”, completou Adriano Riesemberg, da mesma secretaria, à reportagem da Carta Maior. “Em muito pouco tempo o agricultor poderá ver negado o seu direito de plantar soja convencional. Se isso já acontece com a soja, imagine com o milho”, seguiu, lembrando que a reprodução da soja se dá por polinização fechada e a do milho se dá por polinização aberta, muito mais suscetível a cruzamentos.

“Biossegurança não é sinônimo de CTNBio”, provocou Silva. Segundo ele, o governo estadual do Paraná que, por sinal, é o maior produtor de milho do país (27,5% da soma total) e abrange 350 mil propriedades rurais, já solicitou por três vezes a fiscalização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) desde 2005, quando foi aprovada a Lei de Biossegurança. A apresentação do funcionário do governo paranaense (comandado pelo governador Roberto Requião, que se notabilizou pelo posicionamento contrário ao emprego dos transgênicos na agricultura – leia matéria) colocou em xeque a viabilidade técnica e a capacidade do Estado brasileiro de garantir a coexistência da produção geneticamente modificada e da convencional. Colega de Silva, Riesemberg ressaltou ainda que o Paraná é o principal estado agrícola com país – além de grãos, frango, etc. – e que a opção brasileira por OGMs é um “contrasenso”. Produtores já estão ganhando dinheiro (pelo menos US$ 6 por cada tonelada) simplesmente pela soja convencional. “Vale abrir mão dessa vantagem competitiva, dessa reserva de mercado, por ganhos tão pequenos e transitórios?”, indaga.

O ex-deputado estadual Frei Sérgio Görgen, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), também sugeriu uma avaliação dos resultados obtidos com a liberação da soja transgênica antes que a CTNBio autorize a comercialização do milho transgênico. “Não se trata apenas de uma semente patenteada. É um pacote tecnológico inteiro, que induz à dependência e à monocultura”, definiu. Assim como os técnicos da Seab do Paraná, o camponês atentou para o risco de contaminação do milho, visto que a soja já tem sido contaminada por transgênicos. “Existe algum plano de descontaminação? E se acontecer algo grave? Todos os critérios precisam ser muito bem analisados, com serenidade, antes que a CTNBio tome qualquer decisão”, recomendou. “Há um distanciamento entre propaganda e realidade. Não houve ganho de produtividade e nem diminuição do uso de agrotóxicos. Decisões como essa tendem apenas a aumentar o êxodo rural”, sem antes reeditar uma máxima rural: “quem tem milho tem tudo”.

A biodiversidade e o conhecimento acumulado por populações tradicionais no manejo comunitário de sementes de milho são fundamentais para que não venha a ocorrer um processo de contaminação generalizada e erosão genética, defendeu a engenheira agrônoma Ângela Cordeiro, consultora da Via Campesina –. “A transgenia não é o ápice do conhecimento”, colocou, fazendo referência à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, ambos da Organização das Nações Unidas (ONU), assinados pelo Brasil.

*com informações da Agência Brasil.