Colonialismo e Agroenergia

Maria Luisa Mendonça e Marluce Melo

“Poderíamos construir projetos para países pobres não verem nos países ricos apenas países exploradores”. Essa proposta feita pelo presidente Lula durante a visita de Bush ao Brasil, no dia 9 de março, sintetiza o principal objetivo do encontro – melhorar a imagem do governo estadunidense na América Latina.

Para isso, agenda oficial da viagem de Bush ao Brasil utilizou a agroenergia como tema central. “Todos nós nos sentimos na obrigação de sermos bons cuidadores do meio ambiente”, afirmou Bush em seu discurso oficial. E Lula acrescentou “Queremos ver as biomassas gerarem desenvolvimento sustentável na América do Sul, na América Central, no Caribe e na África”. O Brasil e os estados Unidos são responsáveis por 70% da produção de etanol no mercado mundial.

Sob o pretexto de contribuir para o “bem da Humanidade” (frase utilizada por Lula em seu discurso), o encontro representou, na verdade, uma estratégia de marketing para Bush, para transnacionais que pretendem lucrar com agroenergia e para os usineiros no Brasil, acusados historicamente de violar direitos trabalhistas e destruir o meio ambiente. Dias depois, Lula afirmou que os usineiros são “heróis nacionais e mundiais”.

O principal resultado do encontro entre os dois presidentes foi a assinatura de um memorando de intenções para estimular a produção de etanol em diversos países. Segundo o subsecretário de Assuntos Políticos do Departamento de Estado dos EUA, Nicholas Burns, essa parceria pode significar uma “revolução mundial”.

Apesar do esforço dos dois governos para tornar o encontro bem sucedido, a medida considerada mais importante por Lula e pelos usineiros durante a visita de Bush, que era a suspensão da sobretaxa de importação do etanol brasileiro nos Estados Unidos, não foi atendida. A idéia é levar o tema para o âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio). Nesse sentido, Lula propôs que Brasil e Estados Unidos chegassem a um acordo para retomar as negociações da Rodada de Doha na OMC. Há especulações de que o Brasil estaria negociando um acordo a qualquer preço, inclusive para influenciar outros países a fazerem o mesmo.

Para Bush, os objetivos são claros: melhorar sua imagem junto à opinião pública internacional, já que os Estados Unidos são responsáveis por 25% da poluição atmosférica do mundo e, principalmente, contrapor a influência de países latinoamericanos onde existe forte sentimento antiimperialista, como Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador.

Porém, além de enfrentar protestos e ter que montar esquemas de segurança jamais vistos na história (na cidade de São Paulo foram interditados 35 km durante a visita), a viagem de Bush à América Latina foi ofuscada pela gira simultânea de Hugo Chávez na região. Por onde passou, o presidente Chávez foi recebido com grandes comícios e manifestações de apoio. Na Argentina, falando para um público de cerca de 40 mil pessoas, afirmou que “é loucura utilizar as boas terras e as águas doces que nos restam para alimentar os veículos do Norte”.

O governo dos Estados Unidos oferece incentivos fiscais para que suas indústrias aumentem o percentual de óleo vegetal no diesel comum. Porém, seria necessário utilizar 121% de toda a área agrícola dos EUA para substituir a demanda atual de combustíveis fósseis naquele país.

Neste contexto, o papel do Brasil seria fornecer energia barata para países ricos, o que representa uma nova fase da colonização. As atuais políticas para o setor são sustentadas nos mesmos elementos que marcaram a colonização brasileira: apropriação de território, de bens naturais e de trabalho, o que representa maior concentração de terra, água, renda e poder.

O falso conceito de energia “limpa e renovável”

É preciso desmistificar a propaganda sobre os supostos benefícios dos agrocombustíveis. O conceito de energia “limpa” e “renovável” deve ser discutido a partir de uma visão mais ampla que considere os efeitos negativos destas fontes. No caso do etanol o cultivo e o processamento da cana poluem o solo e as fontes de água potável, pois utilizam grande quantidade de produtos químicos. Cada litro de etanol produzido consome cerca de12 litros de água, o que representa um risco de maior escassez de fontes naturais e aqüíferos.

A queimada da cana serve para facilitar a colheita, porém essa prática destrói grade parte dos microorganismos do solo, polui o ar e causa doenças respiratórias. O processamento da cana nas usinas também polui o ar através da queima do bagaço, que produz fuligem e fumaça. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais tem decretado estado de alerta na região dos canaviais em São Paulo (maior produtor de cana do país) porque as queimadas levaram a umidade relativa do ar a atingir níveis extremamente baixos, entre 13% e 15%.

No caso da soja, as estimativas mais otimistas indicam que o saldo de energia renovável produzido para cada unidade de energia fóssil gasto no cultivo é de 0,4 unidades. Isso se deve ao alto consumo de petróleo utilizado em fertilizantes e em máquinas agrícolas. Além disso, a expansão da soja tem causado enorme devastação das florestas e do cerrado no Brasil.

Mesmo assim, a soja tem sido apresentada pelo governo brasileiro como principal cultivo para agrodiesel, pelo fato do Brasil ser um dos maiores produtores do mundo. “A cultura da soja desponta como a jóia da coroa do agronegócio brasileiro. A soja pode ser considerada a cunha que permitirá a abertura de mercados de biocombustíveis”, afirmam pesquisadores da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.

O governo estima que mais de 90 milhões de hectares de terras brasileiras poderiam ser utilizadas para produzir agrocombustíveis. Somente na Amazônia, a proposta é cultivar 70 milhões de hectares com dendê (óleo de palma). Este produto é conhecido como “diesel do desmatamento”. Sua produção já causou a devastação de grandes extensões de florestas na Colômbia, Equador e Indonésia. Na Malásia, maior produtor mundial de óleo de palma, 87% das florestas foram devastadas.

Além da destruição de terras agrícolas e de florestas, há outros efeitos poluidores neste processo, como a construção de infraestrutura de transporte e armazenamento, que demandam grande quantidade de energia. Seria necessário também aumentar o uso de máquinas agrícolas, de insumos (fertilizantes e agrotóxicos) e de irrigação para garantir o aumento da produção.

No Brasil, a expansão de monoculturas para a produção de agrocombustíveis deve ampliar a grilagem de grandes áreas de terras públicas pelas empresas produtoras de soja, além de “legalizar” as grilagens já existentes. O ciclo da grilagem no Brasil costuma começar com o desmatamento, utilizando-se de trabalho escravo, depois vem a pecuária e a produção de soja. Atualmente, com a expansão da produção de etanol, este ciclo se completa com a monocultura da cana. Estas terras poderiam ser utilizadas na reforma agrária, para a produção de alimentos e para atender a demanda histórica de cerca de cinco milhões de famílias sem terra.

Em muitas regiões do país, o aumento da produção de etanol tem causado a expulsão de camponeses de suas terras e gerado dependência da chamada “economia da cana”, onde existem somente empregos precários nos canaviais. O monopólio da terra pelos usineiros gera desemprego em outros setores econômicos, estimulando a migração e a submissão de trabalhadores a condições degradantes.

Apesar da propaganda de “eficiência”, a indústria de agroenergia está baseada na exploração de mão-de-obra barata e até mesmo escrava. Os trabalhadores são remunerados por quantidade de cana cortada e não por horas trabalhadas. No estado de São Paulo, maior produtor do país, a meta de cada trabalhador é cortar entre 10 e 15 toneladas de cana por dia. Entre 2005 e 2006 foram registradas 17 mortes de trabalhadores por exaustão no corte da cana. Esse padrão de exploração está presente na indústria da cana em toda a América Latina e agora deve se expandir sob o falso argumento de que representa uma fonte de energia “renovável”.

Durante a chamada “crise do petróleo”, na década de 70, o Brasil passou a desenvolver tecnologia para a produção de etanol. Naquele período, o projeto denominado Pró-Álcool” foi combatido por empresas petroleiras, inclusive pela Petrobrás. Atualmente a situação se inverteu, pois empresas petroleiras vêem com grande interesse a possibilidade de lucrar com a distribuição de agrocombustíveis. Há ainda a participação de empresas automotoras no setor, que já prevêem o aumento das vendas de veículos “flex”, movidos tanto a gasolina como etanol.

A expansão da produção de agroenergia é também de grande interesse para empresas de organismos geneticamente modificados como Monsanto, Syngenta, Dupont, Dow, Basf e Bayer, que esperam obter maior aceitação do público se difundirem os produtos transgênicos como fontes de energia “limpa”. No Brasil, a empresa Votorantin tem desenvolvido tecnologia para a produção de cana transgênica para a produção de etanol. Muitas dessas empresas passaram a desenvolver tipos de culturas não comestíveis, somente para a produção de agroenergia. Como não há meios de evitar a contaminação dos transgênicos em lavouras nativas, essa prática coloca em risco a produção de alimentos.

A expansão da produção de agrocombustíveis coloca em risco a soberania alimentar e pode agravar o problema da fome no mundo. No México, por exemplo, o aumento das exportações de milho para abastecer o mercado de etanol nos Estados Unidos causou um aumento de 400% no preço do produto, que é a principal fonte de alimento da população.

Experiências de produção de matéria prima para agroenergia por pequenos agricultores demonstraram o risco de dependência a grandes empresas agrícolas, que controlam os preços, o processamento e a distribuição da produção. Os camponeses são utilizados para dar legitimidade ao agronegócio, através da distribuição de certificados de “combustível social”.

Este modelo causa impactos negativos em comunidades camponesas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas, que têm seus territórios ameaçados pela constante expansão do capital. Além disso, a falta de uma política de apoio à produção de alimentos pode levar camponeses a substituir seus cultivos por agrocombustíveis e, com isso, comprometer a soberania alimentar. No Brasil, os pequenos e médios agricultores são responsáveis por 70% da produção de alimentos para o mercado interno.

Historicamente, a rebeldia camponesa contra o avanço do capital no meio rural tem garantido a alimentação de nossos povos. Grandes multinacionais disputam o controle de recursos naturais como terra, água e biodiversidade, o que coloca em risco a identidade camponesa e até mesmo a sobrevivência de nossas sociedades. Portanto, o que está em jogo é o enfrentamento a um modelo colonial, com todas as características próprias da colonização—predatória, destrutiva, exploradora, violenta.

Esta é a verdadeira face da indústria da agroenergia, controlada pelas mesmas empresas petroleiras, automotivas e agrícolas que destroem as florestas e poluem o meio ambiente. Sob o pretexto de criar a nova “civilização da fotossíntese” ou dos supostos benefícios de uma nova matriz baseada na agroenergia, grandes transnacionais e elites locais procuram expandir seu monopólio em nossos territórios.

Maria Luisa Mendonça é membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Marluce Melo é membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT).