A Importância da Reforma Política

Jamile Chequer

Jamile Chequer

Afinal, que reforma política está sendo discutida entre parlamentares hoje? Discutir regras para lista aberta ou fechada, financiamento público de campanha, criação de federações partidárias, redução da cláusula de barreira, prazo de criação e fidelidade partidária é o suficiente para sanar os problemas da política brasileira? Em entrevista, o diretor do Ibase, Cândido Grzybowski, diz que não é o suficiente e vai além: “Esse debate não está sendo marcado pelo que seria a melhor expressão da cidadania nos níveis de democratização que temos, mas está focado em como não ter tanta corrupção”.

Qual é a importância da reforma política no Brasil?

A reforma é indiscutivelmente necessária. A população não está mais acreditando em política, o que é problemático. Nosso parlamento e sistemas partidário, eleitoral e de representação estão em crise. Foram corroídos por uma série de práticas, talvez estertoras de algo que a Constituinte não conseguiu mudar. Ela avançou no que diz respeito aos direitos, mas pouco no que diz respeito à sustentabilidade política – que na democracia supõe a definição de regras que eliminem ou reduzam a possibilidade de se produzir privatizações da política, a proteção privada do poder.

A nossa Constituição, no que trata da representação, institui o voto eleitoral direto para a presidência da República e outras instâncias. Isso acontece a partir de um grande movimento: as Diretas já. Porém, não podemos esquecer que o sistema partidário ainda é dos tempos da Ditadura. Os partidos existentes foram implantados nesse período de crise da ditadura e de transição para a democracia. Portanto, a legislação que determina como devem ser os partidos é do período militar, da época do Geisel.

E isso traz problemas?

Isso deveria estar sendo discutido. Não se fala, por exemplo, sobre a distorção de cidadania que se tem no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao Congresso e Senado. Ninguém questiona a invenção “Senado”, e ele é uma excrescência, não é necessário.

Outros países democráticos não têm Senado?

A maioria não. Claro que o Senado é construído em nome da idéia de federação. Porém, aqui a distorção da nossa representação política chega ao extremo. Iguala todos os estados em nome do princípio federativo. Mas os estados brasileiros são extremamente desiguais. Alguns têm milhões de habitantes, outros milhares. A partir disso, deveríamos fazer valer outra matemática. Estou falando de um cidadão um voto. Onde isso se exprime? Não é na composição do Congresso, onde os pequenos estados têm o mínimo de oito e os grandes têm o máximo de setenta. Isso penaliza a cidadania de uns e dá expansão a outros, é exatamente isso que gera uma distorção enorme entre vontade de cidadania e composição do Congresso.

Como vê a proposta que está tramitando de reforma política? A discussão gira, basicamente, em torno de lista aberta ou fechada, financiamento público de campanha, criação de federações partidárias, redução da cláusula de barreira, prazo de criação e fidelidade partidária.

Claro que discutir reforma é discutir também esses pontos. Mas o princípio deveria ser discutir qual a melhor representação da cidadania. E não é isso que está acontecendo. Ficar tratando apenas desses temas é fazer o que convém aos que têm poder, aos partidos que existem e ao tipo de forças representadas hoje. Esse debate não está sendo marcado pelo que seria a melhor expressão da cidadania nos níveis de democratização que temos, mas está focado em como não ter tanta corrupção.

Na sua opinião, a discussão também deveria ser em torno do questionamento da profissionalização da representação?

Sim, esse é o maior problema. A representação deveria ser temporária. Os candidatos e candidatas não deveriam poder se reeleger indefinidamente, assim, representação não seria transformada em emprego. O interesse pessoal passa a predominar no nosso sistema. Não estou falando de um partido em particular, porque isso se passa com todos. O interesse no mandato, a idéia de que são donos do mandato para o qual foram eleitos, dando as costas à cidadania, é uma regra nesse país.

É uma facilitação para que o público se torne privado.

Isso cria distanciamento da política, da vida, da cidadania. Deveria haver regras que os obrigassem a uma rotatividade. Do Congresso nacional para vereador, do vereador a prefeito, de prefeito a deputado estadual, mas não poder se reeleger para o mesmo cargo.

Essa seria uma diferença importante?

Isso reduziria muito a capacidade de criar patrimonialismos, esses nichos de privado, de representação privada, de interesses e negociatas como essa agora do Senado. No meu ponto de vista, senadores são uma excrescência.

Aos olhos da população, com essa proposta de reforma, congressistas podem ser vistos como pessoas que estão realmente resolvendo os problemas da política.

Por que a população não está tão interessada? Porque não está sendo discutido se o eleitorado está sendo respeitado.

A partir do momento em que a discussão fica superficial, para manter as coisas no lugar, todo o eleitorado é desrespeitado.

Claro! O princípio que está por trás dessa reforma é muito pequeno. É isso! É ajeitar, acomodar para não implodir tudo. Não chega a ser uma reestruturação que permita a evasão das contradições entre a representante e representado. Que esta cidadania que vota pudesse se exprimir melhor, que ela não fosse obrigada a se vender, que ela não fosse manipulada por interesses econômicos. Claro que o financiamento de campanha é uma questão, bem como a manipulação que permite até a compra de votos. Mas o debate está sendo em como não ter caixa dois. Não é em como ter que respeitar mais a igualdade dos princípios democráticos.

Um cidadão, uma cidadã, deveria equivaler a um voto. Nem dois nem três. Que nós somos diferentes? Somos! A democracia é exprimir a diferença, só que o nosso mecanismo distorce isso, distorce por poder econômico, distorce por oligarquias partidárias, distorce pela reprodução, pelo acesso ao recurso, distorce por “N” formas. Você tem que entrar num partido para poder se eleger, não tem representação autônoma. Por que não discutir isso? Por que tem que ter candidaturas apenas via partido? É complicado, mas o debate que temos não é um debate que faz com que as pessoas acreditem que algo vai mudar. Isso é um sintoma de que não é um debate que interessa à cidadania. Claro que qualquer decisão que eles tomarem irá nos afetar, mas não estamos tendo a reforma dos sonhos, que poderia resgatar a política, vamos chamar assim. A grande política não está em discussão.

E o como poderia fazer isso?

Pela grandeza de reconhecer que está tudo podre. Assim não dá!

E recomeçar do zero?

Não necessariamente. Mas reconhecer que é preciso envolver a sociedade nesse embate. Por que eles têm que decidir como vão nos representar?

Como é possível a população se mobilizar para que possa decidir?

Acho que deveria ter uma ordem de propostas que, de fato, não fossem privadas do Congresso. Algo que fizesse uma discussão de forma a tentar convencer a população e que, em última palavra, fosse dado num plebiscito ou referendo.

Isso é possível? A população pode se mobilizar, juntar assinaturas?

Por que não? Acontece em vários países, não é nenhuma revolução. O fato de não haver uma proposta nesse sentido por parte do Congresso mostra que não há grandeza nesse debate. Em outros momentos, isso aconteceu. Por que a Constituição foi um movimento tão progressista? Se os congressistas reconhecessem que estão derrotados, poderiam ter esse gesto de grandeza. Ou voltaremos ao impasse: ou a revolução ou a convocação de uma nova Constituinte ou não temos saída. Falta desmascarar os caciques políticos que mandam no Congresso. O interesse deles é pequeno, paroquial, é um interesse do bolso, não uma expressão da nacionalidade do que nós somos, é expressão de interesses corporativos em disputa.

Como é que se impôs uma agenda naquele período e hoje isso não acontece?

A cidadania faz a diferença. Certos políticos fazem a diferença. É como se tivesse uma conjuntura em que o desinteresse da cidadania é tal que, por mais reforma que façam, não vão conseguir reformar nada. Não se atende ao problema maior que é a sensação de que isso aqui não representa nada. Eles são homens e mulheres públicos, ao não fazerem o esforço de estarem sintonizados com a cidadania, podem até mudar algo, mas não vão resolver o problema de fundo que é sensação da não-elevância que eles começam a ter e do domínio que o Executivo tem sobre eles. Afinal, em última análise é o Executivo que tem o poder nesse país, não o Congresso. É como se a crise não tivesse sido suficientemente forte para “cair a ficha”.

Como criar um movimento na sociedade como aquele da ética na política em que há pressão por verdadeiras mudanças?

Ainda não aconteceu. Mas se isso não acontecer a democracia brasileira está empacada! Mais dia menos dia nós temos que fazer, ou caminhamos para uma crise. E o risco na democracia é andar para trás. A situação está insustentável e situações assim têm duas saídas: uma mais autoritária, outra com mais democracia.

E, em última análise essa resolução depende da sociedade brasileira?

Em última análise, sim. Temos que fazer algo. Mas eles também são cidadãos, têm acesso a meios que não temos. Por que não escutam a voz da rua?

Há voz nas ruas?

Sim, se não voz, pelo menos sinais. Dar as costas não é um sinal?

E que é necessário para a democracia brasileira hoje?

Recriar uma onda de democratização. E essa nova onda é politizar o tema de desenvolvimento. E aí chegar à questão da reforma política. Os termos dessa disputa não podem ser a corrupção, se o acesso a recursos será por meios públicos ou privados. Nós criamos certo tipo de institucionalidade que está chegando ao limite por outros motivos. Temos então que recriar essa demanda. Temos que fazer com que a cidadania volte a se interessar por política. É isso que está em perigo no momento. Nós estamos de costas para o Estado. De costas para a política. Esses políticos podem salvar a pele no momento, mas podem se enterrar amanhã. Esse é o drama. Nós estamos caminhando para uma crise.

Já estamos em crise.

Mas pode ser muito pior. Precisamos recriar um movimento na sociedade que reivindique a política para cidadania. A partir disso, discutimos que institucionalidade montar: constituinte, não constituinte. Seja como for, o fato é que esse Congresso, quando pressionado por projetos sociais, decide coisas de grandeza. Soube decidir na Constituinte que tivemos, por exemplo.

O que organizações como o Ibase podem fazer para reinventar essa onda?

Não podemos aceitar a agenda das pessoas que estão na crise para a superação dela. Eu queria ver sinais do estranhamento da cidadania com a política, porque então seria possível perceber se a cidadania está decepcionada porque seus problemas essenciais não estão sendo resolvidos. A questão do emprego, da violência, de moradia não estão sendo resolvidos. Ou a gente liga reforma política a isso ou não tem saída!

Não devemos começar discutindo se a lista vai ser fechada ou aberta. Mas olhar para o que vai nos ajudar a enfrentar e colocar na agenda pública a questão da segurança. Essa questão só entra quando o foco é a redução da maioridade penal. A segurança não entra como ponto de cidadania, não entra como direito de cidadania. O papel de organizações como o Ibase é chamar a atenção para a ética, para princípios que aprofundem a democracia. Daí a defesa de que o primeiro princípio seria a equivalência de um cidadão, um voto. E que as demandas dessa cidadania estão concretas, estão expressas.

A reforma não é o ponto de partida…

O ponto de partida é a insatisfação da cidadania com tudo isso. É preciso ampliar o espaço público, a representação, o bem-comum. Esses deveriam ser princípios. Fortalecer e empoderar a cidadania e não os representantes. Criar mecanismos de controle da representação, da delegação. Mas não é isso que estão discutindo. A discussão dos políticos é sobre como empoderar a si mesmos.

Publicado em 22/6/2007 pelo IBASE