Há alternativas à transposição

As obras para transposição do Rio São Francisco continuam. Mesmo depois de Dom Luiz Cappio ter feito greve de fome, que só terminou quando o presidente Lula prometeu a ele e a toda população brasileira que, após as eleições, retomaria a conversa, cessando temporariamente as obras. As eleições passaram, Lula reelegeu-se e calou-se. Não houve diálogo com os movimentos sociais, com a população ribeirinha ou com os índios da região. A ordem foi para que as obras continuassem.

As obras para transposição do Rio São Francisco continuam. Mesmo depois de Dom Luiz Cappio ter feito greve de fome, que só terminou quando o presidente Lula prometeu a ele e a toda população brasileira que, após as eleições, retomaria a conversa, cessando temporariamente as obras. As eleições passaram, Lula reelegeu-se e calou-se. Não houve diálogo com os movimentos sociais, com a população ribeirinha ou com os índios da região. A ordem foi para que as obras continuassem. Assim, desde a última segunda feira, dia 25 de junho, os índios Trukás, apoiados por inúmeros movimentos, estão acampados em Cabrobó para impedir a continuidade das obras do Rio São Francisco.

Em entrevista, Roberto Malvezzi, o Gogó, que esteve no acampamento e também é contra o projeto de transposição, fala do que está acontecendo no acampamento durante estes dias, das ações do governo e das alternativas que o movimento propõe e pelas quais o governo não se interessa.

Roberto Malvezzi é graduado em Estudos Sociais e Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena, em São Paulo. Também é graduado em Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo. Atualmente, atua na Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Publicada na página IHU On-Line

Você, que esteve no acampamento, pode falar sobre a movimentação que está acontecendo nele?

O que está acontecendo é a ocupação de uma fazenda onde o governo projeta construir a tomada de água. Este lugar é o chamado eixo norte (1) da transposição do Rio São Francisco. Acontece que os índios Truká (2) moram numa ilha em frente, a Ilha da Assunção, e consideram aquela área (a área em frente à ilha) como sua. Então, movimentos sociais, como as comunidades ribeirinhas, os pescadores, o MST, os movimentos atendidos pelas barragens, os Movimentos dos Pequenos Agricultores, o Movimento da Bahia de Luta pela Terra, enfim, muitos grupos, resolveram se solidarizar com os indígenas e ocuparam também a local. Lá, eles protestam e tentam boicotar o andamento das obras da transposição, ao mesmo tempo em que lutam para que os índios possam recuperar a terra que lhes pertencem.

Assim, mais de 1500 pessoas estão acampadas lá desde a última noite de segunda-feira. Durante o dia, há informação e debates. Ontem, frei Luiz e Dom José Geraldo passaram por lá. Os movimentos vão prosseguir acampados, com o objetivo de que a terra seja, enfim, repassada aos índios. O governo entrou com uma reintegração de posse porque disse que a Fazenda já foi desapropriada, e essa questão é um dos nós da transposição. O governo não reconhece que está interferindo em território indígena. Essa é uma das ações na justiça contra o governo, que o Supremo não julga, não decide. Então, os movimentos sociais vêm trazendo à tona essa problemática, a mesma que o governo tenta jogar para debaixo do tapete de qualquer forma.

A ocupação já tem dado algum tipo de resultado em relação às medidas que o governo tem tomado?

O governo mandou um representante do Ministério da Integração querendo conversar com o movimento, mas este afirma e reafirma que agora não há mais o que conversar, pois já procurou o governo durante meses e o governo não quis debater. Então, agora só conversam se o Exército se retirar e a obra for suspensa. Aí sim o movimento aceita conversar para discutir as alternativas que nós temos para a transposição do São Francisco. Nesse momento, repito, não há mais conversa.

Você disse, em um artigo, que não há mais como debater com os parlamentares. Então, o que o movimento social lá instalado pretende fazer a partir de agora?

Como essa é uma caminhada complexa, logo a gente precisa ir avaliando, passo a passo, momento a momento. Então, o governo entrou com uma ação de reintegração de posse e tem gente dizendo que pode ser julgada hoje (ele se refere ao dia 29 de junho de 2007). Então, vai depender da decisão do juiz, que decide da comarca de Salgueiro, em Pernambuco. Além da reintegração de posse, aguardamos a decisão dos índios de continuar na área. Então, não temos uma posição definitiva. O que acontece é que, enquanto tivermos possibilidades, permaneceremos na área.

Como está a movimentação da polícia e do Exército próximos à área do acampamento?

Por enquanto, não houve nenhuma interferência. O Exército está mais próximo, no sentido de que está fazendo o desmatamento da área para os canais, mas não interferiu em nada até agora, assim como a polícia. A única coisa que aconteceu foi a visita do representante do Ministério da Integração e, agora, o governo disse que entraria com a ação. Estamos aguardando para ver se irão mesmo entrar com o processo.

Em artigo, você falou que, neste caso, os conflitos são inevitáveis. Que conflitos vocês estão prevendo?

Os conflitos estão sendo estabelecidos à medida que as obras avançam e que as populações ribeirinhas do Rio São Francisco reagem. Há movimentos, populações indígenas e ribeirinhas decididos a resistir à implementação da obra que o governo decidiu fazer.

Dom Cappio falou que, mesmo se os inimigos vierem armados, eles irão responder com as “armas da vida”. O que o senhor acha desta afirmação?

Quando frei Luiz fala assim, nós sabemos que ele sempre guarda um pouco de mistério em relação às atitudes que podem vir pela frente. O que ele está querendo dizer é que o movimento social irá continuar e que nossa resistência, evidentemente, não é feita por meio de armas de fogo nem por meio da violência. Frei Luiz já deu um exemplo, no ano passado, dessa arma, que, no caso, foi a greve de fome. Então, o que se desenha para o horizonte futuro é que aquelas armas próprias de quem luta a favor da paz poderão ser novamente utilizadas, no momento em que for indispensável que elas retornem. O que ele está querendo dizer é que haverá resistência.

O que as pessoas envolvidas com o agronegócio tem feito para impedir que a luta de vocês não resista e que as obras da transposição avancem?

As obras da transposição são decididas pelo capital econômico e financeiro, que é o mesmo que administra o País há quinze anos, desde o Governo Itamar (3). É que quando chegou ao poder um novo grupo no Ceará, liderado pelo Ciro Gomes (4) e pelo Tasso Jereissati (5), ele projetou todo um sistema de desenvolvimento para aquela região, que incluiu a construção do Porto de Pecem, a construção da Transnordestina, que é a estrada de ferro que vai levar os produtos até o Porto, e o complexo industrial do Porto de Pecem, inclusive com siderurgia. Para todo esse projeto econômico, além do complexo de indústria de ferro, e também em função da irrigação e da criação de camarão em cativeiro, eles precisam de água. Então, a transposição, na verdade, é uma peça de um projeto de desenvolvimento maior, muito mais amplo. E, como num projeto de desenvolvimento desses envolve muito capital, muito dinheiro (só a transposição está orçada em quase sete bilhões de reais), todos os envolvidos com o agronegócio têm interesse nisso. Na verdade, mudam o governo e os ministros, mas o projeto de transposição nunca sai de pauta. O Ministério da Integração está a serviço deste projeto há mais de quinze anos. Evidentemente, sabemos que há interesses poderosos, determinados e articulados. Nós temos tentado dizer à sociedade brasileira que o projeto, que aparece como que para acabar com a sede do povo, tem por trás o interesse poderoso da agroindústria, do complexo siderúrgico e de uma elite que irá se beneficiar com essa água. Isto significa que a transposição não tem a finalidade de saciar a sede das pessoas mais necessitadas. Para isso, existem outras propostas, outras alternativas, que nós defendemos, mas, infelizmente, não conseguimos encontrar eco no Governo Federal, que se colocou a serviço desse projeto econômico daquela região do Nordeste.

Que tipos de apoios estão vindo da sociedade, da população do Nordeste, além do apoio dos movimentos sociais?

A população local tem ido protestar. Se você for ao acampamento, poderá ver os índios e ribeirinhos da região. Mesmo o MST que está lá é do Nordeste, ou seja, são rostos conhecidos aqui na região. Agora, ainda contamos com a solidariedade da população urbana que visita o local. Hoje (29 de junho de 2007), por exemplo, teremos a presença de políticos que são solidários a nossa causa. Temos a mídia local favorável, colocando a questão em debate. Desse modo, sabemos que a resistência também é feita pela comunidade local, por aquelas pessoas que também são as vítimas da transposição do Rio São Francisco e desses projetos que, ao longo dos anos, vão se instalando sempre à custa das populações mais pobres.

É bom registrar que nós somos contra a transposição porque temos propostas melhores para o semi-árido brasileiro do que a da transposição. Nossas propostas vão em duas linhas: para o meio rural, nós defendemos as obras que têm a lógica da chamada convivência com o semi-árido, que é a captação da água de chuva do meio rural tanto para beber quanto para produzir. E, para o meio urbano, nós defendemos a implementação da obras do Atlas do Nordeste, que é um leque de obras propostos pela Agência Nacional de Águas e atingiria 1112 municípios com núcleos urbanos, ou seja, acima de cinco mil pessoas, além de mais 244 municípios com núcleos urbanos abaixo de cinco mil pessoas. Alcançaria os nove estados do Nordeste, mais o norte de Minas Gerais e resolveria o problema hídrico de 34 milhões de nordestinos até 2015. Quer dizer, se o governo tem efetivo interesse em resolver o problema da sede do povo, teria outros caminhos a percorrer que não os da transposição. Mas, como o governo está comprometido com o projeto econômico da elite, opta pela transposição e ignora as alternativas. Ainda assim, nós vamos continuar dizendo à sociedade brasileira que existem outros caminhos mais abrangentes, eficientes e baratos.

Notas:

(1) No Projeto de Transposição, esse eixo norte prevê água para os sertões de Pernambuco, do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
(2) Os Truká vivem na Ilha da Assunção, no médio rio São Francisco, no município de Cabrobó . Eles estão estimados em 3.463 e tem seu território com uma superfície de 5.769ha. A aldeia da Assunção foi fundada provavelmente em 1722, e ficava situada em uma grande ilha com esse mesmo nome.
(3) Foi presidente do Brasil entre 2 de outubro de 1992 e 1º de janeiro de 1995.
(4) Político brasileiro. Com a eleição de Lula, Ciro Gomes aceitou o convite do presidente eleito para assumir o Ministério da Integração Nacional, responsável pelo desenvolvimento regional e obras de infra-estrutura. Em março de 2006, Ciro Gomes renunciou ao cargo de ministro para concorrer à Câmara dos Deputados pelo Estado do Ceará. Foi eleito o deputado federal proporcionalmete mais votado do Brasil, com mais de 16% dos votos no seu estado.
(5) É um político e empresário do Brasil, além de senador pelo Partido da Social Democracia Brasileira