Cursos universitários para assentados qualificam Reforma Agrária

De acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), existem quase 3 mil assentados rurais matriculados em 39 cursos criados por universidades de todo país para atender especificamente a esse público. Mas o número de instituições de ensino superior que já abriram suas portas para trabalhadores rurais, a fim de formar profissionais habilitados a lidar com as particularidades do campo, atinge a casa dos 50.

A mais recente experiência nesse sentido é da Universidade Federal de Goiás (UFG), que aprovou a instalação de uma turma especial na graduação de direito composta apenas por moradores de assentamentos. As aulas começaram em agosto passado. “A decisão da UFG foi precedida de um razoavelmente longo processo de debate interno, que começou em maio de 2005 e foi concluído em setembro de 2006. Esta experiência é mais um pequeno tijolo na grande construção da democratização do acesso à educação em todos os seus níveis”, define o professor José do Carmo Siqueira, coordenador do curso.

Iniciativas como a da UFG devem-se a parcerias entre os movimentos sociais do campo e o meio acadêmico, que vêm ganhando bastante fôlego nos últimos anos. E elas só saem do papel graças aos recursos provenientes do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), vinculado ao Incra. Lançado em 1998 com o objetivo de melhorar os índices de escolaridade nos assentamentos brasileiros, o programa surgiu como resposta a demandas básicas e urgentes dos movimentos sociais, num momento de aumento da tensão e dos conflitos por terra no meio rural brasileiro.

“Quando se discute o modelo de Reforma Agrária, é preciso formar profissionais de um novo tipo, que trabalhem sob novas perspectivas, e que desenvolvam conhecimento para esse modelo. Os profissionais comuns estão acostumados ao sistema do agronegócio”, analisa Clarice dos Santos, coordenadora do Pronera. Na opinião de Vanderlúcia Simplício, integrante do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o programa é um instrumento importante para “massificar a educação, qualificar a Reforma Agrária e voltar a educação para o campo”.

Geralmente, a idéia de se criar um curso para assentados parte de professores universitários sensíveis às causas dos movimentos sociais. Depois de formatar um projeto que atenda às demandas dos trabalhadores rurais, a proposta é enviada a um conselho do Pronera que tem a missão de aprová-la ou não. Caso seja aceita, a verba é repassada para a instituição de ensino, que deverá gerir os recursos por conta própria e depois prestar contas ao Incra.

Em sua maioria, os cursos obedecem à chamada “pedagogia da alternância”. Isso quer dizer que o cronograma das atividades respeita o processo produtivo do campo. Assim, os alunos estudam em períodos intensivos de dois a três meses, nas salas de aula das universidades, e depois retornam para seus locais de origem com a missão de aplicar os conhecimentos que obtiveram.

Em um primeiro momento, a idéia de viabilizar o acesso de beneficiários da Reforma Agrária ao ensino superior respondia à necessidade de investir na formação dos educadores, elevando a qualidade de ensino nas escolas localizadas nos próprios assentamentos – exigência prevista, inclusive, na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996. Por essa razão, grande parte dos cursos destinados a esse público específico enquadra-se na categoria de licenciatura, como letras, pedagogia, história e geografia. “Porém, ainda é muito alto o número de professores trabalhando nos assentamentos que têm apenas o ensino médio completo ou magistério”, alerta Clarice.

Se, num primeiro momento, a demanda consistia na formação de professores, e no oferecimento de cursos técnicos, hoje já se assiste a uma diversificação dos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior, “que responde a novas necessidades apresentadas pelos movimentos”, analisa Maria Clara di Pierro, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
A graduação de direito da UFG é um exemplo dessa nova tendência. “Na fase inicial das conversas mantidas com os movimentos sociais, foi possível firmar que a demanda era de um curso de direito regular”, conta o professor José do Carmo. Mas também existem outros casos emblemáticos. A Universidade Federal da Paraíba (UFPB) mantém um curso de ciências Agrárias, assim como a Universidade Federal do Pará (UFPA) – campeã em número de convênios assinados com o Pronera: 12.

Entretanto, iniciativas desse tipo nem sempre são interpretadas como “ações afirmativas”, isto é, medidas efetivas que garantam o acesso de populações marginalizadas a direitos básicos, com o intuito de corrigir injustiças históricas. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) vem travando uma briga judicial com o Ministério Público Federal (MPF) para aprovar a criação de uma turma de medicina veterinária destinada a 60 assentados do estado. Segundo os argumentos levantados pelo MPF, a universidade estaria ferindo o princípio da igualdade de acesso, privilegiando os assentados rurais. Na opinião de Clarice dos Santos, esse discurso não se sustenta porque os assentados rurais também passam por processo seletivo.

“O Pronera contribuiu para a democratização de oportunidades educacionais. É uma ação afirmativa bem localizada para um público-alvo que não tinha acesso”, defende a educadora Maria Clara. “A sociedade ainda vê com certa naturalidade o discurso de que a educação no campo não é necessária”, completa.

Problemas

Apesar de ser considerado um passo importante para a melhoria dos índices de escolarização no campo, o Pronera ainda está longe de sanar os problemas de educação no meio rural brasileiro. Ao longo de 2004, a pedido do próprio Incra, a professora Maria Clara di Pierro coordenou um estudo de avaliação do programa e chegou a uma conclusão pouco animadora. “A situação educacional nos assentamentos ainda é muito grave. Em termos porcentuais, uma parcela pequena é coberta pelo Pronera”, afirma.

De acordo com Vanderlúcia, do núcleo de educação do MST, o programa é uma das melhores ações tocadas pelo Incra. “Lutamos para manter verbas para o Pronera enquanto não encontramos via Ministério da Educação (MEC) uma política educacional mais consistente. Mas os recursos são mínimos diante da nossa demanda. Precisa aumentar o valor do orçamento aluno/ano”, argumenta. Ela aponta, por exemplo, falta de dinheiro para bancar gastos de alimentação e transporte dos alunos, sem o que se torna impossível garantir a permanência dos estudantes.

Maria Clara também aponta o pouco envolvimento institucional das universidades como obstáculo para que se fechem mais parcerias entre instituições de ensino superior e movimentos sociais. De acordo com ela, os convênios se realizam principalmente pelo empenho pessoal dos próprios professores, que muitas vezes enfrentam resistências de instâncias superiores.

Na USP, por exemplo, uma proposta de criação de uma graduação de pedagogia da terra, aprovada pela Faculdade de Educação, está emperrada nos conselhos da universidade que decidem sobre o assunto. “Em São Paulo não há gente nos assentamentos com formação superior para responder às necessidades locais. É escandaloso”, critica a professora.

Outro ponto problemático é a burocracia. Uma das recomendações do estudo produzido por Maria Clara era justamente a de tornar mais flexível a prestação de contas, conselho que até agora não foi seguido pelo Incra. “Tocar um curso em convênio com o Pronera é algo que dá muito trabalho para quem se dispõe a fazer isso”, comenta.

Aumentar os recursos do Pronera, bem como a oferta de formação das mais diversas áreas, como na de saúde, por exemplo, é um desafio fundamental para consolidar a Reforma Agrária. E essa percepção parece ter sido assimilada pelos movimentos. “Generalizou-se a cultura de que o estudo é fundamental para o desenvolvimento, até para auxiliar a produção”, conclui Clarice dos Santos, coordenadora do Pronera.

Fonte: Carlos Juliano Barros, Repórter Brasil