A Reforma Agrária que virou Plano de Manejo

O milionário e ilegal agronegócio da madeira no oeste do Pará parecia começar 2005 em xeque. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) havia resolvido cumprir um quesito básico da lei para a liberação de planos de manejo florestal: exigir o título de propriedade da terra que se pretende explorar. O resultado foi que quase todas as licenças foram suspensas e veio à mostra uma incômoda verdade: o setor trabalhava pilhando madeira de terras públicas.

Nesse momento, em bastidores, madeireiros, Incra e Ministério do Meio Ambiente arquitetaram o esquema que garantiria ao agronegócio da madeira a forma de burlar a falta de documentação fundiária para que continuassem se apoderando das florestas públicas.

Acertou-se que seriam criados assentamentos de reforma agrária para serem usados como área regularizada em termos fundiários para atender aos madeireiros. E a Superintendência Regional do Incra em Santarém (SR-30) inicia uma criação em massa de assentamentos voltados aos interesses dos madeireiros. Um pacto que o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo, qualificou como um ‘uso criminoso da reforma agrária’.

O próprio diretor Nacional de Programas do Incra, Raimundo Lima, em conversa gravada e transcrita abaixo, conta como tudo foi tramado em novembro de 2004:

‘No momento daquela reunião foi provada a inviabilidade de a Lei de Gestão de Florestas Públicas resolver de imediato o problema dos madeireiros e foi efetuada uma sugestão. Primeiro, o hoje diretor geral do Serviço Florestal Brasileiro, o Tasso [Azevedo] […] e também o doutor Paulo Capobianco, que hoje é secretário-geral do Ministério [do Meio Ambiente] e na época era secretário de Biodiversidade, fizeram uma sugestão: ‘quantos assentamentos o Incra tem lá na região?’ O superintendente respondeu e aí eles disseram: ‘Olha, os assentamentos podem resolver o problema do setor madeireiro lá na região’. Aí, os madeireiros disseram: ‘Olha, mas nesses assentamentos que tem lá no Pará não existe mais madeira, não vai cobrir as nossas necessidades, não vai resolver o nosso problema… Mas o Incra vai criar assentamentos lá?’ […] Aí, o Rolf [presidente do Incra] já anunciou a criação da nova superintendência. E o Incra cria assentamentos lá na região, em terras públicas, e esses assentamentos serão as áreas que vão ofertar legalmente madeira para o setor madeireiro.’

O madeireiro passou então a ser o ‘cliente da reforma agrária’. O Incra criou assentamentos em áreas com estoques ainda intocados de madeiras nobres, ou seja, nas distantes florestas primárias ainda não saqueadas. Porém, justamente essa condição elimina qualquer chance de famílias se instalarem no local. São lugares excessivamente distantes, sem estradas, infra-estrutura, acesso a serviços públicos, condições de escoamento de produção e, até mesmo, sem água.

Percebe-se que, desde o princípio, o Incra pretendia ‘esquentar’ a terra para os madeireiros e não realmente, assentar famílias sem terra. Caso contrário, os assentamentos seriam criados nas dezenas ou centenas de quilômetros de áreas desmatadas, onde, muitas vezes, latifúndios unem crime ambiental, trabalho escravo e grilagem de terras públicas.

A retomada dessas terras e sua destinação à reforma agrária é a mais evidente – e a mais negligenciada – obrigação do Incra. São terras do Incra, próximas aos centros urbanos e às estradas, com melhores condições de infra-estrutura e logística, onde a criação de assentamentos, além de viável, não traria danos ambientais e ainda poderia gerar alguma recuperação, como a das matas ciliares, por exemplo. O problema é que isso não atenderia o madeireiro.

Mas não foi somente o madeireiro que lucrou com o esquema. A desenfreada criação de assentamentos em áreas de floresta primária possibilitou o anúncio farsesco de que o governo Lula havia cumprido as metas de reforma agrária de seu primeiro mandato. Em 2006, 25% das famílias anunciadas como beneficiadas pela reforma agrária em todo o país foram homologadas no oeste do Pará. Porém, a verdade é que muitas apenas constam das listas oficiais, sequer tendo conhecimento de que são ‘assentadas’.

Instituto foi usado para gerar números artificiais

Procurador da República Felipe Fritz Braga explica que ‘a estrutura da superintendência foi usada para gerar números artificiais de assentados em 2005 e 2006. O Incra assumiu certas metas no II Plano Nacional de Reforma Agrária que não vinham sendo atendidas por outras superintendências Brasil afora’.

Os assentamentos são de papel. Limitam-se a uma portaria de criação e uma lista de ‘beneficiados’ para cômputo de números. Na terra, nenhuma família instalada, apenas florestas virgens sendo devastadas pela atividade de madeireiras.

Os processos de criação dos assentamentos desrespeitaram frontalmente as normativas que os regulamentam. Toda sorte de absurdos foi cometida e documentada pelo MPF ou publicada na imprensa: documentos fraudados com data retroativa, beneficiamento de pessoas completamente sem perfil de clientes de reforma agrária, créditos pagos em duplicata (e até triplicata), acordos com madeireiras etc.

‘O nível de irregularidades nos processos de criação de assentamentos é assustador’, diz Braga. E, por conta dessa ampla gama de descumprimento às normativas, em 27 de agosto, a Justiça Federal atende liminarmente um pedido do MPF e interdita 99 assentamentos no oeste do Pará, que somam 30.000 km2 (área equivalente ao estado de Alagoas).

Em 17 de setembro, o MPF obteve o deferimento de outra liminar e a Justiça Federal afastou do cargo cinco funcionários da SR-30, entre eles o próprio superintendente, Pedro Aquino de Santana. Acusação: envolvimento em toda sorte de improbidades administrativas.

Toda a tramóia já era mais do que evidente quando o Incra pareceu entrar em surto esquizofrênico: por um lado o presidente da autarquia, Rolf Hackbart, finge não haver nada de errado e declara: ‘É por acreditar na legitimidade dos trabalhos executados na região que continuaremos as ações planejadas e vamos recorrer da liminar expedida’. Por outro lado, o próprio Hackbart reconhece o caótico estado de irregularidades ao alocar cerca de R$ 3 mi para se corrigir a lambança da SR-30.

Em 22 de novembro, é suspensa a liminar que determinara o afastamento dos servidores. O recurso assinado pelo Procurador Geral do Incra, Valdez Farias, coloca Aquino e os outros servidores afastados como imprescindíveis para a consecução da reforma agrária na região e que seu afastamento atravancaria a ‘restauração da ordem pública, na medida em que promove a necessária regularização fundiária e apaziguaria os ânimos dos movimentos sociais’.

Note-se que não se trata de uma defesa pessoal, feita por um advogado contratado, mas uma ação institucional, movida pelo próprio Incra. Ou seja, ratifica-se a conivência no processo de reforma agrária voltado ao madeireiro e com os maiores prejuízos para os povos da floresta e camponeses sem terra.

Milhares de famílias foram homologadas às pressas

A decisão do juiz federal Ney Bello também é anacrônica, pois se fundamenta no pressuposto de que o afastamento de Aquino impediria o andamento dos trabalhos do Incra, inclusive nas ações de saneamento das irregularidades dos assentamentos suspensos. Acontece que essas ações entraram em curso após o afastamento do superintendente. E mais, se a gestão de Aquino pariu todo esse rebojo, no que sua presença que irá cooperar para solucioná-lo?

Mas, de fato, Aquino e os outros afastados são vitais para certos assuntos. São vitais para conter os ânimos – não dos movimentos sociais que já se mobilizam em protesto ao seu retorno – mas o ânimo dos madeireiros, que foram os primeiros a se levantarem aos berros quando o MPF obteve a interdição dos assentamentos. Aliás, a segunda manifestação veio da Secretaria do Estado de Meio Ambiente (SEMA), não em defesa do meio ambiente, como se poderia esperar, mas dos madeireiros, prejudicados pela impossibilidade da Secretaria liberar planos de manejo nos assentamentos.

Aquino e os outros afastados foram responsáveis por uma situação de conseqüências incomensuráveis. Segundo a associação de servidores da SR-30, hoje há milhares ou até dezenas de milhares de famílias homologadas às pressas, nos últimos dias de 2006, todas em assentamentos trocados. Algumas muito distantes da área que ocupam, outras em locais que desrespeitariam seu modo de vida, como populações de terra firme homologadas em assentamentos de várzea e vice-versa. Os servidores explicam que a formalização da troca de assentamento não é um trâmite simples e ninguém sabe onde encontrar esses ‘assentados’ para que, ao menos, se inicie o processo.

O prejuízo para essa gente é enorme. A encenação de reforma agrária feita na SR-30 não assentou efetivamente essas famílias e, pior, privou-as da condição de candidatas, para que, algum dia, pudessem ter acesso ao seu direito à terra e aos créditos da reforma agrária.

Mas, afinal, que importam essas tantas mil famílias? O importante é que a pior banda dos madeireiros do oeste do Pará terá florestas com regularização fundiária para atacarem. Para coisas como essa, o Incra tem razão, Aquino é essencial.

Fonte: Maurício Torres, Especial para o LIBERAL OESTE – Maurício Torres é pesquisador e trabalha na região oeste do Pará