Fábio Konder Comparato fala sobre a transposição do São Francisco

Em depoimento, o jurista Fábio Konder Comparato fala sobre o projeto de transposição do rio São Francisco e sobre a decisão a ser tomada pelo Superior Tribunal Federal (STF). “A Constituição diz que somos um Estado democrático de direito. No artigo primeiro, parágrafo único, diz: o poder supremo pertence ao povo.” Assista abaixo:

Depoimento do jurista Fábio Konder Comparato

“A questão da transposição das águas do Rio são Francisco é um teste para o regime político brasileiro. No fundo, não se discutiram as grandes questões que representam a alma do regime político. Tal como foi decidida a transposição, por decreto do presidente da República, ela é formalmente inconstitucional. De modo direto, fere os dispositivos da Constituição Federal e, substancialmente, ela representa uma frustração da soberania popular.

Eu explico: quanto ao primeiro ponto, trata-se de um rio que banha vários estados. A Constituição, no artigo 22, inciso III, declara que os rios dessa natureza são bens da União; eles pertencem ao povo brasileiro e, por conseguinte, qualquer modificação no sistema de escoamento dessas águas que modifique o equilíbrio federativo não pode ser decidido pelo presidente da República. O artigo 48, inciso V da Constituição, determina que é da competência do Congresso Nacional, com a sanção do presidente da República, dispor sobre bens do domínio da União. Isto está perfeitamente de acordo com o espírito da Constituição: nós somos um Estado federal. Portanto, os estados que compõem a federação têm a sua autonomia. Não é possível que se modifique esse equilíbrio federativo, essa disposição de bens que dizem respeito à convivência de vários estados, mediante decreto do presidente da República.

Isto é até um escárnio: a Constituição dá à presidência da República a direção da administração federal, mas isto não é um ato administrativo. Por decreto do presidente da República, pode-se organizar o funcionamento e a organização da administração, podem-se extinguir cargos públicos, mas jamais mudar substancialmente o patrimônio da União que, repito, não é do Estado, é
do povo brasileiro.

Portanto, o que se vê é uma diminuição do poder Judiciário, que não soube se levantar dignamente contra essa violação da Constituição. Mas há algo também muito importante: a Constituição diz que nós somos um Estado democrático de Direito e o artigo 1º, parágrafo único, declara que o poder supremo pertence ao povo, ele não se aliena, não se entrega, não pode ser emprestado a
governantes. Só o povo pode decidir, em última instância, aquilo que lhe diz respeito.

Ora, se se trata de um bem que é patrimônio público, patrimônio do povo, o povo brasileiro deveria ser consultado. De que forma? A Constituição já dá essa possibilidade. Mediante plebiscito, o artigo 14 da Constituição prevê isto. E o que aconteceu? De maneira acintosa, o governo federal preparou arremedos de audiência pública, e sabem onde se realizaram essas audiências públicas? Nas capitais dos estados, à noite, em hotéis de 5 estrelas. É realmente um reflexo da mentalidade oligárquica, senão ditatorial, dos governantes brasileiros. Com que autoridade nós podemos criticar outros governantes, dizendo que eles são ditadores, populistas? No caso brasileiro é muito pior, nós somos democratas disfarçados. No fundo e na forma, nós negamos a limitação de poderes da Constituição e não reconhecemos a soberania popular.

Eu espero que, quando o Supremo Tribunal Federal decidir o mérito da questão, ele ponha soberania popular e a supremacia da Constituição acima dos interesses político- partidários do governo federal.”