“Lula esgotou-se”, diz Dom Tomás Balduíno

Da IstoÉ O bispo emérito de Goiás, dom Tomás Balduíno, se mantém, aos 85 anos, como uma das vozes mais contundentes da esquerda da Igreja Católica. Fundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cofundador e ex-presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o antigo "companheiro de viagem" do PT critica a moderação de Lula no poder, defende com unhas e dentes a reforma agrária e justifica as ações violentas do Movimento dos Sem-Terra com um ditado popular que pode soar polêmico: "A violência é legítima quando a mansidão é vã."

Da IstoÉ

O bispo emérito de Goiás, dom Tomás Balduíno, se mantém, aos 85 anos, como uma das vozes mais contundentes da esquerda da Igreja Católica. Fundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cofundador e ex-presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o antigo “companheiro de viagem” do PT critica a moderação de Lula no poder, defende com unhas e dentes a reforma agrária e justifica as ações violentas do Movimento dos Sem-Terra com um ditado popular que pode soar polêmico: “A violência é legítima quando a mansidão é vã.”

Em entrevista à ISTOÉ, dom Tomás alerta para a tensão no Pará, elogia Hugo Chávez e diz que o presidente Lula não gera mais nenhuma expectativa de mudança no País. “Lula esgotou-se”, diz. O religioso usa a bússola ideológica ao analisar a sucessão de 2010, e cita nomes que gostaria de ver no Planalto. Pelo PT, o senador Eduardo Suplicy. Pelo PMDB, o senador Pedro Simon. Pelo PSDB, torce para que José Serra, por suas “tendências esquerdistas”, vença a disputa com Aécio Neves.

ISTOÉ – O fim da CPMF foi bom para o Brasil?

Foi uma perda lamentável porque o País perdeu seu melhor instrumento para arrecadar o dinheiro dos ricos. Essa derrota aconteceu porque o governo não abriu os olhos da sociedade para este fato. Até porque estava tirando dinheiro dos ricos para dar para outros ricos, tirava dos bancos para dar aos bancos, pagando a dívida. Por isso, ficou sem força moral para mostrar ao povo como essa arrecadação era eficaz.

Taxar operações financeiras é uma boa saída?

É uma medida positiva, mas continua faltando ao governo um diálogo com a base do povo. O governo perdeu essa prática. Todo governo com base popular tem condições de conscientizar a população quando entra em confronto com a classe exploradora. Lula manifestou que não tem mais essa condição. Ele se beneficia de uma forte aceitação popular, mas não dialoga com o povo.

O governo Lula combateu mais o latifúndio do que os antecessores?

Na luta contra o latifúndio, Lula não fez diferença nenhuma. É verdade que ele não reprimiu os movimentos sociais, como o Fernando Henrique, e dialogou, não fechou as portas. Mas o que realmente avança no País não é o social. É o mercado, o capital. Lula não está avançando nas desapropriações. Pelo contrário. O curso dado ao agronegócio está reduzindo o espaço da reforma agrária. As desapropriações estão muito aquém das metas que ele mesmo traçou. Hoje, reforma agrária é um assunto que saiu de pauta, de cogitação.

Não seria pelo fato de a mecanização rural ser obrigatória para a inserção do País no comércio mundial?

Se pautarmos nosso desenvolvimento pelos olhos europeus, pode ser, mas é preciso ver nossa realidade, conseguir respostas a partir dos anseios das massas brasileiras. O neoliberalismo é predador, devastador. Pode ser que favoreça as minorias ricas e o mundo europeu, mas aqui tem aumentado a disparidade, a desigualdade. O governo Lula, que é de aliança com o capital, se sente estimulado pelas forças que têm poder de comando na sociedade. Vai em outra linha que não é a de atender aos apelos das massas populares. Nosso universo é outro, é o do camponês, do indígena, do latino-americano, que conserva sua mística, sua grandeza.

As invasões da Vale do Rio Doce e de hidrelétricas não põem a opinião pública contra o movimento camponês?

Não condeno essas ações. São violentas, sim, mas o objetivo é criar impacto, como no caso das sementes de eucalipto da Aracruz Celulose. Eles reclamam, mandam correspondência, reivindicam, fazem requerimentos, e não são vistos, nada acontece. Quando quebram uma vidraça, aí aparecem. Tenho o máximo de respeito e admiração pelos que arriscam a pele em ações desse tipo.

Mas não é um caminho semelhante ao do terrorismo? Atos violentos para chamar a atenção?
Não. É outra coisa. “A violência é legítima quando a mansidão é vã”, diz um ditado, uma dessas grandes obras da humanidade sem autoria conhecida. Diante de governantes surdos, só mesmo uma sacudidela violenta.

Quem seriam os candidatos em quem o sr. votaria em 2010?

Quero votar em um candidato que reúna condições. Muita gente olha para a figura do Eduardo Suplicy, não por ser do PT, mas por ser ele, até por ter divergido da cúpula do partido, por ser voto vencido. É difícil encontrar outro homem com essa estatura e projeção. Mas para ser candidato é preciso ter outras qualidades além da moral e do amor à pátria, precisa ter possibilidade de comunicação, diálogo. Dificilmente Suplicy seria o candidato do PT, mas ele reuniria muita gente, até de outras agremiações.

O sr. pode votar no PSDB?

Não vejo essa possibilidade por uma questão ideológica. É um partido elitista, de direita. Se o José Serra conseguisse se libertar das amarras da estrutura, poderia responder melhor às exigências de libertação, um ideal da esquerda. Já o Aécio Neves, eu não acredito que se liberte da direita, por uma opção pessoal e partidária.

Caso a idéia de um terceiro mandato para Lula volte à agenda política, o sr. poderia apoiá-la?
Lula esgotou-se. Não falo por mim, mas pelas organizações populares que conheço. Não se pensa em manter Lula para mudar, melhorar o País. Vamos viver o pós-Lula brevemente. Como vai ser, eu não sei, mas não há expectativa de nova eleição de Lula. Talvez isso possa ser negociado pelas cúpulas, mas não como força popular. O movimento popular não vê Lula continuando, não quer um terceiro mandato. Isso não quer dizer que queiramos esses outros candidatos que estão aparecendo por aí. Há uma perplexidade geral com relação ao futuro. Ainda não surgiu o estalo.

Por que o sr. está tão decepcionado com o governo?

Havia a expectativa daqueles anos de caminhadas das organizações populares, que se aglutinaram, criaram um partido, sonharam com a chefia do governo. Hoje o clima é de decepção, desalento, até de paralisia. Eu esperava muito mais de Lula e não sou só eu. Todas as organizações do campo esperavam mais da recuperação do instrumental que é o Incra, na atualização dos critérios e índices de produtividade e do limite da propriedade para fins de desapropriação. Tudo isso favoreceria uma reforma agrária, que tem sido tocada como uma medida compensatória, ou seja, onde há um conflito, o governo vai e desapropria. Isso não é reforma agrária.

O sr. tem esperança de que o País mude de rumo?

A esperança não morre nunca. Olhando pelas bases do povo, da sociedade, que conserva o vigor do povo latino-americano, vejo que há um potencial, um cabedal de vida, de transformação, que aponta para um futuro diferente. Isso já está presente nos diversos fóruns sociais e nos encontros e assembléias das organizações camponesas. Temos os levantamentos no Equador, na Bolívia, na Venezuela. O povo está muito vivo, apesar de séculos e séculos de dominação da elite, de formação do Estado a serviço da elite, que é o que temos.

A única alternativa da América Latina ao capitalismo seria o populismo ou personalismo, como o de Hugo Chávez na Venezuela?

Não chamo de populismo, mas de liderança carismática, que Lula também é. Em termos de organização popular, temos mais cabedal do que qualquer país latino-americano. Acho essa mobilização boa, válida, necessária, mas chega um momento em que é preciso haver uma liderança de consenso da maioria. Podem chamar de populismo ou sei lá o quê, mas tem de ser assim. No caso da Venezuela, é o Chávez. Ele tem seus defeitos, mas responde em grande parte a demandas dessas bases populares, contrariando os interesses das elites, que gostariam de vê-lo morto, e do próprio império americano. No caso da Bolívia, essa liderança é o Evo Morales.

Por que o sr. é contra a transposição do São Francisco?

Pelas mesmas razões de dom Luiz Flávio Cappio (bispo de Barra, na Bahia) e de uma centena de bispos. A transposição é para a elite rica e não vai matar a sede da difusa população nordestina do semi-árido. Vão fazêla para os projetos de exportação de frutas para a Europa, de caranguejos em cativeiro e para a irrigação da cana, além dos grandes centros urbanos. Existe uma alternativa elaborada pela Agência Nacional de Águas, muito mais barata, com recursos locais. É basicamente água de chuva, com o aproveitamento do subsolo e, sobretudo, agenciamento das águas. As águas acumuladas em açudes evaporam sem um serviço de distribuição para quem precisa delas. É três vezes mais barato do que este projeto faraônico que não beneficia a população. Esse negócio de dizer que vai para 12 milhões não é verdade. Vai é para a elite. O outro, mais simples, poderia beneficiar 44 milhões.

E por que o governo não optaria por este projeto alternativo?

Ele foi abafado pelo próprio governo. No semi-árido brasileiro chove muito mais do que em outros semiáridos. Na Espanha, há uma área semelhante em que o pessoal vive bem porque a água foi racionalizada, com um sistema de atendimento adequado à população. Aqui a cultura é do desperdício de água, mesmo no Nordeste. Quando se fala em retomada do serviço da água, é na mesma linha da indústria da seca, que canaliza o dinheiro para a elite.

Exportação e agronegócio não geram empregos para os nordestinos?

Todo projeto gera emprego, mas estamos falando de água. Uma coisa é aumentar um bolo para depois, quem sabe, dividi-lo. Outra é levar a água diretamente à população que dela precisa. A água da transposição seria excessivamente cara, bombeada a 300 metros de altura para alimentar três Estados. Seria a água mais cara do mundo.

O governo Lula reduziu o conflito no campo?

O conflito continua intenso, sobretudo no Norte. No Pará, o resultado do projeto Paz no Campo, da governadora Ana Júlia Carepa (PT), foi a prisão de 200 lavradores em 2007, com violência policial muito forte. Foi um desarmamento dos lavradores pedido pelos fazendeiros, que queriam vacinar seu gado e eram atrapalhados pelas ocupações. O governo pôs a polícia para apoiar os fazendeiros. O lavrador é visto como bandido. Coincidentemente, em uma dessas batidas a polícia encontrou um arsenal de guerra de um fazendeiro. Isso acaba dando em guerra.

O governo não diminuiu o índice de mortes nos conflitos?

Diminuiu um pouco, mas há uma tensão crescente, sobretudo no Pará, pelo fato de o Incra estar criando assentamentos em terras públicas distantes, insalubres, com malária, em florestas primárias. Isso não é futuro para a reforma agrária, pois acaba beneficiando as madeireiras e contrariando a vida dos ribeirinhos. Interessante é que, em vez de desapropriar áreas próximas aos centros de consumo e escolas, hospitais, o governo faz a reforma agrária no sentido da deportação para longe. É a reforma agrária como deportação. Isso gera tensão e perpetua o trabalho escravo.

O agronegócio mecanizado, no mundo todo, é um importante gerador de divisas. No Brasil é diferente?

Ele toma a terra que poderia ser da reforma agrária para produzir etanol, para exportar. É um retrocesso, uma volta ao sistema colonial de exportação.

Mesmo que o etanol reduza a poluição, o saldo da cultura da cana é negativo?

No sentido da terra, é negativa a chamada “energia limpa”. A Via Campesina diz que ela é limpa do cano de descarga do carro para fora. Até chegar lá, é tão suja que inclui até trabalho escravo. Retira a terra de quem precisa dela para viver. E agride o meio ambiente transformando a mata em monocultura. O cerrado, que equilibra o planeta e é a caixa-d”água das nossas bacias hidrográficas, está sendo transformado na monocultura de eucalipto, cana, soja ou algodão. O etnol compensa para o mercado do Primeiro Mundo, que está precisando de energia para seus motores, mas de nós ele tira a chance de solucionar nossos problemas. O agronegócio tem um valor importante, mas não pode ser prioridade da política pública para o campo.