Monocultura, técnica e poder

Por Carlos Walter Porto-Gonçalves

A agricultura através de monocultivos é uma das principais inovações do chamado mundo moderno. Antes de ser um fenômeno técnico, como costuma ser apresentado, as monoculturas são um fenômeno político.

Ou melhor, são um fenômeno ao mesmo tempo técnico e político. Até o século XVI, as práticas agrícolas sempre se caracterizaram pela diversidade de cultivos e pela associação da agricultura com a criação de animais e com o extrativismo (de madeira, de lenha, de frutos selvagens).

As primeiras grandes monoculturas foram implantadas no arquipélago dos Açores, na África, e depois na América. Até então não se conhecia em qualquer lugar do mundo um grupo social, uma comunidade ou um povo que se caracterizasse por tais práticas.

Assim, desde o início, a prática dos monocultivos esteve associada a produzir não para si mesmo, mas para um mercado mundial que começa a se constituir por meio dessas práticas. A introdução dos monocultivos é, assim, uma das principais heranças do colonialismo. Há uma violência intrínseca a essas práticas haja vista que ninguém livremente se disporia a produzir para terceiros. Por isso, a monocultura, a escravidão e o racismo são fenômenos que, juntos, vão conformar uma estrutura de poder marcada pela violência contra os povos e contra a natureza.

Uma intensificação da opressão/exploração sobre os camponeses também se viu na Europa Oriental, no século XVII, com o aumento das exportações de cereais em virtude da expansão comercial, fenômeno conhecido como “segunda servidão”. Ali também a expansão das monoculturas esteve relacionada com a expansão do mercado e ao aumento da exploração dos camponeses.

Desde o início, a prática de monocutivos esteve associada à mais moderna técnica de transformação de matérias-primas. Ao contrário do que se difundiu nos livros escolares, nossos países não eram exportadores de matérias-primas, mas sim de açúcar, um produto manufaturado. Portanto, as primeiras manufaturas modernas estavam no Brasil, em Cuba e no Haiti, e não na Europa e transformavam a cana de açúcar produzida por meio de monocultivos com base em trabalho escravo.

Vê-se, assim, que aquilo que se chama modernidade é, para os nossos povos, marcado por profundo sofrimento, pois produzido por meio de violência da escravidão e dos monocultivos. Há uma linha de continuidade histórica que liga os mais antigos engenhos do século XVI, à sua época o que havia de mais moderno, aos atuais latifúndios monocultores dos agronegociantes que, hoje, concentram terras e capital com seus monocultivos de soja, cana de açúcar, eucalipto, algodão, laranja, milho, girassol e outros. Assim, somos modernos há 500 anos! Há 500 anos produzimos com as tecnologias de ponta para o mercado mundial! Há 500 anos experimentamos o lado amargo da modernidade, a colonialidade, lado amargo esse que lhe é constitutivo.

Observemos que a centralidade que a Europa passa a ter a partir de 1492 é inseparável da América, da exploração dos seus recursos e das suas gentes originárias e daquele/as que para cá foram trazido/as especificamente para fazerem monocultivos para exportação para saciar a sede de acumulação de uma burguesia branca que, ainda, se revestia de uma missão civilizatória marcada por um componente religioso que legitimava com deus a conquista.

Se a primeira modernidade, a ibérica, recobria sua missão com o caráter religioso, a segunda modernidade, a do iluminismo francês, inglês e alemão, embora se creia laica, preserva a crença no papel redentor da ciência e da técnica – fala-se, com freqüência, dos milagres da ciência e da técnica – revelando, assim, o quanto a dimensão religiosa está imbricada nessa ideologia cientificista. No entanto, sabemos, a fé na ciência não é ciência, é fé!

Como soe acontecer em toda relação marcada pela dominação/subjugação, aquele/a que é dominado/a se vê negado/a na sua potencialidade para que dele/a seja extraído/a o que o dominador impõe.

Assim, uma natureza tropical como a nossa, que tem a propriedade de nos oferecer mais de 500 toneladas de biomassa por hectare, como é o caso da floresta Amazônica, teve todo esse potencial produtivo natural ignorado em nome de uma agricultura monocultora que, simplesmente, desperdiça todo esse potencial e, assim, expõe os solos à erosão, sobretudo em função de não se considerar devidamente o regime de chuvas tropicais que, por aqui, é torrencial.

Nossa paisagem, sobretudo em áreas da quase extinta Mata Atlântica, está marcada por ravinas e voçorocas e por cupinzeiros que são os efeitos ecológicos mais deletérios dessa agricultura de monocultivos, além da perda da diversidade biológica junto com o extermínio de muitos os povos e de suas culturas.

Considere-se que o Brasil é o único dos cinco maiores países em extensão territorial do mundo que não passou por uma reforma agrária ou por uma política sistemática de democratização do acesso à terra, o que por si só indica o papel político central que, em nossa sociedade, cumpre o latifundiário. Esse fato tem enormes implicações sociais e ambientais haja vista que a conquista de terras nas chamadas áreas de fronteiras continua marcada pela mesma colonialidade que nos caracteriza desde os primórdios da conquista.

Há um Complexo de Violência e Devastação que se reproduz há 500 anos e que, hoje, tem sua face mais dramática nas áreas de expansão moderno-colonial comandada pelos agronegociantes nos Cerrados do centro-oeste, do oeste baiano, do sul do Maranhão e do Piauí e na Amazônia meridional desde o Acre até o Pará.

As oligarquias agronegociantes latifundiárias brasileiras têm na ponta da língua o discurso da modernidade tecnológica que, como vimos, ela vem praticando há 500 anos. No Brasil, com certeza, nada mais tradicional do que o discurso invocando o moderno! Suas monoculturas quincentenárias continuam se defrontando com territórios que, longe de serem vazios demográficos, são ocupados por camponeses variados (seringueiros, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu, geraizeiros, retireiros, coletora/es de baru, pequi, fava d´anta entre outras e outros), enfim, exatamente aqueles que, dado o caráter patrimonialista do Estado, são, antes de tudo, sem-direitos, pois mesmo tendo a posse da terra não a têm enquanto direito que, como tal, deveria ser consagrado pelo Estado.

Essas populações camponesas, ao contrário dos monocultivos, vivem da sua criatividade cultural e da produtividade biológica primária que a natureza oferece – biomassa – fazendo uma agricultura diversificada, ainda que, muitas vezes, sobrevivendo em condições piores do que poderiam caso houvesse um conjunto de políticas que pusesse em diálogo a ciência convencional com essa ciência da tradição, como chamam alguns pesquisadores.

As áreas onde hoje estão as maiores disponibilidade de bens genéticos (germoplasma), ou seja, as áreas de maior diversidade biológica são áreas ocupadas por populações camponesas e/ou por populações cultural e etnicamente diferenciadas, como os quilombolas e povos originários. Insistimos que a ideologia e o imaginário conformados em torno de uma presumida superioridade epistêmica, cultural e religiosa européia tende a deslegitimar essas populações tratando-as como inferiores e como estorvo ao seu progresso e ao seu desenvolvimento, assim como tratam a natureza como algo a ser dominado.

Assim como há uma enorme riqueza em diversidade biológica nessas áreas há também um enorme acervo de conhecimentos elaborado por essas populações que não pode e não deve ser desperdiçado. Assim, essas populações e as áreas que ocupam tornam-se estratégicas para conter o Complexo de Violência e Devastação com seus monocultivos moderno-coloniais.

São graves as conseqüências, não só para a sociedade brasileira como mundial, que derivam do modo como as nossas oligarquias agronegociantes vêm alardeando a enorme disponibilidade de terras que o Brasil possui como vantagem comparativa para a produção de agrocombustíveis e de outras commoditties (vide página da ÚNICA – União da Indústria de Cana de Açúcar – e do ICONE – Instituto de Comércio e de Negócios Exteriores).

Essas terras não estão disponsíveis. Elas estão ocupadas por camponeses, quilombolas e por povos indígenas. É uma enorme irresponsabilidade continuar a se propagandear a existência dessas terras como terras disponíveis antecipando, assim, a violência futura.

Alertamos para os conflitos tensos e intensos que já vêm envolvendo essas populações e que tendem a se intensificar com a demanda maior por terra, água e Sol (fotossíntese), haja vista: (a) o fenômeno China e sua exponencial demanda por matéria e energia e; (b) a apropriação da causa do aquecimento pelos agronegociantes brasileiros em aliança com os magnatas estadunidenses do complexo fossilista da indústria do petróleo e do carvão global que buscam se legitimar como ambientalmente corretos por meio dos agrocombustíveis.

Com isso, grandes extensões de terras, sobretudo nos cerrados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás já vêm sendo cobertos pelos monocultivos de cana de açúcar, deslocando o gado das pastagens dessas regiões para os cerrados e para a Amazônia, realimentando o Complexo de Violência e Devastação conformado, inicialmente, pela grilagem de terras para exploração madeireira e de carvão vegetal e, completado, seja pela pastagem para criação de gado, seja pelos monocultivos de soja ou de cana de açúcar.

Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em Ciências pela UFRJ e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Diretor do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades – UFF.