Por que não anda a Reforma Agrária?

De Carta Capital
Por Phydia de Athayde e Rodrigo Martins

O sol castiga o oeste paulista. É forte, intenso, pouco atenuado pelo vento. Dos dois lados da rodovia Marechal Rondon, entre Araçatuba e Andradina, no lugar dos bois que antes davam o tom da paisagem, há extensos canaviais. Tudo parece uma massa uniforme. Num ziguezague entre estradas vicinais, ora de asfalto, ora de terra batida, vez por outra uma placa indica: “Movimento Sem Terra a 500 metros”. Uma delas em Castilho (SP), quase divisa com o Mato Grosso do Sul, onde 170 famílias vivem às margens da estrada. Reivindicam a desapropriação da fazenda Pendengo, 4.343 hectares de pastagem alta e malcuidada, com uma pequena boiada.

Há quatro anos, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) considerou a terra improdutiva. O proprietário não concordou com a avaliação e entrou com recurso na Justiça. “Ele contratou uma auditoria para contestar o Incra, e até mesmo o perito particular mostrou que a fazenda não atinge os coeficientes mínimos de produtividade”, afirma Irineu Xavier de Toledo, da direção regional do MST. Há dois anos, proprietário e sem-terra aguardam um novo laudo.

A região do oeste paulista é simbólica por potencializar alguns entraves à reforma agrária no País. No caso, o conservadorismo do Judiciário somado ao excesso de recursos ajuizados pelos proprietários. Valdez Farias, procurador-geral do Incra, diz que o estado de São Paulo é especialmente problemático nesse ponto porque, diferentemente de outras áreas, todos os recursos possíveis são aplicados. Advogados do MST acompanham desapropriações em todo o território nacional e identificaram uma concentração de casos obstruídos no local. René Parren, diretor estadual do MST, diz que há 12 processos de desapropriação de grandes propriedades praticamente parados. Essas terras somam mais de 10 mil hectares (área da capital capixaba, Vitória) e poderiam abrigar 980 famílias.

A juíza Claudia Hilst Menezes Port, da 2ª Vara Federal de Araçatuba, região visitada pela reportagem, diz não haver conivência com os proprietários. “Tudo depende do caso concreto, mas o rito sumário é a regra”, afirma. A magistrada reconhece que há excesso de recursos na lei processual, mas não atribui má-fé aos que fazem uso deles. Sobre reforma agrária, pondera: “É uma questão tormentosa, com raízes históricas, e merece atenção”.

Outro artifício comum é o proprietário ajuizar uma “ação declaratória de produtividade”, que questiona o laudo do Incra mas, em tese, não deveria impedir a conclusão do processo. “Se o autor da ação tiver mais de 60 anos, haverá prioridade legal. Caso contrário, em razão de ser, algumas vezes, prejudicial em relação à desapropriação, é dado um tratamento mais célere no processamento”, diz a juíza.

As histórias do oeste paulista exemplificam as dificuldades do governo ao tentar desapropriar terras para a reforma agrária. Em 2007, o total desapropriado foi pífio: apenas 107 mil hectares, sem contar outros 166 mil hectares referentes a processos concluídos em dezembro. Ainda assim, muito aquém dos 555 mil de 2006, ou dos 977 mil de 2005.

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, diz que o baixo número de desapropriações não reflete os esforços do governo. “Reforma agrária não é só assentamento. Não adianta assentar sem fornecer a infra-estrutura básica para que possam começar a produzir.” Cassel destaca as aquisições de terras para a reforma agrária. “Nunca gastamos tanto na compra de áreas para assentamentos (1,3 bilhão de reais). A meta é assentar 100 mil famílias por ano, com qualidade. Não existe milagre”, pontua.

De acordo com o ministro, uma das razões para tão poucas desapropriações é a defasagem dos índices de produtividade (usados pelo Incra para determinar áreas improdutivas), baseados em dados de 1975. Cassel diz ser meta para 2008 reajustá-los: “É uma obrigação do governo”.
Além de incumbência descrita na Constituição e na lei agrária (8.629/93), a atualização é promessa antiga de Lula. Compromisso reafirmado mais de uma vez (como no fim da Marcha pela Reforma Agrária, em 2005), e nunca cumprido.

Um levantamento do Incra mostra que 445 imóveis em processo de desapropriação estavam sob óbice judicial no fim de 2007. Concentram-se nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste e somam 903 mil hectares, suficiente para assentar mais de 30 mil famílias. De acordo com Farias, do Incra, salvo raras exceções, os juízes não aplicam o rito sumário da desapropriação (como exige a lei). Em vez disso, dão todas as chances para o proprietário provar que a terra é produtiva. “O Judiciário atravanca a reforma agrária”, diz, e complementa: “Há um entendimento que sobrepõe o direito de propriedade a outros direitos constitucionais, como o de acesso à terra e à dignidade humana. Quem está sob a lona tem direitos constitucionais sonegados”.

Ainda no campo jurídico, há a dificuldade na retomada de terras públicas. Estima-se que existam 170 milhões de hectares de área pública grilada no País, problema mais severo na Região Norte, mas também presente em estados como Mato Grosso. Um exemplo é a Usina Pantanal de Açúcar e Álcool, que ocupa 8,2 mil hectares da União. O empresário Mounir Naoum, dono de um grupo hoteleiro, reivindica a propriedade. Desde 2003, o Incra tenta retomar a área. Em dezembro, o Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília cassou a liminar que dava posse à União. Próximo à área, 220 famílias esperam assentamento.

Em Itapura (SP), perto da divisa com Mato Grosso do Sul, cem famílias aguardam a desapropriação da fazenda Lagoão, 1.776 hectares de pastagens declaradas improdutivas pelo Incra. O governo liberou a verba para a indenização (8,6 milhões de reais), mas o dono ajuizou seis recursos e uma ação declaratória de produtividade. O processo se arrasta. Enquanto não há desfecho, os ocupantes se viram como podem. Dermival Birolli, de 62 anos, montou uma horta. “O sonho de ter minha terrinha persiste, mas não dá para aguardar a Justiça a vida toda.”

No entender de Elmano de Freitas, advogado do MST, o Judiciário não deveria acatar as “ações declaratórias de produtividade”. “O artigo 18 da Lei Complementar nº 76, de 1993, não deixa dúvidas de que a ação de desapropriação deve ter preferência ante qualquer outra. Não é absurdo o fazendeiro tentar alegar produtividade, absurdo é o Judiciário acatar.”

Todas as batalhas judiciais que questionam produtividade de terras em processo de desapropriação utilizam os índices de produtividade vigentes como argumento. Ou seja, aqueles determinados com base em dados de 1975. Se, assim, os processos travam, é fácil imaginar o rebuliço que uma atualização causaria nos tribunais.

Paulo Caralo, diretor de Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), dá uma dimensão de como os problemas estão ligados. “Mais de 30% dos processos de desapropriação param por causa de recursos que levam em conta o índice de produtividade. São mais de 120 grandes fazendas improdutivas, que poderiam abrigar metade das mais de 200 mil famílias que esperam assentamento”, afirma. “Se ainda utilizamos um índice de 30 anos atrás, é porque nenhum gestor fez as atualizações que a lei obriga.”

Ninguém discorda que a produção agropecuária de hoje é superior àquela observada em 1975. Daí a se chegar num acordo para rever os números há um abismo. No histórico de tentativas fracassadas, a mais representativa aconteceu em 2005. O então ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, propôs novos números e dependia do aval do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Não houve acordo. Entra ministro, sai ministro, tudo fica como está. E a realidade do campo não pára de mudar.

“Nos últimos 20 anos, a produtividade agrícola brasileira cresceu em média 3,5% ao ano”, anuncia o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Reinhold Stephanes, e arremata: “O Brasil tem a melhor tecnologia do mundo para a agricultura tropical”. Ele também elogia as melhoras genéticas na pecuária, embora diga que, em 20 anos, a relação boi/hectare não mudou muito. “Exceção para o estado de São Paulo, que tinha 1 boi por hectare há dez anos e, hoje, tem 1,5 boi por hectare. Este é, inclusive, o modelo que queremos para o Brasil”, diz.

Com tanta pujança, por que o temor à atualização dos índices? “Tecnicamente, isso pode e deve ser discutido. A dificuldade está no campo político. Os produtores, por exemplo, propõem que o novo índice seja a metade daquele observado nos assentamentos. É uma discussão muito política”, tateia Stephanes, e pede que se evite polêmica. “A discussão deve ser técnica. Hoje, o pequeno, o médio e o grande produtor têm de ser eficientes. Não existe mais aquela poesia de 40 anos atrás”, diz.
CartaCapital teve acesso a alguns números da mais atual proposta de revisão dos índices de produtividade, que permanece engavetada. No que se refere à cana-de-açúcar, a mudança causaria alterações expressivas apenas em Alagoas (ao passar o índice de 50 toneladas por hectare para 60). No caso da soja, a alteração aconteceria em Mato Grosso e, no caso do milho, em Goiás (mapas abaixo). Os números propostos são um meio-termo entre os de 1975 e os observados no mercado. É uma tentativa de atender a movimentos sociais e, ao mesmo tempo, minimizar a chiadeira dos produtores.

Mesmo assim, não será nada fácil. “Não existe mais terra improdutiva próxima aos grandes centros consumidores ou à infra-estrutura de distribuição”, diz Leôncio Brito, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Ele credita o aumento da eficiência dos produtores a investimentos em fertilizantes, biotecnologia, transporte e armazenagem, e diz que a atualização dos índices não leva em conta os impactos para o agronegócio. “Os defensores dessa medida querem é relativizar o direito de propriedade. Em nenhum outro setor da economia há metas mínimas. Ninguém diz isso a um industrial”, esbraveja.

O engenheiro agrônomo André Pessoa, diretor da Agroconsult, diz que os índices propostos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) estão “fora da realidade”. O consultor destaca que, ao estabelecer as médias de produtividade por estado, ou mesmo microrregiões, o governo corre o risco de punir injustamente os fazendeiros. “Uma grande empresa agrícola, com capital aberto, costuma ocupar as melhores faixas de terra e pode elevar a média de produtividade de toda uma região. Os vizinhos não têm a mesma capacidade de investimento, mas nem por isso são improdutivos”, diz, e sugere: “O governo poderia aprimorar o seu cadastro de informações com dados da Receita Federal, do sistema financeiro e de censos, para avaliar melhor quem realmente não está produzindo”.

Dados preliminares do Censo de 2006 (do IBGE) indicam que há 76,7 milhões de hectares de áreas de lavouras e 172 milhões de hectares de pastagens no Brasil. Especialistas dizem que a maior parte das terras improdutivas é de pastagens.

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor de geografia agrária da USP, denuncia a existência de uma “caixa-preta” com informações sobre a verdadeira produção agropecuária do País: “O Incra sabe exatamente quais as propriedades improdutivas. Essa informação está no sistema do cadastro do órgão, que é feito a partir da declaração dos proprietários, mas isso ninguém divulga”. O estudioso atribui a omissão desses dados à suposta corrupção: “É triste falar, mas é a verdade”.

Oliveira é um dos participantes da elaboração do II Plano Nacional de Reforma Agrária, em 2003, a pedido do então candidato Lula. E tem uma explicação para o fracasso: “O governo não faz reforma agrária porque não quer. Mas parece que Lula acendeu uma vela para Deus e outra para o diabo, por isso não faz nada”.

O geógrafo também contesta dados da reforma agrária apresentados pelo governo. “O Incra divulga como assentados a relação de beneficiários da reforma agrária, que inclui os reassentados, os de área indígena ou de quilombos e os que passaram por regularização fundiária. Esse total não reflete a realidade. De fato, como reforma agrária, até 2006 o governo Lula assentou apenas 150 mil famílias”, diz.

João Pedro Stedile, principal liderança do MST, também critica os números oficiais. “Quem está no governo sempre tem estatísticas e argumentos para se justificar. Mas infelizmente a realidade do campo é bem diferente”, afirma. “Temos mais de 150 mil famílias acampadas debaixo de lonas. Das assentadas, apenas 10% tiveram acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Temos mais de 40 projetos no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) esperando recursos. E a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que tinha o melhor programa de compra antecipada, teve as atividades praticamente paralisadas em 2007”, enumera Stedile.

O líder do MST tenta chamar a atenção para o que acredita ser o debate mais importante, e negligenciado, sobre o campo: “Está prevalecendo a proposta do agronegócio, que enriquece alguns e traz pobreza e desigualdade para a maioria. Nós defendemos um modelo baseado na pequena e média unidade produtiva, que use mão-de-obra intensiva, métodos agroecológicos e priorize alimentos para o mercado interno”.

Enquanto isso, os acampados em volta da fazenda São Bento, em Andradina (SP), aguardam. “Antes, os jagunços tocavam a gente daqui. Agora, os fazendeiros estão vencendo na Justiça. São quase cinco anos de espera”, desabafa Paulo Gonzaga Marcelino, de 40 anos. Ele trabalha na roça a 25 reais por dia, mas a oferta de emprego, temporário e sem carteira assinada, está escassa. “Quando sabem que sou sem-terra, o pessoal desconfia.”

Marcelino foi um dos primeiros a acampar na beira da estrada José Rodrigues Celestino, uma das vicinais esburacadas da Marechal Rondon. Bem ao lado da fazenda, considerada improdutiva em 2002. O governo levantou recursos para indenização (5,4 milhões de reais), mas o proprietário quer provar que as terras são produtivas. Em 2007, arrendou 770 hectares a uma usina de álcool, que plantou cana-de-açúcar. O processo parou.

A sem-terra Andréia Ferreira da Silva, de 25 anos, olha com descrença para o canavial. “Se estava difícil conseguir um pedacinho de terra, imagina agora que plantaram cana a perder de vista”, resmunga, com o pequeno Igor, de 2 anos, no colo. Ela vive com o marido e quatro filhos sob a lona.

Se o governo não tem feito sequer o básico em prol da reforma agrária, é difícil imaginar que um dia vá questionar o modelo agrícola adotado no País. Enquanto isso, debaixo das lonas, faz calor. Muito calor.