“Precisamos implantar nosso modelo nos assentamentos”

Por Ana Maria Straube O agronegócio tenta controlar os territórios por meio da compra de terras e do arrendamento de áreas de pequenos e médios agricultores. Com isso, as famílias assentadas se tornam alvo permanente de cooptação das empresas que produzem monocultura para exportação.

Por Ana Maria Straube

O agronegócio tenta controlar os territórios por meio da compra de terras e do arrendamento de áreas de pequenos e médios agricultores. Com isso, as famílias assentadas se tornam alvo permanente de cooptação das empresas que produzem monocultura para exportação.

“Nossas áreas de assentamento não estão livres de uma ofensiva de territorialização do agronegócio, que busca de várias formas de entrar e controlar os nossos espaços. Precisamos ficar atentos para impedir que isso aconteça e colocar nossas áreas a serviço de nosso projeto de assentamento”, afirma o integrante da coordenação nacional do MST, Valdir Misnerovicz, em entrevista ao Jornal Sem Terra.

Na luta pela Reforma Agrária, segundo ele, não existe mais diferença entre terra produtiva e improdutiva, o que deixa a disputa cada vez mais acirrada. Da mesma forma como os fazendeiros querem preservar seu latifúndio, o agronegócio quer tomar as áreas improdutivas e orientar a produção dos agricultores a partir de seus interesses. Leia a seguir entrevista de Valdir Misnerovicz.

JST- Como o agronegócio atua para conseguir avançar no interior do país?

O agronegócio é visto hoje como uma fase do neoliberalismo no campo, que começou a se expandir a partir da década de 1990, a partir da articulação entre os interesses dos capitais, tanto internacional quanto nacional. Isso envolve um conjunto de setores que atuam nos processos de produção, industrialização e comercialização da produção. Para que isso possa ser viabilizado, é utilizado um conjunto de medidas. Entre os principais instrumentos, está o Estado. O interesse desses grandes capitalistas, representados pelas corporações, pelas transnacionais é obter lucro. A partir disso, a agricultura passa a ser um pólo dinâmico para o atual estágio do desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, os capitalistas passam a olhar para o campo e perceber que é um espaço de ganhar dinheiro e fazer investimentos. Para isso, costuram uma aliança envolvendo fazendeiro, empresa, Estado e todos os setores.

JST- De que forma se controla o território?

Nós temos duas situações. Em algumas áreas, há uma concentração da propriedade da terra, com a aquisição como forma de controle. A outra situação é o uso da terra na forma de arrendamento ou parceria. Nós estamos vivendo esse momento, em que para algumas atividades eles não estão interessados em adquirir a terra, mas em usar e controlar a partir da produção. Isso está acontecendo principalmente na atividade sucroalcooleira, na produção de cana. Além de adquirirem a terra, eles também estão utilizando na forma de arrendamento. É o uso como forma de conseguir organizar a produção a partir do seu interesse e assim, conseguir maiores lucros.

JST- O que muda em relação aos latifundiários nesse novo modelo?

Nós estávamos acostumados a entender o chamado “latifúndio clássico”, onde apesar da articulação e da força política, os latifundiários eram vistos como uma parcela da classe dominante que atuava de uma forma corporativa para defender os seus interesses específicos na disputa do poder local. Hoje, com essa nova composição e a nova aliança de interesses, essa fração do latifúndio passa a fazer parte da composição da classe dominante dinâmica do capitalismo. Há uma mudança na natureza da composição da classe dominante que atua no campo nessa perspectiva de lucro, mas também, ao mesmo tempo, há uma defesa de forma articulada. O latifúndio e os proprietários da terra, fazendeiros e latifundiários, são parte integrante do agronegócio, junto com o capital, que são as empresas, tanto as nacionais como internacionais, que atuam com muita força.

JST- O que une essas dois pólos: o latifúndio e o grande capital?

Eles têm o que chamamos de aliança de interesses: é um casamento entre transnacionais, empresas nacionais e os proprietários da terra, com funções muito claras e definidas, que envolvem alguns na produção e outros no processo de industrialização e comercialização. Um depende do outro, um não vive sem o outro. O latifúndio adquiriu uma nova configuração, com uma nova cara, que conserva o atrasado e o moderno. É um monstro que está destruindo tudo do ponto de vista dos recursos naturais e explorando ao máximo os trabalhadores. Toda produção está voltada para o mercado e aos interesses de comércio internacional. Não há nenhum compromisso nem responsabilidade com os brasileiros, trabalhadores e com a sociedade. O único interesse e obsessão é o lucro.

JST- Apesar de atrasado, o agronegócio é visto por boa parte da sociedade como um modelo que traz modernidade. Como o agronegócio esconde sua face arcaica?

Os meios de comunicação estão inseridos dentro desse conjunto de sistemas que compõem o agronegócio. A imprensa tem um papel fundamental, tanto do ponto de vista ideológico, fazendo a propaganda, como também criando necessidades de compra e estimulando a venda de mercadorias. Isso tem de fato uma face ambivalente: ao mesmo tempo em que existe um discurso e se utilizam de técnicas modernas, continuam implementando relações sociais totalmente atrasadas, como o trabalho escravo. Isso sem falar nas condições de trabalho dessas pessoas que atuam em setores dinâmicos do agronegócio. Também utilizam o Estado como forma de garantir financiamento, regulamentação, além do auxílio do Poder Judiciário e do aparelho repressivo quando necessário.

JST – A repressão à luta dos trabalhadores mudou com a implantação desse novo modelo?

A repressão continua e não é novidade. Historicamente convivemos com a repressão desde o surgimento do Movimento, assim como aqueles que antes de nós tomaram a iniciativa de se organizar e lutar sofreram com essas mesmas ações das forças repressivas. O que muda é a forma de reprimir. Percebemos que a força repressiva do Estado se qualificou para atuar contra os trabalhadores. Eles têm tido posturas muito claras de defesa do agronegócio e de repressão. Estamos assistindo ao uso de um aparato cada vez maior, com o aumento do número de efetivos e uma combinação do Poder Judiciário com a repressão, além da volta das chamadas “empresas de segurança”, os jagunços modernos que atuam de forma articulada com o Estado e o aparato repressivo para tentar dificultar a organização e ação. Apesar dessa ofensiva, percebemos que isso não tem sido motivo para impedir que a gente se organize e lute.

JST- As áreas necessárias à expansão do agronegócio são as mesmas da Reforma Agrária. Como fica essa questão?

Há um acirramento na disputa porque as áreas que interessam à Reforma Agrária também são áreas de interesse do agronegócio. Hoje não existe mais diferença entre áreas produtivas e improdutivas, pois as improdutivas são áreas de expansão do agronegócio, deixando a disputa cada vez mais acirrada. Além do mais, há uma opção muito clara do governo por um desses projetos de desenvolvimento, que é o agronegócio. O governo também não tem tomado iniciativas e medidas para facilitar o processo de desapropriação. O que nos leva a acreditar na necessidade de nos prepararmos para fazer essa disputa de forma mais qualificada. É uma disputa palmo a palmo, ou há agronegócio ou há Reforma Agrária. A prova é o resultado dos de assentamento em 2007.

JST- Isso ameaça as áreas conquistadas?

Nós vivemos no dia a dia uma tentativa de cooptação permanente pelo agronegócio. Nossas áreas de assentamento não estão livres de uma ofensiva de territorialização do agronegócio, que busca de várias formas entrar e controlar os nossos espaços. Precisamos ficar atentos para impedir que isso aconteça e colocar nossas áreas a serviço de nosso projeto de assentamento.

JST- Como o agronegócio se configura no estado de Goiás, sua área de atuação?

Nós temos no estado de Goiás empresas do setor de grãos, produção de soja e de milho, e de produção de frango e carne bovina. Esses são os principais setores. Soja e milho é a matéria-prima básica para a produção de frango e carne bovina para exportação. O que está entrando com bastante força, expandindo a partir da região de São Paulo, é a plantação de cana para o álcool. O setor sucroalcooleiro está vindo com bastante força. Além disso

JST- E os recursos naturais?

Há também uma intensificação da exploração dos recursos minerais, tendo em vista que o novo mapeamento de minério do Brasil identificou que o estado de Goiás é uma região que possui grande quantidade ainda não explorada. Segundo estudos, mais de 80% do minério que está no subsolo do estado não foi até agora explorado. Há uma corrida muito grande para a exploração do subsolo, além da eletricidade e da água para gerar energia elétrica. Esses são os principais ramos de atuação do agronegócio no estado de Goiás, com conseqüências gravíssimas para a sociedade e para o meio ambiente.

JST- Quais são essas conseqüências?

Podemos destacar aquelas relacionadas à questão social, que é a exclusão total dos trabalhadores, que são expulsos do campo e se aglomeram em torno das pequenas e médias cidades e de Goiânia. Acabam servindo como mão de obra para as grandes fazendas, são presas fáceis para o setor. As cidades não estão preparadas e isso gera uma série de problemas relacionados a educação e saúde. Do ponto de vista ambiental, o cerrado brasileiro em Goiás está dando seus últimos suspiros. O que não foi destruído no período da chamada “revolução verde” está sendo destruído agora com a monocultura da cana. O que estamos perdendo nunca mais será recuperado. Entre as monoculturas, a cana-de-açúcar é considerada a pior, pois destrói toda a biodiversidade em torno dela.

JST- Diante desse quadro, quais são os desafios para quem luta pela Reforma Agrária?

Precisamos encontrar formas de enfrentar o avanço do agronegócio e impedir sua territorialização em todos os espaços geográficos. A partir do momento em que ele se instala, fica mais difícil enfrentá-lo. Nossa tarefa é organizar a luta e o enfrentamento a essa ofensiva do agronegócio. A segunda tarefa está em construir nas nossas áreas conquistadas o nosso modelo de produção, que possa garantir renda para as famílias assentadas e desenvolver técnicas de produção combinadas com o equilíbrio do ecossistema. Essa é a nossa grande tarefa, que vai além do interesse pessoal do assentado. Cuidar, preservar o meio ambiente é uma das tarefas mais nobres do ser humano na atualidade.

JST- Como fica a relação com a sociedade?

VM- A nossa terceira grande tarefa é a disputa com o agronegócio no campo das idéias na sociedade, porque temos argumentos. Aquilo que defendemos é o que interessa para a maioria da sociedade. Precisamos fazer com que essas boas idéias e boas iniciativas possam ser de conhecimento de outras forças, principalmente as organizadas, como os estudantes, as igrejas, enfim, para ganharmos apoio e defesa. A nossa luta vai ao encontro de um projeto de desenvolvimento de inclusão e responsabilidade com os recursos naturais, que é o que precisamos ter principalmente nesse momento em que se discute tanto a necessidade de cuidar do ambiente. Enquanto militantes da luta pela Reforma Agrária, precisamos entender essa nova fase do capitalismo no campo para termos a capacidade de nos organizar nessas frentes, tanto na parte da organização da luta quanto na disputa das idéias na sociedade.

BALANÇO
Pior ano em desapropriações

O governo Lula teve o seu pior desempenho com os 204,5 mil hectares desapropriados em 2007, o que representa menos de um terço da média anual de 682,5 mil hectares do primeiro mandato (2003-2006). Em comparação com 2006, (538,6 mil), a queda foi de 62%.

Com esse baixo volume, o governo não conseguiu atingir a própria meta anual de famílias assentadas. Foram assentadas, de acordo com a imprensa, cerca de 67 mil famílias. A meta era 100 mil. O volume de 2007 ficou abaixo também da média de 465,7 mil hectares desapropriados nos três últimos anos da gestão tucana de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Os números confirmam avaliação do MST de que a Reforma Agrária deixou de ser uma prioridade do governo Lula, que fez uma opção pela monocultura para exportação do agronegócio, que concentra terra e destrói o ambiente, beneficiando somente empresas estrangeiras e latifundiários.