O discurso ecotecnocrata

Por Maurício Torres*

Sucessivos governos apostaram na implantação do grande capital como sinonímia de progresso e desenvolvimento para a Amazônia. A presunção geopolítica da região como um deserto demográfico foi vital para a adesão desse investidor e os subseqüentes saques cometidos contra as florestas e seus povos. Os habitantes originais – índios, seringueiros, castanheiros, quilombolas e tantos outros – não contavam, era como se não fossem gente.

Agora, sob o manto da preservação ambiental e do axioma do “desenvolvimento sustentável”,
o Estado cria um marco regulatório para a continuidade dessa pilhagem histórica. A Lei de Gestão de Florestas Públicas (LGFP) estabelece um aparato político e jurídico para ordenar o território de modo a – novamente – viabilizar a grandes grupos econômicos o acesso aos recursos florestais.

Os formuladores da Lei partiram da míope crença de que as florestas públicas eram “subutilizadas” e teriam de impulsionar a economia e gerar renda. “É a economia da floresta que vai salvar a floresta”, diz o diretor do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), Tasso Azevedo.

Apoiados em uma pseudomodernidade racional sem outra perspectiva além do lucro, tentam justificar a importância da matas pelo quanto elas podem ser úteis ao “homem moderno”. Como se a ponderação ética sobre a diversidade social e biológica não fosse suficiente para motivar a vida da floresta e de seus povos, embasa-se a importância da natureza enquanto “recurso”, matéria-prima à espera de seu destino inequívoco: mercadoria.

Privatização, internacionalização

O SFB insiste em omitir o óbvio. É fato, o regime de concessão não privatiza a terra. Entretanto, as diversas críticas deixam claro: o modelo adotado privatizará o uso da terra e os recursos florestais. Isso, necessariamente impede o acesso à floresta às populações que dela vivem. Parece anunciar-se
uma nova era em que o controle do território se dará pelo domínio de seus recursos.

Também é pueril argumentar que as concessões não favorecerão as empresas internacionais. Ora, a publicização das ações de madeireiras multinacionais na Amazônia levou o Congresso a instalar uma comissão destinada a averiguar a aquisição de madeireiras e serrarias brasileiras por grupos asiáticos. O alarmante relatório mostra, inclusive, como essas empresas ganham verniz verde-e-amarelo ao “adquirir empresas já estabelecidas ou fazer joint ventures com empresários e alinhavar coalizões de interesses que os defendessem”. (www.abordo. com.br/~gilneyviana/relatocomp.htm).

Elder de Paula, professor da Universidade Federal do Acre, explica, ainda, que o abastecimento das grandes corporações que controlam o comércio internacional de madeira foi a verdadeira motivação da LGFP. “Houve intensa pressão internacional com a elaboração de parâmetros e sua imposição aos países detentores de ‘estoques’ de florestas tropicais. O agronegócio internacional da madeira abocanhará cerca de 13 milhões de hectares de florestas numa primeira tacada, podendo chegar a 50 milhões, por concessão de até 40 anos.” E o circo se arma: em novembro foi sediado em Santarém (PA) o Fórum Internacional de Madeira Tropical, promovido pela Associação Técnica
de Madeira Tropical. O tema principal foi a apresentação de como são as concessões na África, e como serão no Brasil.

Um grande bem da LGFP seria o (prometido) baixíssimo impacto ambiental da atividade das madeireiras sob concessões. De Paula comenta como “artigos, cartilhas e manuais de ‘manejo’ formaram um consenso em torno da sustentabilidade da exploração madeireira. Isso reproduz o
credo na infalibilidade da ‘autoridade tecnocientífica’ na racionalização sobre a natureza
na Amazônia”.

Passou-se ao largo de reconhecidos nomes como Aziz Ab’Saber, que, em entrevista à Agência Brasil, criticou os formuladores da LGFP: “Sempre dizem que os projetos são baseados em debates com pessoas que conhecem as regiões. Não houve um projeto correto com cientistas, com gente
que conhece o Nordeste Seco, o Vale do São Francisco ou a Amazônia”.

Experiências desastrosas

Também o pesquisador Niro Higuchi, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), alertou sobre a falta de garantias dessa exploração para a saúde da floresta. Segundo Higuchi, o modelo de concessões trouxe conseqüências desastrosas nos países onde foi adotado: “Serra Leoa, Nigéria, Uganda, Gana, Tailândia, Filipinas, Malásia, Indonésia, Vietnã, Laos. A lista é grande e não há exemplo de melhoria de qualidade de vida. Em todos, a população local continua pobre e, o pior, sem a floresta”.

O SFB promete uma revolução no controle à extração ilegal de madeira com a implementação da LGFP. Ora, a lei, por si, nada ou pouco acrescenta. Desmatamento e roubo de madeira já são crimes previstos pela legislação. Não há por que crer que a criação de novas regras surtiria maior obediência. Mesmo com um pequeno volume de licenças para extração madeireira, o Estado não tem controle algum sobre a destruição da Amazônia.

Com o expressivo aumento das licenças em virtude das concessões, a situação tende ao caos completo. Apenas como exemplo, no Pará, o Ibama necessitaria de um aumento de verbas e de efetivo na ordem de 1.200% para fiscalizar a extração madeireira.

Plano infalível?

O anúncio de mirabolantes e infalíveis sistemas de monitoramento remoto por meio de imagens de satélite e radares é mais um dos enganos que o SFB quer fazer vingar.

Ricardo Folhes, coordenador do Laboratório de Geoprocessamento do Projeto Saúde e Alegria, reconhece que, apesar dos avanços dos sistemas de monitoramento da Amazônia, “há obstáculos para o alcance dos resultados prometidos pelo SFB, a presença constante de nuvens na Amazônia é um deles e a alternativa de obtenção de imagens de radar, como o do Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), para o qual as nuvens não são impedimento, esbarra na insuficiência de técnicos habilitados para processá-las, nos altos custos envolvidos e na necessidade de parametrizações no próprio radar”.

Seja por limitações técnicas ou operacionais, Folhes conclui: “Nenhum sistema atual ou a ser lançado nos próximos anos vai permitir monitoramento em tempo real como vem sendo alardeado pelo SFB”.

Sintomaticamente, desde 1970, quando foi feito o primeiro mapeamento em larga escala na Amazônia pelo projeto Radam- Brasil, há um expressivo banco de dados sobre a distribuição dos recursos naturais, mas quase nada sobre os povos a quem os territórios pertenciam. Na mesma linha, o SFB sabe sobre o potencial madeireiro da Amazônia, mas não tem registro da ocupação
da floresta.

Áreas ocupadas por populações tradicionais acabarão por ser leiloadas a grandes empresas. E há tristes prenúncios disso. O governo do estado do Pará, em 2006, concedeu autorizações para extração madeireira nos rios Uruará e Arapiuns. Nos dois casos, houve conflitos violentos envolvendo as comunidades locais.

Jacó Piccoli, antropólogo e professor da Universidade Federal do Acre, teme pela população indígena, pois há a ameaça de que as concessões sobreponham-se a áreas de ocupação indígena ainda sem seus territórios reconhecidos: “Só no Acre, há pelo menos sete terras indígenas a serem
definidas, contando apenas os povos já integrados”.

Além disso, há vastas áreas ocupadas por povos não contatados. “Na fronteira Brasil-Peru, sabe-se de, no mínimo, seis povos nessa situação, também sem territórios reconhecidos.” Com as concessões, Piccoli explica que “haverá proximidade, quando não sobreposição, entre as terras ocupadas por índios isolados e as atividades das madeireiras. Isso provocará contágio endêmico de conseqüências imprevisíveis. Populações inteiras poderão, da noite para o dia, ser dizimadas”.

O ipê e as castanhas

As garantias da LGFP de que os produtos de uso das comunidades tradicionais serão excluídos das concessões também são falaciosas. Mesmo porque não há suficiente conhecimento para isso. Ao tirar uma porcentagem de determinadas espécies da floresta, tem-se um desarranjo nem sempre previsível. Há casos de locais ocupados por coletores de castanha de onde se extraiu apenas o ipê. Descobriu-se, tarde demais, que essa era uma árvore importante ao agente polinizador das castanheiras. Resultado: esgotou-se a produção da castanha.

As florestas sempre estiveram em uso por pessoas que dela sobrevivem e reproduzem seu modo de vida com suficiente tecnologia para permitir que a mata se renove. Só com o reconhecimento do direito ao território dessa gente teremos uma forma social e ambientalmente efetiva de manter o estratégico recurso que é a biodiversidade. Até porque o conhecimento que existe sobre a biodiversidade é o saber que parte dos povos da floresta.

Contudo, pela visão do atual governo federal, esses povos impedem a apropriação, pelo mercado, desses recursos. Mas, com a LGFP, os “obstáculos” serão expulsos ou reduzidos a pequenos madeireiros ou empregados de madeireiras. Nesse desenrolar, essas pessoas serão submetidas a um processo de invalidação cultural: o amplo rol de saberes, fruto de gerações de convivência com a floresta, pouco ou nada vale no novo sistema de trabalho, que se limita a tarefas braçais e fragmentadas.

Teremos, então, novas formas de pobreza social e de degradação ambiental. Mas isso também é visto, por alguns, como desenvolvimento.

*Maurício Torres é sociólogo