As novas facetas da violência no campo

Por Nina Fideles

Por Nina Fideles

Há 12 anos, 19 companheiros Sem Terra foram assassinados pela Polícia Militar do estado do Pará, no conhecido Massacre de Eldorado dos Carajás. Após dois anos, no mesmo estado, os companheiros Fusquinha e Doutor também foram vítimas da violência do latifúndio. No dia 30 de março, o trabalhador rural Eli Dallemole, 42 anos, foi executado dentro de sua própria casa no Paraná. Meses antes, Valmir Mota de Oliveira, o Keno, foi morto em ataque de empresa de segurança privada contratada pela transnacional Syngenta. E podemos citar tantos outros: Felisburgo, Unaí, Corumbiara, Camarazal…

A violência do latifúndio tem se manifestado ao longo dos anos com suas diversas facetas. A presença das empresas transnacionais e a utilização cada vez mais freqüente de milícias armadas colocam novos elementos na luta pela Reforma Agrária. Desde 2005, foram mortos 18 companheiros do MST e 87 foram presos. Estudo da Secretaria Especial de Direitos Humanos apontou que em todos os estados onde estamos organizados têm militantes ameaçados de morte.

É o mais moderno do agronegócio, para a acumulação do capital, e o mais arcaico do latifúndio. Em entrevista ao Jornal Sem Terra, o advogado da Terra de Direitos, Darci Frigo, nos fala mais sobre estes novos elementos e o papel do Poder Judiciário.

Com os casos mais recentes de violência praticadas contra militantes de movimentos sociais, percebemos que há uma prática arcaica de pistolagem com uma roupagem moderna do agronegócio. Como isso tem acontecido?

O que aparece nesses novos casos de violência no campo é que aquele velho expediente de organizar milícias privadas, de utilizá-las contra os trabalhadores rurais, está sendo agora utilizado também por outras forças políticas, novos atores. Por exemplo, as empresas transnacionais se valem de uma fachada nova, que são as empresas de seguranças – que em parte estão dentro dos marcos legais, porque têm alvará e licença dada pela própria Polícia Federal, mas que ao agir se utilizam velhos expedientes da pistolagem. Ou arregimentam pistoleiros e jagunços para atacar os trabalhadores. Foi o que aconteceu no caso da Syngenta. Os próprios fazendeiros reconhecem que fazem uso da prática. Existem elementos novos que passaram a fazer parte da ação destas milícias privadas.

E que neste caso criam uma despersonalização dos culpados, dificultando a punição dos crimes?

A Syngenta simplesmente ficou escondida por trás deste contrato com a empresa de segurança. Ela não aparece através dos seus representantes políticos, executivos, aqueles que poderiam falar pela empresa. Só aparecem os advogados, funcionários de baixíssimo escalão. Não sabemos a cara da Syngenta nem quem são as pessoas que em última instância determinam a política da empresa. É de fato uma visão despersonalizada. Na hora de prender, vai prender quem? O chefe da empresa de segurança NF, que coordenou uma operação. Não aparecem aqueles que determinaram a ação. É uma nova forma de os poderosos ficarem impunes e não serem alcançados pelas malhas da legalidade.

E no caso do trabalho escravo?

Assim como as milícias privadas, o trabalho escravo é mantido para a reprodução ampliada do capital sem maiores escrúpulos e sem maiores problemas por parte dos agentes do agronegócio ou pelas empresas da agricultura industrial. Dificilmente vai desaparecer a curto prazo no cenário se a PEC do Trabalho Escravo não for aprovada e a prática de fato se tornar uma pena pesada para o capital, que torne a atividade tão onerosa que vão desistir de utilizá-la. Isso ainda não é suficiente, acho que é preciso sinalizar também para que as relações sociais de trabalho no país possam ter uma outra qualidade. A sinalização, infelizmente, ainda não foi dada na medida suficiente pelo atual governo, afirmando que os trabalhadores que ajudam a produzir os agrocombustíveis também devem usufruir dos direitos inerentes à produção econômica, à riqueza produzida. Não foi dado o recado.

Mesmo diante de novos elementos, o Estado ainda exerce papel fundamental para garantir estes poderes locais. Como se dá isso?

O Estado é muito complexo e não consegue proteger a vida das pessoas. O intento dos latifundiários, das transnacionais do agronegócio, se utilizando das milícias privadas, acaba chegando às ultimas conseqüências. Depois disso, conta com uma cultura majoritária do poder judiciário que é a de proteção ao patrimônio, e não da vida. A impunidade é garantida exatamente porque não se mobiliza o aparelho do Estado para chegar ao verdadeiro responsável pelo crime. O direito à propriedade é tão absoluto, que se cria quase um escudo político, cultural e ideológico que imobiliza todo o aparato de ação nesses casos. Outro foco importante é que estes crimes acontecem também porque há uma paralisação total do processo de Reforma Agrária. Estamos vivendo a crise mais grave, o período mais crítico deste processo dos últimos 14 anos, então a possibilidade de violência aumenta.

Você tem algum exemplo?

Vou pegar o exemplo de Cascavel, que considero mais emblemático para tratar a complexidade do problema atual da violência no campo porque envolve várias facetas, além da transnacional envolve um latifúndio atrasado do ponto de vista político, mas moderno do ponto de vista econômico. No caso Keno, a Polícia Federal resolveu obter uma ordem judicial para uma busca e apreensão das armas. Daí, o juiz negou e aconteceu o ataque. Assim, as forças estabelecidas que continuam com o poder econômico, político e determinando as relações no âmbito local conseguem, em alguma parte do Estado, a garantia de que ou ficarão impunes diante dos seus crimes ou não serão atingidas por conta de algum mecanismo no aparelho do Estado para serem protegidas. Quando os governos dos estados retiram a força pública da repressão, não existe a garantia de que os trabalhadores não vão sofrer violência. Aparece nesse cenário a articulação de milícias privadas.

Qual seria a nova geografia dos conflitos agrários hoje?

Eu vou colocar três elementos que nos ajudam a entender esta geografia. O primeiro deles é o avanço da fronteira agrícola sobre o Cerrado e Amazônia brasileira. Nessa região, a violência persiste ao longo dos anos como uma violência permanente. Se pegar os dados da CPT, os maiores índices de assassinatos são no estado do Pará e Mato Grosso. É uma vertente da violência que continua e se agrava com o apoio às monoculturas do agronegócio e também com o apoio aos agrocombustíveis. O outro fator desta violência diz respeito à invasão das áreas de populações tradicionais indígenas e quilombolas. Em alguns casos, ocorre um ataque mais sofisticado, com a violência simbólica que desmoraliza a luta das populações. Uma terceira vertente para analisar a questão da violência é a própria ação e mobilização dos movimentos sociais.

Isso é uma reação às mobilizações dos movimentos sociais?

No Paraná, por exemplo, o movimento social continua agindo para fazer avançar a Reforma Agrária e denunciar crimes ambientais das transnacionais, como é o caso da Syngenta. Em âmbito nacional, em diversas regiões onde os trabalhadores se organizam existe um processo de violência ou de criminalização. No sentido mais geral, existe esta linha que cruza todas as fronteiras que é de se atacar os movimentos sociais, as forças populares e desmoralizá-los por meio de um combate permanente colocando que os movimentos estão contra o progresso, contra a legalidade, enquanto que simplesmente se isentam as forças econômicas e políticas que hoje articulam estas ações contra as forças populares.

A CPT vem registrando um aumento em números de conflitos pela questão da água. O que isso representa?

A água, que era uma questão que estava fora das agendas há cinco anos atrás, passou a ser uma questão central. Há um processo cada vez maior de mercantilização da água e um problema de acesso, que não é um problema de escassez. Escassez é uma regra do capitalismo para transformar tudo em mercadoria para depois vender. Nós estamos vivendo, em algumas regiões, conseqüências da privatização de hidrelétricas, ou de mudanças no regime da concessão de administração da distribuição da água. Os movimentos sociais passaram a perceber que os grandes projetos, não vão só excluindo as populações de seus territórios, mas também de acesso a todos os recursos naturais, inclusive à água. Antes, tendo acesso à terra, teria também à água.Hoje não é bem assim. As lutas na região da transposição do São Francisco são reações ao modelo de desenvolvimento baseado em grandes obras que não resolvem os problemas da maioria da população. Há uma nova concepção por parte dos movimentos sociais, que entra em conflito com o processo de apropriação da água pelas forças econômicas mais poderosas.

Quais são os principais limites do poder judiciário para se fazer valer a Constituição que determina a RA?

Não podemos mais olhar o poder judiciário como um bloco monolítico. Temos que começar a dialogar com setores que nos últimos anos tem observado os problemas sociais numa ótica diferenciada. E não é a aplicação da lei que vai resolver os problemas sociais. Existem setores minoritários que hoje estão presentes no judiciário e que são uma pequena janela para a sociedade no sentido de democratização deste poder. Mas o poder judiciário tem uma visão majoritária “patrimonialista” e não está permeável nas suas decisões e em sua estruturação, para assumir as questões sociais e os direitos humanos como parte fundamental da sua percepção dos problemas e das decisões que toma para resolver estes problemas. Então, o poder judiciário reforça no dia-a-dia a proteção das forças mais conservadoras da sociedade e continua sendo um aparelho de criminalização e de reforço ao medo que se abate sobre as camadas mais populares.

Quais as iniciativas no âmbito da justiça para se frear tamanha arbitrariedade no campo?

Nós temos que pensar em instrumentos que possam fiscalizar e monitorar o Estado nos âmbitos das polícias e no poder judiciário. Temos que ter um olhar mais crítico e também mais profundo das contradições destas instituições e que são uma barreira para que a gente possa transpor questões como a impunidade, criminalização e violência contra os pobres. Deveríamos ter uma espécie de observatório do conselho nacional de justiça para acompanhar o poder judiciário e denunciar os crimes que eles cometem, mas também por outro lado, poder dialogar com setores internos que querem um poder mais democrático. E continuar fazendo denúncias públicas, mobilizações, manifestações e buscar alianças com setores da classe média e ir aos poucos rompendo algumas barreiras que tem impedido o avanço das lutas sociais no Brasil. Se fosse um tempo de fortes mobilizações sociais, de ação política, poderíamos dizer que isso é secundário, mas neste tempo de refluxo, em que não temos possibilidade de pautar uma mudança profunda na sociedade brasileira, é preciso estabelecer canais de diálogo e de mudança nestes campos específicos. O judiciário tem que entrar na pauta política dos movimentos sociais como problema e como parte da solução dos problemas.

Como a sociedade vê as ocupações de terras e ações de movimentos sociais no campo?

A mídia mudou bastante a opinião de pessoas que eram simpáticas à própria luta social. Os grandes meios de comunicação têm desmoralizado e atacado os movimentos sociais e as lutas populares. Por isso, o trabalho de divulgar uma informação que seja muito mais próxima da realidade dos fatos é um desafio muito grande. É preciso romper este bloqueio e colocar uma visão alternativa para a opinião pública, para que a gente possa atingir as questões essenciais que podem mudar de forma permanente as relações na sociedade por relações mais igualitárias e justas.