Fazendeiros burlam recadastramento fundiário na Amazônia

Da Repórter Brasil
Por Maurício Reimberg

Após um mês do término do prazo estabelecido para o recadastramento das propriedades rurais nos 36 municípios prioritários escolhidos no esforço do governo federal para o combate do desmatamento na Amazônia Legal, permanece a queda-de-braço entre os fazendeiros e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Do total de 15,4 mil imóveis com área superior a 400 hectares existentes nesses 36 municípios (que foram escolhidos como foco da iniciativa governamental), apenas 3.080 (20%) protocolaram a documentação necessária para iniciar o processo de recadastramento fundiário.

“Nós temos informações externas de que houve dificuldades para elaborar as peças técnicas”, afirma Richard Torsiano, diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra. Para comprovar a titulariedade ou posse pacífica, os donos ou posseiros das terras deveriam entregar a planta, o memorial descritivo (com as coordenadas geográfica) e as Declarações para Cadastro de Imóveis Rurais. O processo teve início em 3 de março e se encerrou em 1º de abril.

O Incra articulou um aparato exclusivo para a operação. Ao todo, 40 escritórios foram organizados em seis Superintendências Regionais da entidade espalhadas pela região. A autarquia federal mobilizou 200 servidores, canalisando um montante de recursos de aproximadamente R$ 4 milhões. Os alvos das ações estavam restritos a quatro Estados: 19 municípios no Mato Grosso, 12 no Pará, 4 em Rondônia e 1 no Amazonas.

O recadastramento é uma determinação do Decreto Presidencial 6.321/2007, editado em dezembro do ano passado, que estabeleceu um conjunto de medidas que visam a “prevenir”, “monitorar” e “controlar” o desmatamento ilegal na Amazônia. O decreto também prevê medidas como a exigência de comprovação de regularidade ambiental, para que proprietários rurais tenham acesso ao crédito agropecuário, e o embargo de áreas desmatadas ilegalmente.

Segundo Richard Torsiano, a falta de informações também pode ter “retraído” os proprietários. “Principalmente na Região Norte existem várias posses em terras públicas e propriedades com problemas ambientais”, diz. Apesar dos resultados, ele não considera o saldo da operação negativo. “Cerca de 8,6 mil pessoas entraram em contato conosco, procurando informações sobre o processo. No mínimo, elas buscam resolver o seu problema”, acredita.

Boicote e impasse

O diretor do Incra admite a hipótese de que pode ter ocorrido uma resistência organizada dos produtores. “Em alguns municípios, havia faixas de entidades de classe dos fazendeiros, chamando ao não-recadastramento”, conta. Já Leôncio Brito, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), garante que não houve “boicote” dos fazendeiros. Para ele, a questão se resume à “falta de alternativas”.

“É muito fácil falar que houve boicote. Os produtores não têm o apoio dos governos constituídos. Só do Blairo Maggi (governador de Mato Grosso). Quando estão no desamparo do governo, eles vão se defender como podem”, coloca. Os fazendeiros que não atenderam ao edital de recadastramento tiveram o registro inibido no Sistema Nacional de Cadastro Rural. Desse modo, o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) fica sem efeito, e o proprietário impedido de realizar transações imobiliárias ou obter financiamentos agrícolas.

A CNA exigia a prorrogação do prazo por mais dois anos. O governo manteve o período de 30 dias estabelecido pela Instrução Normativa nº 44, que detalha a execução do decreto. A não-prorrogação gerou revolta no setor. Brito classifica a iniciativa do governo como “precipitada”. Ele argumenta que é impossível concluir o georreferenciamento, mapa preciso com os limites da propriedade exigido pelo Executivo federal, dentro do prazo de 30 dias.

“É uma técnica de muita exatidão. Precisa ser realizada por profissionais capacitados”, critica Brito. O georreferenciamento é considerado um instrumento importante, pois serve como base para o governo monitorar o desmatamento e punir os responsáveis. Além disso, o sistema atribui confiabilidade aos dados.

Richard Torsiano discorda do argumento da CNA. “Houve tempo hábil. O prazo era exeqüível. Os produtores têm condições de fazer o georreferenciamento. Os municípios já sabiam com antecedência que seriam objetos de recadastramento”, afirma. Os escritórios abertos pelo Incra exclusivamente para o recadastro já foram desativados. Torsiano, no entanto, ressalta que a autarquia federal “não fechou as portas” para os fazendeiros. “Continuamos com o processo. O recadastramento é uma ação ordinária”.

No entanto, o impasse está longe de uma solução. Leôncio Brito, da CNA, insiste que a idéia inicial da entidade é encaminhar a conversa “administrativamente”. “Se não tiver solução, iremos esgotar os recursos jurídicos”, promete. A Federação da Agricultura de Mato Grosso (Famato) ingressou com um mandado de segurança na Justiça Federal contra o decreto que estabeleceu a exigência do recadastramento dos imóveis nos 36 municípios críticos da Amazônia.

Entraves históricos

O coordenador da campanha Amazônia do Greenpeace, Paulo Adário, afirma que a primeira conclusão gerada pelo impasse é a de que a credibilidade do governo “anda em baixa”. Segundo ele, os produtores estariam “apostando na impunidade”. “De um lado há descrença na ação do governo. De outro, há o medo dos produtores em perder as suas terras”, explica.

O ativista ambiental acredita que uma parte dos produtores simplesmente não têm condições de se cadastrar. “Ou não têm documentação adequada de suas terras ou possuem terras griladas. Há problemas de confiabilidade no histórico dos títulos. Além disso, grande parte deles não respeita o Código Florestal”, diz. A lei citada por Paulo Adário prevê a preservação de 80% da floresta nativa em propriedades rurais no bioma amazônico.

Não é a primeira vez que o Incra tenta impor um processo de recadastramento na região. Em dezembro de 2004, a autarquia baixou uma portaria obrigando o recadastramento de imóveis acima de 500 hectares. Na época, quem não se recadastrasse ficaria ameaçado de não conseguir financiamento oficial. “Esse recadastramento não foi respeitado”, lembra Paulo Adário.

O coordenador do Greenpeace afirma que a disputa entre o governo e os fazendeiros exemplifica, num mesmo episódio, os dois entraves históricos que bloqueiam as tentativas de consolidar políticas públicas na Amazônia. De acordo com ele, a dificuldade de colocar em prática as leis formuladas e, sobretudo, a falta de “comando” e “controle” causada pela ausência do Estado, seriam os principais motivos do desmatamento da Floresta Amazônica.

Para ele, no entanto, a batalha ainda não está resolvida. “O governo está com o desafio na mão de fazer cumprir a lei. Se recuar, vai ficar numa situação complicada”, prevê. O ambientalista lembra que as crescentes pressões no plano internacional podem fazer com que o governo endureça o processo de recadastramento. “O país vende no exterior a idéia de expansão dos biocombustíveis sem risco à Amazônia e vai precisar convencer a opinião pública internacional e os demais países”, conclui.