Assentamento, espaço de organização

Por Danilo Augusto
Para o Jornal Sem Terra

A enorme influência do capital financeiro dentro da agricultura começa a refletir no dia-a-dia da população mundial. O que antes parecia ser um problema das comunidades rurais, hoje afeta diretamente a vida de toda a sociedade. Aquecimento global, monocultivo, aumento excessivo nos preços de alguns alimentos são apenas algumas conseqüências desta influência.

De acordo com Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o preço da cesta básica aumentou mais de 9% em 11 capitais brasileiras somente nos quatro primeiros meses desse ano.

O feijão – alimento fundamental na mesa do brasileiro – teve reajuste de preço de quase 150% no último ano. Recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU), divulgou um documento criticando o atual modelo de agricultura, impulsionado pela chamada “Revolução Verde”, que aumentou a produtividade no campo, mas não foi capaz de impedir que mais de 800 milhões de pessoas continuem passando fome no mundo. No documento, outras críticas foram feitas aos agrocombustíveis e ao desenvolvimento de produtos transgênicos.

Para entender a proposta de agricultura e de Reforma Agrária defendida pelo MST, o Jornal Sem Terra, entrevistou o integrante da direção nacional do Movimento, José Batista de Oliveira. Ele fala sobre o papel do assentamento no combate ao modelo imposto e qual o papel das famílias que conseguiram suas terras pela Reforma Agrária e ainda relata fatos que transcendem a vida do assentamento. Leiam a entrevista.

Zé Batista, Como um assentamento deve ser compreendido?

Sempre estivemos atentos a esse debate de pensar o assentamento não somente como a conquista da terra. Pensar o assentamento como um espaço de organização do MST deu uma solidez ao Movimento. Levamos sempre em conta várias dimensões das vidas das famílias. Vidas que vão além das questões econômicas mas que não deixam de pensar a renda das famílias. Mas que pensam também na lógica de resistência, que é o caso da educação, cultura, lazer, saúde e esporte. Pensar em assentamento é pensar em organização da produção, pensar em cooperação, educação voltada para a realidade do campo e em uma educação transformadora. O assentamento é muito mais do que pensar produção e viabilidade.

Qual seria essa lógica de resistência?

O assentamento passa por um processo de luta, de enfrentamento e resistência onde temos que pensar em todas essas dimensões. Tendo em vista que os assentamentos são espaços, territórios de disputa permanente. Isso porque em mais de duas décadas de lutas não conseguimos implementar a Reforma Agrária que nós defendemos. Nessas duas décadas os inimigos não conseguiram derrotar o Movimento, nem derrotar a proposta de Reforma Agrária. Então, o assentamento é resultado de um conflito que origina em um projeto não concluído de implementação do nosso projeto político.

Qual é a principal forma de ataque do capital dentro dos assentamentos?

Na lógica e ofensiva do capital, o território por nós conquistado ainda continua sendo disputado. Principalmente pelo fornecimento de sementes modificadas, sementes melhoradas, fornecimento de insumos químicos. Por exemplo, no estado de São Paulo, com a cana-de-açúcar, eles tentam desmoralizar o projeto político do MST. De que maneira? Inviabilizando a produção diversificada do alimento por meio da monocultura, por meio de arrendamento, ou seja, de estrutura física do assentamento. Sem contar da disputa ideológica com os meios de comunicação que são voltados para a lógica de mercado, a lógica do capital.

De que maneira o assentado deve resistir à este ataque?

Resistir no assentamento não é resistir somente à entrada do capital dentro do mesmo. A resistência é a implementação do oposto desse modelo. Os espaços dos assentamentos são para pensar a renda, produção, cultura, moradia, saúde, subsistência e até mesmo o próprio mercado com uma outra matriz de produção e filosofia de vida. Principalmente por meio da agroecologia, preservação e defesa ambiental. Com isso, o assentamento passa a ser um espaço de resistência para implementar aquilo que acreditamos, o que traduz nosso projeto político. O assentamento deve ser um território onde nossas experiências se comuniquem com a sociedade, que fique evidente a diferença de projeto no embate ideológico. Que seja um espaço que a sociedade possa interagir, ser um espaço de debates políticos.

O aumento nos preços dos alimentos atualmente é um dos principais temas discutidos em vários espaços. Diante disso qual contribuição pode ser dada por um assentamento no combate a essas práticas?

A produção de alimento passa pelo inverso do monocultivo. Nossas experiências práticas já são modelos contra essas práticas. O assentamento por si só já é anti-monocultivo. As famílias, ao se instalarem na sua terra, já produzem seu pomar, criam seus animais, ou seja, produzem para a subsistência e o excedente vai para o mercado. Ao ter várias famílias em uma comunidade, você vai ter a possibilidade de cada família ter uma diferenciação naquilo que produz. Mesmo que se pensando na produção coletiva, as famílias irão pensar em várias linhas de produção diversificada. Todas essas linhas são voltadas para a produção de alimentos.

E qual seria o desafio principal diante deste modelo?

O desafio dos assentamentos é cada vez mais pensar no equilíbrio, no abastecimento do mercado local e na biodiversidade como algo para ser potencializado e não destruído. Estamos desenvolvendo em assentamentos experiências que caracterizam pensar para a atualidade, pensar no combate ao aquecimento global, na falta de alimento, na expansão da monocultura e da destruição do meio ambiente por grandes empresas. É possível produzir o óleo vegetal para mover nossas máquinas sem prejudicar o meio ambiente e sem deixar de produzir alimentos. Temos um potencial dentro dos assentamentos de servir como marco referencial para o modelo de agricultura que o país precisa priorizar, que é a produção de alimentos.

Como o assentado fortalece a agroecologia, partindo da proposta política de produzir alimentos saudáveis sem o uso de agrotóxico?

A agroecologia é uma filosofia de relação entre homem e natureza. Produzir de forma que não agrida o meio ambiente e a natureza é produzir a favor de potencializar a biodiversidade. A agroecologia protege as sementes e usam-se menos produtos químicos. Pensar nossa produção de alimentos é pensar em que matriz tecnológica vamos produzir sem degradar o meio ambiente. Essa lógica de lucro que é colocada pelo capital não nos interessa. O que nos interessa é a lógica onde a vida esteja acima do lucro. A produção da vida das famílias assentadas e das comunidades dos assentamentos, não deve ser com base na exploração do trabalho, monocultura e muito menos na produção de alimentos envenenados para as pessoas que vão consumir. Pensar em agroecologia é pensar cada vez mais em diminuir a dependência de compras de insumos, venenos e semente.

Qual o papel do assentado dentro da luta por Reforma Agrária?

O nível de enfrentamento e de luta é muito forte, tendo em vista que os inimigos da Reforma Agrária avançam. Logo todos os assentamentos podem participar da luta diariamente. De que maneira? Por meio da produção agroecologica, da diversificação, do enfrentamento contra o capital. Que o assentamento possa ser um espaço de relação com a sociedade, por meio do fornecimento de alimento, debate político, valorização da cultura, do gênero e solidariedade naquele território. As famílias agindo dessa forma, estão inseridas no projeto político do MST.

Isso porque 24 horas por dia estarão fazendo esse embate. Outra maneira de apoio e resistência é preparar e liberar militantes para atuarem na luta, contribuir com acampamentos através da solidariedade da produção de alimentos. Essa participação da vida ativa do Movimento é um salto de qualidade fundamental para esse momento.

Como o cooperativo deve ser entendido dentro do mesmo?

A cooperação é a principal base de organização dos assentamentos. É uma estratégia. Não devemos pensar na cooperação somente no nível formal, aquela que tem estatuto e presidente. Cooperação é pensar a implementação naquilo que acreditamos ser ideal para o campo. Vai desde as formas mais simples que são os mutirões, até as formas mais complexas que são investimentos coletivos. Ao juntar várias famílias para pensar o mercado você tem mais condições do que pensando individualmente. Cooperação é uma ferramenta de organização, resistência e de busca de melhores condições para as famílias viverem no campo. Nossas escolas e centros de formação funcionam como grandes espaços de fomentar a experiências e cooperação relacionadas com outros autores da sociedade. O nosso exemplo é o próprio MST, que é fruto dessa experiência de cooperação tanto externa como interna.

Em relação aos créditos agrícolas. De qual maneira ele pode ser utilizado?

O crédito deve ser usado para a organização das famílias, por meio da produção, diversificação e comercialização dos produtos. O crédito serve como um impulso no processo de estruturação do assentamento, embora os recursos sejam parcos, não suficientes para estrutura a produção, agroendústria e assentamento. Ao trabalhar de formar cooperativada você tem a possibilidade de juntar os créditos entre as famílias. Essa ação facilita e potencializa os assentamentos. O crédito deve funcionar como uma ferramenta que ajuda no debate de organização. Ao pegar esse crédito deve haver um amplo debate de concepção do assentamento, de projeção, de como serão realizadas as atividades produtivas futuras. Se isso não for projetado com viabilidade técnica a partir da realidade local que envolve clima, potencial e produção, o crédito que vem para solucionar, acaba virando um problema de endividamento, por isso, a importância do debate na hora da utilização do crédito.

A ação do capital na industria farmacêutica. Como o assentado pode aproveitar seu espaço para produzir meios alternativos de medicamentos para fugir da dependência desta indústria?

A saúde é uma questão de equilíbrio. Se você conseguir resolver o problema da alimentação, consumindo alimentos sem agrotóxicos, você consegue eliminar a base principal do mal da saúde humana. Se o assentado parar de usar os produtos químicos, parar de se envenenar, ele deixa de usar remédios. Fora isso, a diversificação da produção permite uma estruturação da prevenção.

Já avançamos muito no MST em relação à “manipulação” de plantas. Que é a secagem, a produção de xaropes naturais, extração de essências de plantas nativas. Mas o desafio ainda é integrar essa prática na produção. E entender o potencial dessas plantas medicinais. Transformar em atividade esse cultivo, tanto para o uso interno do assentamento como para o mercado. Temos que fugir da lógica de usar a indústria farmacêutica. As mesmas indústrias que produzem venenos, produzem também os remédios, como é o caso do Bayer. Nosso princípio deve ir além de produzir alimentos saudáveis, e também produzir remédios preventivos e naturais.

Como deve ser realizada a formação dentro dos assentamentos?

O assentamento sendo pensado como projeto político que a classe trabalhadora deseja para si já é uma escola de formação. A busca pela escola, pela escolarização é fundamental. Temos a oportunidade em nossos territórios de construir escolas adequando à realidade do campo uma educação libertadora. Exigir do Estado, por meio de mobilizações, a construção de escolas nos assentamentos como forma de elevar o conhecimento e o nível cultural.

É impossível você avançar em uma concepção de assentamento, de agroecologia e produção sem elevar o nível de conhecimento, nível de leitura. A educação é tão importante quanto a conquista da terra, do crédito, da casa e de outras demandas para a sobrevivência das famílias. Sem elevar o nível de conhecimento teremos muita dificuldade de transformar a sociedade no seu conjunto.