Terra, esperança e fé

Do A Tribuna
Por Ronaldo Abreu Vaio

Esta reportagem é sobre uma saga de sobrevivência. Os protagonistas são 32 famílias e uma terra que, longe de ser prometida, desde sempre fora sonhada. Começa numa estrada vicinal, na altura do Km 37 da Rodovia Anhanguera, em Cajamar, na Região Metropolitana de São Paulo. Cerca de 20 quilômetros a dentro, na direção de Pirapora do Bom Jesus, entra-se em terras da antiga fazenda São Luiz e o asfalto dá lugar à terra bruta.

Os sons de motores e as ultrapassagens na rodovia transformam-se em trinados de pássaros voando em paralelo, à frente do carro da reportagem. Na serra ao redor, uma muralha verde invade o olhar: eucaliptos a perder de vista. De repente, num aclive, à esquerda da estradinha de terra, surgem casinhas de madeirite, sobre toras de eucalipto servindo de vigas.

Pouco melhores do que barracos, várias das casas são de chão de terra batida e possuem, no máximo, três cômodos. Ao contrário do panorama típico das favelas das grandes cidades brasileiras, onde a regra é o amontoado humano desordenado, entre cada casinha há um espaço de terra, onde se cultiva uma horta, criam-se galinhas ou que simplesmente serve de quintal. Cada casa representa também o início da concretização de um sonho bastante comum:o de uma vida digna. Bem-vindos ao Assentamento Comuna da Terra D. Pedro Casaldáliga, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Valor da necessidade

“Engraçado como a gente cai em contradição com a gente mesmo: porque eu não acreditava que ficaria desse jeito”, confessa Jonas Ferreira Bahia, sobre a caminhada do assentamento, que já dura quase sete longos anos. “Nossa intenção não é ficar aqui, sugando. Queremos cuidar de tudo, para que, daqui a 50, 100 anos, a gente possa continuar cultivando a mesma coisa, na mesma terra”, diz, enquanto passeia pelas alamedas da horta comunitária, que reúne 16, das 32 famílias, e já produz repolho, salsinha, coentro, couve, alface, milho, entre outras verduras e legumes, em quantidade suficiente até para a venda externa.

Apesar da fome não existir no D. Pedro e das famílias confirmarem que a vida é muito melhor da que levavam anteriormente, o acesso a alguns víveres ainda é limitado. Carne, por exemplo, ou, como dizem, a “mistura”, ainda é um artigo para ocasiões muito especiais. Mesmo assim, Jonas não se furtou a repartir sua casa e sua comida com a equipe de A Tribuna. “Tem uma coisa bonita que acontece aqui… se eu tô precisando de arroz e o meu vizinho de sabonete, por exemplo, e cada um tem o que o outro precisa, nós trocamos, sem pensar no valor das coisas: o que impera é o valor da necessidade de cada um”.

Tratamento biológico

Assim que chegamos, fomos recebidos com certa desconfiança pelo representante do assentamento, Flávio Barbosa de Lima. Mas, um par de telefonemas depois, tudo se resolveu. Em seguida, justificou a precaução. “A gente já teve problemas com a imprensa, que nem sempre fala a verdade como ela é”. Por isso, fez questão de nos acompanhar numa caminhada pelos arredores para mostrar um pouco dos planos e da rotina do assentamento. Enquanto caminhávamos, éramos perseguidos pelo som incessante das moto-serras a todo vapor, derrubando os eucaliptos que formam um cinturão nos morros ao redor.

“Se preocupam tanto com a gente, que só estamos tentando sobreviver, e de forma sustentável, e não ligam para isso que está acontecendo aqui”, sorri, irônico. Aliás, sustentabilidade e ecoprodução são palavras de ordem no assentamento, repetidas como mantras. Tanto que, a primeira coisa que chamou a tenção durante a caminhada, foram dezenas de manilhas, ou tubos de concreto, espalhados pelas terras.

“Uma das nossas propostas, junto com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária),é fazer a fossa séptica, onde os dejetos passam pelos tubos e saem tratados”, explica. Nas manilhas serão depositadas areia de vários tipos e pedras, simulando a composição do solo. Dessa forma, os dejetos são absorvidos e trabalhados por bactérias ­ num processo análogo ao da própria natureza. Assim, a água passa por uma espécie de filtragem, ressurgindo com alto índice de purificação.

Embora imprópria para o consumo humano, pode ser reaproveitada na agricultura. “A nossa proposta é de reestruturar a natureza e não danificá-la; queremos mostrar para a sociedade, por exemplo, o que nós fazemos com o nosso esgoto, que vai ser tratado, e não vai ser jogado no Meio Ambiente”. Mas, por enquanto, os dejetos são depositados em fossas abertas na proximidade das casas. Já o suprimento de água potável e para banho ­ de canequinha, diga-se ­ éfeito apartir de um poço artesiano, onde foi instalado um motor que bombeia a água para todas as casas. O motor tem, inclusive, a única ligação elétrica de todo o assentamento.

Uvas

Mais adiante, na estradinha de terra, um descampado e as marcas do último uso que foi feito da fazenda São Luiz, antes de se transformar em assentamento. Pelo solo, restos de tijolos denunciam uma construção de alvenaria onde funcionava uma olaria ­ uso muito discreto para os cerca de 120 hectares da propriedade e altamente degradante para o solo. Agora, no local, estão erguendo uma edificação em blocos de cimento, que será a futura fábrica de farinha de mandioca do assentamento. “Estamos comprando a aparelhagem com a ajuda de uma ONG”.

A tarde já ia pela metade e Flávio ainda tinha muito trabalho pela frente. Convidou-nos a acompanhá-lo a sua roça, onde está iniciando o cultivo da uva ­a vedete do momento. Além de Flávio, pelo menos mais duas famílias estão se dedicando a esse cultivo no D. Pedro. “Vou começar com essas uvas, num espaço pequeno, mas que vai dar uma renda que será suficiente para mim e para minha família”, projeta, mostrando as covas de 60×60 cm já abertas. Cada uma receberá duas parreiras, que, em cerca de 1 ano e meio, darão a primeira colheita.

O silêncio

Voltamos para a casa de Jonas, onde passaríamos a noite. Absorto, ele prepara a comida: macarrão, arroz e calabresa frita.”Algumas coisas não são luxo, mas necessidade”, diz sobre o fogão a gás, bem ao lado da cama, que utiliza no preparo. Lá fora, o sol se esconde por trás da serra. A noite cai. Não há luz elétrica: é hora de acender as velas.

Aos poucos, os sons de vozes ao longe, ou dos cães da vizinhança, vão cessando. A hora de dormir se aproxima. Jonas aparece com uma leiteira. Dentro, em água fumegante, bóiam folhas graúdas de erva-doce. “É um chazinho para esquentar a barriga e ajudar a dormir”, explica, referindo-se ao frio intenso ­por volta de dez graus ou até menos ­ e repentino, que surgiu junto com a noite, em oposição à temperatura abrasiva durante todo o dia. O chá faz efeito quase que imediatamente. Deitados no chão de terra batida, sobre sacos plásticos e um cobertor, aos poucos o sono foi chegando e adormecemos, com a última imagem do dia guardada na retina: na escuridão, o caminho nítido da Via Láctea, por entre as estrelas.

Guandu

O novo dia começa com a colheita, no pé, de vagens do chamado feijão guandu, cujo arbusto, encontrado em quase toda área da fazenda, ajuda a proteger e a corrigir a terra. “Ajuda as outras plantas e a gente ainda come um feijãozinho”, deleita-se Jonas, que prepararia o almoço do dia, tendo como base o guandu. Antes, porém, visitamos a antiga Casa Grande da Fazenda São Luiz, que serve de posto de saúde, farmácia, alojamento e local das reuniões dos assentados, que acontecem em geral uma vez por semana.

Nessas reuniões, discute-se desde as estratégias de plantio e colheita, até birras e desavenças entre vizinhos. “Toda comunidade tem prós e contras. Só que nós temos essa facilidade: fazemos reuniões quando surgem os problemas”, disse Sebastião Fernandes Tito, nosso cicerone. À frente da antiga Casa Grande, um pesqueiro e muitos planos.

“Colocamos 3 mil peixes ali. A idéia é no futuro fazer um Pesque e Pague e um restaurante comunitários na Casa Grande, utilizando o que é produzido aqui”, explicou. Voltamos à casa de Jonas na hora certa, com o cheirinho do feijão guandu abrindo o apetite. Provamos… delicioso. “A gente aprendeu a lidar com as diferenças. Eu e meu vizinho talvez tenhamos idéias distintas, mas precisamos saber respeitar para conviver”, diz Tito enquanto comemos. Em seu discurso, a palavra convivência ganha um significado mais amplo: o de quem sabe que da terra ­ e só dela ­ brota o pão de cada dia.