Monocultura de eucalipto: o deserto verde se expande. Por que se planta deserto?

Marcelo Calazans*

O que há por detrás da expansão dos monocultivos e indústrias de celulose no Sul? A idéia aqui é tentar seguir esse caminho de questionamento, desde a experiência da FASE no Espírito Santo, com suas conexões regionais, nacionais e internacionais.

Se perguntarmos isso para um tecnoburocrata ou empresário do setor, ele repetirá o velho bordão: “Produzimos celulose porque o mundo precisa de papel”. É importante deglutirmos bem esses slogans e bordões do setor empresarial. Porque não é todo mundo que demanda celulose, nem para os mesmos fins, ou na mesma intensidade. Mas qual o mundo que precisa de tanta celulose? E para que usos?

O sobre-consumo se concentra sobretudo em países do Norte, como EUA, Japão, Reino Unido, Alemanha, etc. Um alemão ou americano médio consome 30 ou 300 vezes mais papel que um brasileiro ou coreano. Mas o consumo médio nunca é um bom indicador, pois Norte aqui não é apenas uma referência geográfica e espacial desde a linha do Equador, mas também inclui os diversos Nortes, as ilhas de sobre-consumo no Sul. É o caso do consumo nos bairros e condomínios das classes médias e altas, urbanas, em São Paulo, Rio de Janeiro, Bogotá, Buenos Aires, Assunção, Quito, que em nada perde pra Frankfurt, Nova York, Londres, Tokyo. O consumo cresce a taxas de 6% ano (3% nos 1990), e se concentra em setores sociais específicos, no Norte e no Sul. Diante do refrão empresarial de que o mundo precisa de papel, devemos sempre perguntar:

Qual o mundo que precisa de tanta celulose?

Outro aspecto de deglutição do coro empresarial: “O mundo precisa de papel para escolarização das crianças”. A ênfase aqui não é tanto a demanda, mas o uso. Uma lógica mecânica argumenta o processo: “mais plantações, mais fábricas de celulose, mais papel, livros, mais crianças na escola…”. Neste aspecto, o caso da Aracruz Celulose é simbólico: no relatório empresarial de 2004, 98% para exportação, 55% de toda a produção é para papéis sanitários, e 22% para papéis especiais, lenços, toalhas, produtos one way. Outra parte vai para embalagens, propaganda e papéis sofisticados de impressão. Onde estão aqui os livros, cadernos, cartilhas etc? O setor de celulose no Espírito Santo não alimenta nenhum parque gráfico regional ou nacional.

Em 2006, fizemos uma campanha com algumas ONGs na Alemanha, com a ONG RobinWood e outros parceiros de lá. Imaginávamos no Espírito Santo que sempre seria muito difícil alguma campanha atingir o consumo da celulose da Aracruz no Norte, porque era um produto semi-elaborado, e então seria muito difícil verificarmos em um produto final, quanto de celulose vinha especificamente da Aracruz. Depois de alguma pesquisa na Alemanha, nossos parceiros perceberam que 45% da exportação da Aracruz para aquele país ia para Proctor & Gamble e Kimberly-Klark, e era a base de lenços de papel como Tempo e Kleenex, muito difundidos em toda Europa. Então tínhamos um claro alvo para a sociedade alemã, e começamos uma campanha de boicote e denúncia desses produtos, a partir das denúncias e lutas regionais travadas no Espírito Santo. O uso one-way, as propagandas e embalagens empresariais vêm sustentando o aumento do consumo de celulose. Uma expansão que traz a marca estrutural do desperdício. E que pouco se importa com políticas de reciclagem e com a pesquisa de novas fibras. De qualquer forma, não é possível uma resistência vitoriosa no Sul, sem campanhas no Norte de redução do consumo.

Além do sobre-consumo, outro fator que sustenta a expansão dos plantios de eucalipto e das fábricas de celulose é o retorno de investimentos das empresas Transnacionais. E aqui, mais uma vez, o caso Aracruz é emblemático. Por detrás da Aracruz Celulose, existe uma extensa lista de Transnacionais que participam da mesma orquestração de interesses. São basicamente três tipos de empresas, de acordo com o lugar que ocupam na cadeia produtiva. Primeiro as empresas que fornecem tecnologia e maquinário para indústrias e plantações. Kvaerner, Metso, ABB (Billerud-A.B), Andritz-Ahlstrom, Voith Paper (linhas de secagem), Siemens, Partek, AKZ (turbines), Beloit (torres e filtros), Kamyr (digestor), Mannesmann (pontes rolantes), BBC Brown (geradores), Jaakko Poyry (consultoria em plantações). Na construção da terceira fábrica da Aracruz no Espírito Santo, dos US$ 825 milhões investidos, mais de US$660 milhões foram para adquirir maquinário e tecnologia dessas transnacionais, principalmente nórdicas (Noruega, Suécia, Finlândia), além de Alemanha, Reino Unido, entre os principais países.

Depois, as empresas que consomem a celulose da Aracruz, como as já mencionadas P&G e K-Klark, empresas de embalagens, entre outras, que re-processam a semi-elaboração da pasta química de fibras que exportamos, e agregam a forma e o valor de produtos finais (fraldas, lenços, toalhas etc). Ao exigirem, na ponta final do consumo, fibras uniformes, homogêneas, de grande brancura, em larga e crescente escala, sobre-determinam não apenas a intensidade de expansão, como também o modo e o modelo produtivo que devasta o norte do Espírito Santo: uniformidade de espécie, homogeneização territorial, curto ciclo, branqueamento etc.

E finalmente as empresas do próprio setor em pauta, como Aracruz, Suzano, Veracel Votorantim, Klabin (Brasil), articuladas ou não a Transnacionais como StoraEnso, também produtoras e exportadoras de celulose. A Aracruz se aproxima da meta de produzir 32% do mercado mundial de fibra curta de eucalipto. Se expande ainda no Espírito Santo (via fomento florestal), pelo extremo Sul e Sul da Bahia, pelo Rio Grande do Sul, pelo Norte do Rio de Janeiro.

Se observarmos bem esses três grupos de transnacionais envolvidas no mercado global e nacional do macro-setor de celulose, percebemos claramente o lugar do Brasil, da América Latina, Ásia e África. No Norte, a tecnologia, o maquinário, o maior valor agregado, os lenços de papel, o menor risco ambiental. No Sul, a pasta química, o trabalho semi-elaborado, os plantios em larga escala, e centenas de conflitos territoriais e ambientais.

As Instituições Financeiras Internacionais também participam dessa orquestração de interesses na expansão dos monocultivos e plantas celulósicas no Sul. No caso específico da Aracruz, o IFC do Banco Mundial, o Banco Nórdico de Investimento, o Banco Europeu de Investimentos, as Agências finlandesa, norueguesa e alemã, de Crédito para Exportação (ECAs), o Fundo do Petróleo da Noruega e mesmo a Coroa Sueca (e talvez inglesa?) mantêm investimentos em ações, oferecem crédito, financiam e garantem a cobertura do seguro. E aqui há uma relação estreita entre essas instituições e os governos de Estado. No caso da terceira fábrica da Aracruz, por exemplo, inaugurada em Agosto 2003, o BNDES financiou US$435 milhões, de um total de US$ 825 milhões. Mais da metade. Os processos financeiros são de difícil acesso, principalmente no Sul, mesmo que os Estados estejam neles inseridos. Mas podemos imaginar coisas assim: o Banco Nórdico e o BEI operam com o BNDES que financia a Aracruz para comprar equipamentos da Mannesmann, por exemplo. A Agência Finlandesa de Crédito para Exportação financia a Jaakko Poyry ou outra empresa de lá, para exportarem para a Aracruz, ao mesmo tempo em que a Aracruz capta junto ao BNDES recursos para importação de maquinário e tecnologia da Finlândia. No que toca às Instituições Financeiras Internacionais existe ainda muito pouca transparência nesses processos e no Espírito Santo, com alguns parceiros da Rede Deserto Verde, estamos buscando entender melhor o papel do BNDES em tudo isso, além de ser detentor de 12% das ações da Aracruz Celulose.

Qualquer estratégia de resistência à expansão deve se ater também para explicitar e, se possível, drenar as fontes de financiamento do setor. As campanhas no Norte por transparência e democratização dos bancos e agências estatais de crédito devem se articular com campanhas no Sul, como no caso brasileiro do BNDES. Depois de alguma campanha na Suécia, a Coroa Sueca retirou seus investimentos da Aracruz. Em 2007, o IFC do Banco Mundial entrou em contato com entidades da Rede Deserto Verde, com um questionário sobre impactos do setor de celulose, no ES, BA, MG, RS. Estão sendo mais uma vez requisitados créditos para expansão de todo o setor. Temos de atuar nesses processos, pois decidem o destino de centenas de milhares de pessoas em todo o Sul.

Já que nos aproximamos das políticas de Governo e de Estado, esses também são fatores significativos que sustentam a expansão dos plantios e das indústrias de celulose. E também aqui, o caso brasileiro se repete por todo o Sul. Além do crédito, por 5 outras maneiras os governos e Estados do Sul têm promovido o interesse das empresas, corporações, bancos e transnacionais do Norte:

1. Através dos chamados Planos Nacionais de Florestas, muitos governos do Sul têm planejado com os setores empresariais os investimentos e metas de crescimento e expansão. Por boa parte da América Latina, a RECOMA (Rede LatinoAmericana contra Monocultivos de Árvores) faz ecoar os diversos planos “florestais” dos Estados Nacionais, como instrumentos de expansão dos plantios de eucalipto, pinus, palmeiras, etc. No Brasil, por exemplo, quando Lula assumiu em 2003, o Ministério do Meio Ambiente logo assegurou o “Plano Nacional de Florestas”: + 6 milhões de hectares até 2013, em um ritmo de crescimento de 600 mil hectares ano. O plano está em curso, legitimado por um Conselho Nacional de Florestas, que passa ao largo dos conflitos sócio-ambientais ao longo da vizinhança do setor. Por todo o Sul é possível encontrarmos os Planos Nacionais de Florestas e, lá dentro, trata-se basicamente de plantações de árvores em larga escala, para fins comerciais. Neste aspecto, os compromissos dos diversos Estados signatários da Convenção da Bio-Diversidade abrem um campo estratégico também de resistência, pois muitas das políticas florestais dos Estados (PNFs/PRONAF-Florestal) do Sul têm claramente privilegiado os plantios industriais e monocultivos, em detrimento das matas nativas. No caso do Brasil, o PNF tem ínfimos recursos para os biomas da caatinga, do cerrado, da mata atlântica, dos campos sulinos etc., e vasto foco e recursos para os plantios homogêneos de eucalipto.

2. Também através de isenções fiscais, os governos e Estados colaboram com a expansão dos plantios e fábricas celulósicas. Isenções de impostos para exportação de semi-elaborados (Lei Kandir no Brasil), isenção de impostos sobre terra, água. Somente a Aracruz, no Espírito Santo, consome 248 mil metros cúbicos de água por DIA (equivale ao consumo de uma cidade de 2 milhões e 500 mil pessoas), e nunca pagou nada por isso. Em geral, entre os Estados da federação, se promovem guerras fiscais, e as empresas jogam bem esse jogo, em detrimento dos já escassos orçamentos públicos em todo o Sul.

3. As políticas de desregularão e flexibilização social e ambiental dos Estados promovem também a expansão dos plantios e fábricas de celulose. Os Institutos Estaduais de Meio Ambiente, os velhos Estudos e Relatórios de Impactos Ambientais, os Conselhos e Comissões de Estado, em geral, participam ativamente na desconsideração, desqualificação e omissão dos impactos ambientais e sociais das empresas. Não há controle dos agrotóxicos, o desemprego e a terceirização do trabalho rural se aprofundam, as matas ciliares e nascentes não são respeitadas, as terras dos povos tradicionais quilombolas não são devolvidas, a reforma agrária não se realiza, a agricultura camponesa não é prioridade. Tudo na lei, todavia, no Sul os direitos sociais e ambientais estão subordinados ao modelo monocultor e exportador de semi-elaborados.

4. Outra participação ativa dos Estados é na questão judiciária, principalmente na criminalização e marginalização da resistência. No Chile, no Brasil, há toda uma nova gramática de Estado, no diálogo com os povos tradicionais que resistem em meio ao eucaliptal: são interditos proibitórios, reintegrações de posse, alvarás, processos criminais, intimações, portarias, multas etc. A segurança jurídica dos investimentos deve estar clara, como mensagem dos Estados do Sul, para os investidores do Norte, ainda que sob a guarda dos batalhões de choque. E muitos companheiros e companheiras têm sido presos e processados, como indígenas, quilombolas, sem terra e camponeses do Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, mulheres camponesas no Rio Grande do Sul, mapuches no Chile, entre outros.

5. Também a relação do Estado com as empresas se evidencia no financiamento das campanhas para executivo e legislativo, em todas as dimensões territoriais: nacional, estadual, municipal. A bancada de setores monocultores de eucalipto nos parlamentos é sempre significativa e poderosa. No caso brasileiro, unificam-se dois setores estratégicos da economia, papel e celulose com siderurgia e ferro-gusa. O peso dessa bancada no parlamento federal, por exemplo, transcende a partidos políticos, o que se verifica facilmente no site do Tribunal Superior Eleitoral. A Aracruz Celulose, e suas empresas parceiras, por exemplo, contribuíram com campanhas de vários partidos, de amplo leque ideológico, no ES, MG, BA, RS e RJ. Isso, “caixa 1”…
Por último, quero abordar três pontos estratégicos que, de alguma forma, anunciam o atual boom da celulose e dos monocultivos de árvores em todo o Sul. No caso brasileiro, são fatores decisivos no atual planejamento da expansão do setor.

a. O primeiro é o debate do clima e do aquecimento global. Na medida em que interpretam plantações de eucalipto de rápido crescimento como “Mecanismo de Desenvolvimento Limpo”, seja no sentido de fixar Carbono (plantações), seja no sentido de substituir carvão mineral (nos fornos siderúrgicos), o Banco Mundial e demais atores do Mercado Mundial de Carbono anunciam um novo horizonte de negócios, linhas de crédito e financiamento, para a expansão das empresas monocultoras, celulósicas ou siderúrgicas. Kyoto já representa um retrocesso em termos de redução das emissões, de 68% para 5%. E, destes 5%, se financiarem a fixação de carbono no Sul, através dos MDLs, os países do Norte não precisarão reduzir suas próprias emissões. Por todo o planeta, se escuta o discurso apocalíptico da crise do clima e seus efeitos, mas o mundo industrial, urbano, do sobre-consumo e tecnológico não abre mão de sua reprodução política e econômica. O Protocolo de Kyoto permite novos horizontes de expansão dos monocultivos de árvores de eucalipto. O Mercado de Carbono não resolve a crise do clima e aprofunda a desigualdade social e ambiental Norte-Sul. Sua lógica se assenta na garantia de continuidade dos níveis de consumo no Norte, em troca de mais plantações de eucalipto no Sul, além de barragens, agrocombustíveis, etanol e etc.

b. O segundo ponto de expansão em curso, e futuro, do setor de monocultivos de eucalipto retira sua força não de Protocolos, mas da Ciência genética e agronômica e florestal, comprometida com os parâmetros da produtividade empresarial. Nesse campo, as Árvores GM já vêm sendo experimentadas em vários países do Sul, e estão na pauta de pesquisa de universidades (públicas e privadas) e laboratórios empresariais. Segundo Chris Lang, de WRM, a diminuição do ciclo entre plantio e corte, a produção de árvores com menos lignina, a capacidade de sobreviver a novos tipos de agroquímicos, a novas condições climáticas, entre outros aspectos, são elementos deste novo cenário de expansão. No Brasil, desde 1998 a Aracruz Celulose possui licença para experimentos com eucalipto GM. Nunca descobrimos onde estão esses plantios e os processos administrativos e jurídicos que lhe dão legalidade. No âmbito federal tem a CTNBio, um conselho técnico que decide da bio-segurança, e responsável pela liberação comercial dos Organismos GM. A Rede por um Brasil Livre de Transgênicos tem monitorado o arroz e o milho, o eucalipto já está na pauta. Há forte pressão do setor para liberar comercialmente o eucalipto GM e este é um foco estratégico na dinâmica futura empresarial. Outra fonte de expansão futura que retira sua força da ciência empresarial é o uso da celulose como combustível, o que conecta mais uma vez as plantações de árvores com o debate do clima. As empresas que já plantam eucalipto para celulose e siderurgia já vêem este mercado como novo nicho de diversificação de investimentos. Não deixarão de produzir celulose, pois, como diz o bordão, “o mundo precisa de papel”, mas se “o mundo precisar também de energia não fóssil”, as mesmas empresas podem produzi-la, basta reescrever o refrão.

c. Por fim, as estratégias de certificação de manejo florestal, que constroem princípios e critérios de sustentabilidade florestal e acabam por certificar plantações homogêneas de eucalipto como ambientalmente adequadas, socialmente justas e economicamente viáveis. É o caso do Conselho de Manejo Florestal (FSC), a nível internacional, do CERFLOR (no Brasil) e muitos outros “selos verdes”, que podem garantir até 20% no valor de cada tonelada de celulose exportada para países como Alemanha, por exemplo. A última vez que entrei no site do FSC Brasil, creio que faz 4 ou 5 anos isso, foi para confirmar uma informação difícil de acreditar: menos de 1% das certificações daquele selo tinham sido certificações de manejos comunitários de matas nativas. A Aracruz, por exemplo, ao comprar a RioCell, já certificada, e se estabelecer no Rio Grande do Sul, poderia ampliar suas estratégias de venda. No entanto, aqui mais uma vez, a resistência foi vitoriosa, e a Aracruz novamente perdeu seu selo verde.

Texto proferido no Encontro Internacional da Via Campesina, em julho de 2007.
* Marcelo Calazans é coordenador da FASE/ES e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde.