“Continuamos fortes e com fôlego”

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Membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a militante Marina dos Santos, aceitou refletir sobre os rumos do movimento enquanto participava do Encontro Nacional alusivo aos 25 anos do MST, realizado em Sarandi (RS).

Na entrevista que concedeu por telefone , Marina fez uma breve análise do evento, falou sobre os desafios e mudanças do MST hoje, sobre a relação com o governo Lula, sobre a avaliação que muito analistas têm feito recentemente a cerca de um possível descenso do MST e sobre a participação das mulheres no movimento.

“A reforma agrária é um instrumento importante que os governos podem utilizar, especialmente no Brasil, para contribuir na resolução da crise hoje, para que não apenas as classes trabalhadoras arquem com as conseqüências desse sistema capitalista”.

Marina afirma que “o MST ainda continua muito forte, tem muito fôlego para continuar nessa batalha pela reforma agrária no Brasil”. Ela concorda que “a luta de classes está num descenso, ou seja, as diversas categorias de trabalhadores estão em descenso. Há uma desmobilização, uma amortização, um anestesiamento da sociedade brasileira no que diz respeito a essa questão das lutas no geral”.

Qual a avaliação que você faz, até o momento, desse encontro alusivo aos 25 anos do MST? Qual a importância de celebrar esse aniversário, considerando a história do movimento?

Esse encontro tem um marco importante na história do MST, porque é a primeira vez que um movimento de luta pela terra, pela reforma agrária, completa 25 anos oficialmente. Esse evento é quase que um reencontro com a história, com Encruzilhada Natalino, que é o marco do início do movimento, um reencontro com a luta pela reforma agrária nesse país, que ainda não aconteceu e é uma demanda da classe trabalhadora brasileira.

Quais os principais temas que estão sendo debatidos e quais os maiores desafios que estão aparecendo no evento?

Os principais temas que temos estudado nesses dias, com o apoio de grandes estudiosos e especialistas de universidades brasileiras, se relacionam, principalmente, com esse momento conjuntural que a sociedade está vivendo no Brasil, na América Latina e no mundo, nesse contexto de crise mundial. As perspectivas que estão sendo colocadas em volta disso, bem como o papel que a classe trabalhadora tem, marcaram no sentido de qual pode ser nossa contribuição para resolver os problemas que a crise tem apontado. Na nossa avaliação, pelo que tem saído nesses debates aqui, a reforma agrária é um instrumento importante que os governos podem utilizar, especialmente no Brasil, para contribuir na resolução da crise hoje, para que não apenas as classes trabalhadoras arquem com as conseqüências desse sistema capitalista.

Os principais desafios são tanto no sentido interno – temos que continuar organizando os trabalhadores rurais sem terra e utilizando o mecanismo da ocupação do latifúndio improdutivo, da luta pela reforma agrária, da distribuição da terra, da renda, da geração de emprego, da
produção de alimento, e da recuperação da preservação ambiental no país – quanto no sentido externo, que é de estabelecer relações também com a classe trabalhadora urbana. Achamos que a conquista da reforma agrária hoje no Brasil passa por um momento em que a sociedade
brasileira tem que pautar, cobrar, reivindicar para que o Estado brasileiro faça, de fato, esse processo de reforma agrária. Ainda do ponto de vista mais externo das atividades do movimento, temos que nos envolver também nessa campanha do “petróleo é nosso”.

Falando sobre os desafios internos, qual é a sua percepção de certas avaliações que hoje apontam um descenso do MST? Você acha que o movimento está perdendo força? Como você interpreta essa visão nesses 25 anos?

É claro que nós compactuamos da avaliação de que a luta de classes está num descenso, ou seja, as diversas categorias de trabalhadores estão em descenso. Há uma desmobilização, uma amortização, um anestesiamento da sociedade brasileira no que diz respeito a essa questão das lutas no geral. Essa é uma auto-crítica que nós estamos fazendo no decorrer dos últimos anos e, especialmente, aqui no encontro nacional.

Só que, pelo fato de estarmos com esse número de militância qualitativa, que traz uma qualidade importante na luta hoje pela reforma agrária no país, pelo fato de estarmos comemorando, confraternizando os 25 anos com a sociedade brasileira e com a classe trabalhadora em geral, não só com os membros internos do movimento, nós achamos que o MST ainda continua muito forte, tem muito fôlego para continuar nessa batalha pela reforma agrária no Brasil. Devemos continuar cumprindo com o nosso papel, que é de organizar os trabalhadores e seguir na luta pela reforma agrária.

É claro que em relação aos assentamentos houve e continua havendo um descenso. O número de assentamentos realizados no país tem diminuído. Mas isso é também decorrente de todo esse processo do modelo de desenvolvimento implementado hoje no país, que dá prioridade ao
agronegócio, às empresas transnacionais, à produção de monocultivos e à prioridade de produção para a exportação. Esse modelo não resolve os problemas dos trabalhadores brasileiros, que são distribuição de renda, produção de alimentos e preservação e recuperação do meio ambiente.

Essa diminuição no número de assentamentos tem alguma relação com a postura do governo federal e com a presença de Lula na presidência? Como está a relação do MST com o governo hoje? Há um estremecimento ou até uma hipótese de rompimento?

O MST continua mantendo com o governo Lula o mesmo método que sempre teve com todos os outros governos anteriores, ou seja, nós construímos, no decorrer desses 25 anos, um processo de autonomia do MST. Sempre negociamos com todos os governos, porque acreditamos que a reforma agrária tem que ser uma medida estatal e tem que estar sob o controle dos trabalhadores. Então, quando nós fazemos a ocupação da terra do latifúndio improdutivo, a nossa negociação pela
desapropriação, pela realização do assentamento, não é com o fazendeiro nem com a empresa; é com o Estado brasileiro, com o governo. Continuamos com esse método para que o governo cumpra com a sua responsabilidade, que é a desapropriação do latifúndio improdutivo, na verdade, cumprindo com o que está na ConstituiçãoFederal. A avaliação que fazemos do governo Lula é que houve uma clara opção pelo projeto do agronegócio. E a reforma agrária e a agricultura familiar ficaram em detrimento dessa opção.

Você não acha que as políticas sociais do governo Lula, especialmente o Bolsa Família, acabam afetando a capacidade de mobilização do MST?

Não afetam e, na verdade, até contribuem para o fortalecimento da luta, porque a pessoa se sente muito mais segura indo para uma ocupação de terra, sabendo que vai ficar embaixo da lona com a garantia de ter uma bolsa de alimentos. A Bolsa Família é uma política importante, principalmente para as camadas mais pobres, e ela não afeta a nossa atuação de organização das famílias. Pelo contrário, fortalece.

Como se constitui hoje a base da militância do MST? Qual o perfil dos militantes da base atualmente? Ainda são colonos, como era nos anos 1980?

Continuamos organizando os trabalhadores rurais que são do campo. No entanto, é claro que hoje há menos esse perfil de colono, que é uma característica mais aqui da região Sul do país. Em geral, continuamos articulando, organizando e mobilizando os trabalhadores do campo, em especial aqueles que são meeiros, posseiros e trabalhadores da cana. Esse tem sido o público prioritário que tem vindo para os nossos acampamentos, que nós temos organizado e que tem se constituído com essa característica de militância do MST, de quem está na luta pela terra e pela reforma agrária.

Como tem sido discutido no encontro e qual a visão do MST da recente fusão entre a Aracruz Celulose e a Votorantin Celulose e Papel, inclusive com o apoio financeiro do BNDES?

Em primeiro lugar, essa é uma das consequências da chamada crise do capitalismo que está hoje colocada, ou seja, há uma fusão entre os capitais, uma ajuda entre eles para se dar continuidade a esse processo de desenvolvimento implantando hoje na sociedade. E em segundo lugar, fica claro para nós, com esse apoio do BNDES, a decisão do governo federal em optar pelo desenvolvimento do agronegócio. Os esforços que tem sido feitos pelo governo brasileiro no sentido de resolver a crise são de liberar capital para as grandes empresas. E ainda não há uma decisão política no sentido de reforçar as políticas sociais que vão resolver, de fato, os problemas da classe trabalhadora.

E qual a sua avaliação sobre o papel e a importância das mulheres dentro do MST hoje? Como está a Via Campesina? Você, como mulher, de que forma se sente dentro do movimento?

Esse é um acúmulo do MST nesses 25 anos, que foi abrindo muito espaço para a participação da família no movimento, seja na organização, na luta, no processo interno de participação, de educação, nas tomadas de decisões. Então, a participação das mulheres no MST veio crescendo nos últimos anos e vejo isso como algo que o MST tem a comemorar. As mulheres trazem para dentro da organização outros valores que são vividos no cotidiano da sociedade e que são construídos coletivamente dentro do movimento.

Quanto à Via Campesina, não tenho dúvidas de que, nos últimos anos, no Brasil, trata-se de um instrumento importante, que foi se construindo nesse processo de fazer resistência ao capital, às grandes empresas que estão se apropriando dos bens naturais hoje, principalmente nos países do terceiro mundo, dentre eles, especialmente, o Brasil. A grande contribuição desses movimentos do campo para a sociedade brasileira é a de expor esse debate, essa realidade que está acontecendo, garantindo que os bens naturais estejam a serviço dos trabalhadores e não apenas do lucro de poucas empresas.

Quais os rumos do debate sobre a questão da criminalização dos movimentos sociais?

Toda a grande imprensa tem buscado criminalizar o MST, tentando colocar no imaginário da população que o movimento não tem mais sentido, que perdeu os objetivos e não faz mais a luta pela reforma agrária. Ao contrário disso, nós queremos reafirmar para toda a sociedade brasileira o nosso encontro com a nossa militância, com a nossa história de luta, renovada dia-a-dia, nos mesmos objetivos desde a criação do MST, que são a organização dos trabalhadores rurais
sem-terra, a luta pela terra e pela reforma agrária. Isso é importante não só para os trabalhadores do campo, mas também para os trabalhadores que estão na cidade e que terão acesso aos alimentos com fartura, com qualidade, sem agrotóxicos, livre de transgênicos e ainda
mais baratos.

E como explicar o plantio de soja transgênica em milhares de hectares no próprio assentamento Novo Sarandi, onde está acontecendo o encontro nacional pelos 25 anos do MST? Ainda mais
considerando que é a soja fabricada pela Monsanto, tão duramente combatida pelo movimento? Não se trata de uma contradição?

Essa é uma grande contradição, sim, e mostra como somos vítimas desse modelo que está aí. Não há outro tipo de sementes para se plantar aqui no Rio Grande do Sul. Mesmo as áreas que plantam soja não-transgênica (e isso já está comprovado pela Anvisa) acabam sendo contaminadas a quilômetros pelo vento. E todos os pequenos agricultores assentados têm que pagar royalties para a Monsanto. É lógico que é justamente desse tipo de coisa que queremos nos livrar. Somos obrigados a estar nesse modelo porque não temos alternativa. E essa é a questão principal que combatemos, pois não queremos a semente transgênica. Queremos construir outro modelo de desenvolvimento que não seja baseado na transgenia.