MST quer uma Reforma Agrária massiva e de qualidade

Do Vermelho

Encarada pelos setores conservadores como uma pauta anacrônica, a Reforma Agrária continua sendo, para a esquerda, questão fundamental para se mudar a desigualdade social nas cidades e no campo. Por isso, a Fundação Maurício Grabois e o PCdoB realizaram na noite desta segunda-feira (27/4) o debate Estrutura agrária e relações produtivas do campo. “A burguesia nunca teve interesse em fazer a Reforma Agrária”, disse João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, um dos participantes.

Segundo ele, esta é a razão principal para que, ainda hoje, o Brasil continue sendo um dos países com a maior concentração fundiária do mundo. João Paulo criticou a gestão de Fernando Henrique Cardoso, que teria “cooptado até mesmo setores progressistas para a elaboração teórica que dividiu a agricultura brasileira entre a dos pobres e a dos ricos”.

Como um dos sinais dessa escolha, o dirigente Sem Terra apontou a consolidação do agronegócio, tido pela elite como fator de modernização no campo. “É um tipo de agricultura de larga escala que aposta na monocultura, no uso abundante de agrotóxicos e visa a exportação; é um clube onde os pequenos não entram e sua valorização vem de uma escolha ideológica”.

Para os pobres do campo, foi elaborado o “Novo Mundo Rural”, programa de FHC posto em prática a partir de 2001. “Ele traz em sua origem uma concepção de agricultura familiar que mantém o pequeno produtor sempre pequeno, dentro daquela ideia do ‘agricultor alternativo’, bonitinho, além de minar a ideia de coletividade”, criticou.

Outra armadilha foi que 60% dos assentados no período tucano foram feitos na Amazônia Legal, sem que fosse preciso mexer nas propriedades já ocupadas. “A reorganização do Estado sobre bases neoliberais foi muito bem elaborada durante a era FHC”, ironizou.

No entanto, segundo João Paulo, o governo Lula – apesar de apoiado pelo MST – “deu continuidade àquele modelo”. “As terras usadas na Reforma Agrária continuam sendo majoritariamente as da Amazônia Legal e o crédito, apesar de ter seus recursos aumentados, chegou a um ponto em que 70% das famílias assentadas estão endividadas”. A lógica, de acordo com o coordenador do MST, “é a mesma e não conseguimos avançar numa política que mude a estrutura agrária atual e que invista numa política de agroindústria para os assentados”.

Mesmo mantendo a perspectiva de luta pela Reforma Agrária, o MST reconhece as dificuldades do cenário atual. “Estamos numa correlação de forças desfavorável no governo e a mídia piora isso criminalizando nossas manifestações”. Por fim, João Paulo ressaltou que a perspectiva do MST é “um programa agrário de sentido socialista”. Mas, num prazo mais curto, é lutar por um programa popular e por pautas pontuais, tais como a aquisição de terras boas perto de grandes centros, crédito para custeio e investimento nos assentamentos, a agroindústria para os assentados numa concepção cooperada, financiada pelo Estado, entre outros.

“Precisamos que a Reforma Agrária seja feita, de fato, pelo Estado com a participação dos trabalhadores e ela precisa ser massiva e de qualidade, o que implica grande quantidade de terra e de assentados para que seja possível enfrentar o agronegócio”, afirmou.

Modernização sem democracia

Ao iniciar o debate, Marcelo Cardia, engenheiro agrônomo e assessor da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), fez um breve histórico que contemplou, entre outras coisas, bases teóricas para a discussão da reforma agrária, como as análises feitas outrora por Lênin e por Kautsky. No contexto nacional, Cardia colocou que um dos principais problemas do país neste aspecto é que “a modernização do campo se deu sem a sua democratização”, chegando à situação atual em que “graças aos avanços tecnológicos, é possível produzir mais com menos trabalhadores”.

Com uma população majoritariamente concentrada na área urbana – 83% contra 17% na rural e 40% em nove regiões metropolitanas – a Reforma Agrária seria um instrumento de melhorias sociais não só no campo como nas cidades, muitas vezes inchadas pelos migrantes que não tiveram oportunidades em seus locais de origem. “Num país de capitalismo dependente como o nosso, a Reforma Agrária não tem nada de anacrônico; pelo contrário, é condição para a luta contra a pobreza e por um projeto nacional de desenvolvimento. O paradigma produtivista isoladamente é, sim, atrasado”.

Com relação à Amazônia, Cardia disse que “é preciso haver desenvolvimento ordenado e sustentável para contemplar as famílias que vivem ali, o que pode ser um fator para se evitar a devastação e a invasão por potências estrangeiras”.

A questão da posse

A professora Lígia Osório Silva, coordenadora do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, iniciou sua apresentação diferenciando a divisão das terras próprias da distribuição de terras públicas. “No Brasil, estas são questões que se confundem ao tratar de Reforma Agrária porque ainda há 1/5 de terras devolutas que podem ser usadas, mas é importante também que haja desapropriações para que de fato seja feita a divisão das terras”.

Numa retrospectiva histórica, Lígia lembrou que “o sistema de sesmarias não foi culpado pela formação de latifúndio. Havia limites para o tamanho das terras e quando foi suspenso em 1822, sua área era pequena”. A questão central estaria, portanto, na posse descontrolada das terras. “O latifúndio se mantém porque a estrutura da propriedade nunca mudou e a posse de terras tem papel fundamental nesse entendimento. E quando falo em posse, falo não do pequeno, mas do grande posseiro”.

Ela lembrou que a Lei de Terra de 1850 procurou regular a situação da terra, inaugurando o regime de propriedade plena, mas as posses irregulares continuaram. “O Estado imperial não conseguiu ter um cadastro de terras. Aliás, até hoje não temos porque o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) ainda não concluiu esse levantamento”, explicou, lembrando que tal lei foi um dos fatores que levaram ao fim da monarquia justamente porque o Estado tentou colocar ordem num terreno em que os interesses dos poderosos já predominavam.

A população mais pobre, por sua vez, nunca conseguiu ter suas pequenas posses reconhecidas por conta da estrutura coronelista. É nesse contexto, principalmente já sob a vigência da Primeira República, que ganhava corpo a violência no campo. Mesmo com os avanços da era Vargas, quando nasceu o conceito de função social da terra, a situação não mudou estruturalmente. “Ao regulamentar o uso da terra, o Estado, historicamente, beneficia os grandes posseiros e acaba restringindo a quantidade de terras que poderiam ser usadas para outros fins”, concluiu.

O neoliberalismo x o povo

Dando continuidade à análise história da questão agrária, Francisco Canindé de França, secretário de Assuntos Fundiários e Apoio à Reforma Agrária do Governo do Rio Grande do Norte, colocou como traços marcantes da questão agrária “a ausência de democracia real e a disputa de dois projetos”, um advindo dos europeus e outros dos povos subjugados, os índios e os negros, além da dependência em relação a outras potências.

Foi nos anos 70, durante o regime militar, “que o latifúndio se transformou em agronegócio”, colocou. Nos anos 80, diante do cenário de crise econômica, “a agricultura torna-se um elemento ainda mais importante para a balança comercial. Foi o processo de redemocratização que trouxe de volta o debate sobre a Reforma Agrária”.

A chegada dos anos 90, marcada pelo fim da experiência socialista e a consequente aplicação de políticas neoliberais, gerou um novo cenário em que dois campos se opuseram: os neoliberais, que no meio rural são representados pelo agronegócio, e o campo popular e democrático, que continuava a luta pelo acesso à terra e pela valorização da agricultura familiar. “Ambos fazem parte da disputa política e estão em constante ebulição”, destacou Canindé.

Mesmo reconhecendo que o governo Lula não mudou a situação da Reforma Agrária, ele destacou que “abriu-se espaço para conquistas no meio rural, como a diminuição da violência no campo pelas mãos do Estado e a não criminalização dos movimentos sociais”.

A solução, para Canindé, passa hoje por aspectos como uma legislação que limite o tamanho das propriedades; a revisão dos índices de produtividade; o zoneamento econômico ecológico e a implantação de políticas de comercialização dos produtos de agricultura familiar, inclusive pelo Estado.

Dependência econômica

O engenheiro agrônomo Marcos Kowarick encerrou o evento. Segundo ele, o “elemento central do problema agrário está na dependência econômica do Brasil e pela busca por um projeto nacional de desenvolvimento, o que fez com que o agrário fosse submetido a um projeto pautado pela dependência”. O agronegócio, portanto, seria resultado desse cenário. “É um dos pontos da economia cartelizada e que surge ainda nos anos 60”.

Kowarick lembrou ainda que resultante desse processo de centralização da produção agrícola está a falta de comida. “O Brasil produz o suficiente para alimentar três vezes a sua população, mas ainda assim milhares de brasileiros sofrem com a fome e a pobreza. No mundo, não é diferente”, lamentou.

De acordo com o especialista, “o modelo do agronegócio é concentrador de renda e de propriedade. Então, temos de um lado a riqueza e de outro, a miséria, produto do capitalismo. E a crise atual é resultado da superprodução, bem como do subconsumo”.

Por fim, colocou: “a justiça social é fundamental para um novo projeto nacional, mas hoje continua a usurpação do público pelo privado, que segue aumentando sua renda e as desigualdades enquanto paga royalties para as grandes corporações”.

O evento realizado ontem, com a mediação do jornalista José Carlos Ruy, foi a continuação do seminário “Desvendar o Brasil – suas singularidades, contradições e potencialidades” – realizado no começo do mês – e decorre da busca, pelo PCdoB, de um amplo debate com vistas a atualizar o programa socialista no próximo congresso do partido, marcado para novembro.