MST- PE: 20 anos rompendo cercas e construindo história

O estado brasileiro foi fundado com base no tripé do latifúndio, da monocultura e da escravidão. Esta estrutura formou um povo explorado e sem direitos. Mas, ao mesmo tempo, formou um povo guerreiro e lutador, que, não aceitando as amarras da opressão, passou a lutar contra toda forma de escravidão, desde as lutas nas senzalas e nos quilombos pela liberdade, até as lutas pela Reforma Agrária e direitos sociais e trabalhistas do século XXI.

O Nordeste do Brasil, onde está localizado o estado de Pernambuco, é uma das regiões mais pobres do país e possui um dos maiores índices de população rural e, ao mesmo tempo, um alto índice de concentração de terra. Na faixa litorânea, denominada Zona da Mata Canavieira, área historicamente ocupada pela monocultura da cana, essa situação de miséria e opressão é acentuada pela carga cultural de dominação dos senhores de engenho e usineiros em relação à grande maioria da população que vive do trabalho, cada vez mais precarizado, nas plantações de cana.

Mas como toda opressão gera uma reação, a Zona da Mata gerou também grandes processos de luta, das Ligas Camponesas aos sindicatos combativos de trabalhadores rurais. E é nessa mesma região que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra cravou sua primeira bandeira no estado de Pernambuco, há vinte anos atrás.

Em junho de 1989, 400 famílias de trabalhadores rurais Sem Terra realizaram uma ocupação no complexo agro-industrial de Suape, no Município do Cabo de Santo Agostinho, Zona da Mata Norte. Três dias depois da ocupação as famílias foram violentamente despejadas por um forte esquema policial.

A ocupação no complexo de Suape e o conseqüente assentamento das famílias na fazenda Varginha, em Cabrobó, sertão do estado, marca o início de uma nova onda de lutas do povo do campo em Pernambuco. Uma onda vermelha, que vem aumentando e tomando corpo nos últimos vinte anos. Começamos com 400 famílias; somos hoje 32 mil famílias Sem Terra, lutando por terra e dignidade em Pernambuco.

Apesar do alto índice de violência no campo que impera no país – segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano passado foram registrados 1.176 conflitos no campo no Brasil, com 28 pessoas assassinadas -, e da forte criminalização sofrida pelos movimentos de luta pela terra, principalmente por parte da mídia e dos poderes legislativo e judiciário, foram muitas as vitorias e conquistas nesses vinte anos de luta.

E é com a união dos trabalhadores Sem Terra com os operários da cidade e com outros movimentos sociais e organizações nacionais e internacionais que seguiremos rompendo cercas e construindo a história de uma Pernambuco e um Brasil livre do jugo do latifúndio, do agronegócio e de todo o tipo de opressão.

Rompendo as cercas do latifúndio

O MST está organizado em 100 municípios de Pernambuco, divididos por 17 regionais. Temos hoje 184 assentamentos onde vivem e produzem 14 mil famílias. Outras 18 mil famílias resistem embaixo da lona preta em 163 acampamentos.

Fazenda Normandia – Ocupação símbolo da luta pela terra em Pernambuco – No dia primeiro de maio de 1993, 179 famílias ocuparam a fazenda Normandia, no município de Caruaru. A ocupação se transformou em símbolo de resistência e luta em Pernambuco. Foram quatro despejos e cinco ocupações até a vitória definitiva, em novembro de 1997. No dia 17 de abril de 1996, coincidentemente, o dia do massacre de Eldorado dos Carajás, onde foram assassinados 19 militantes da luta pela reforma agrária no estado do Pará, um grupo de 14 representantes dos acampamentos do MST em Pernambuco entraram em greve de fome, dispostos a irem até as ultimas conseqüências para garantir a desapropriação da fazenda Normandia e de outras áreas no estado. Onze dias depois a greve foi encerrada vitoriosa, com o inicio do processo de desapropriação da fazenda para fins de Reforma Agrária. Hoje no Assentamento Normandia vivem 41 famílias e em 1998 foi criado, na antiga casa sede da fazenda, o centro de Formação Paulo Freire, em homenagem ao grande educador Pernambucano, que tem sido um importante espaço de formação política de militantes do MST e de outras organizações do estado de Pernambuco e do nordeste.

Rompendo as cercas do modelo agro-exportador

Desde sua fundação, a luta do MST tem se pautado não apenas pela democratização e acesso à terra, mas por uma transformação profunda na estrutura fundiária brasileira, baseada no latifúndio, e pelo enfrentamento ao modelo de produção, baseado na monocultura para exportação. As ocupações na Zona da Mata enfrentam diretamente o modelo do monocultivo de cana-de-açucar. Para esses trabalhadores rurais marcados pelo trabalho desumano na cana, o MST aponta, desde o seu inicio, a saída: a substituição da produção de cana pela diversificação da produção, criando condições de desenvolvimento da agricultura de subsistência e de mercado, através da organização de cooperativas e grupos coletivos de famílias.

No sertão, o MST inicia sua atuação com ocupações massivas em áreas pertencentes a grandes grupos de agricultura irrigada para exportação, questionando assim, desde o deu inicio, o modelo de agricultura da região, pautado pelo agronegócio exportador de frutas, com utilização de alta tecnologia de irrigação e controlado por empresas multinacionais.

Nesses vinte anos construímos uma central de cooperativas que organiza a produção, a comercialização e a assistência técnica em todos os assentamentos do Estado, tendo como suporte fundamental da produção dois eixos básicos: a agroecologia como forma de contestar a monocultura agro-exportadora e produzir um produto ecologicamente mais correto para quem produz e para quem consome; e a agroindústria como forma de agregar valor a produção agrícola e ao mesmo tempo inserir a força de trabalho das mulheres e dos jovens.

Rompendo as cercas da apatia

Conforme o MST avança na luta e cresce em Pernambuco, surge a necessidade imediata da formação de quadros militantes para assumirem a coordenação interna de uma ação, de uma atividade ou de um acampamento. É dentre os próprios trabalhadores que participam da luta que são formadas as coordenações dos acampamentos e de suas diversas comissões internas. Esses espaços são auto-gestionados, e são, portanto, espaços de estudo, planejamento e tomadas de decisão. É nessa ação prática de exercício da democracia participativa que se forjam os sujeitos sociais coletivos, onde os trabalhadores e trabalhadoras constroem uma outra cultura e novas relações de trabalho, passando a compreender essas relações como um processo pautado na coletividade e solidariedade.

Do mesmo modo foram se construindo os setores de atividades e frentes de atuação para atender às demandas especificas. Hoje temos oito setores organizados no Estado: produção, educação, saúde, gênero, comunicação, cultura, formação e direitos humanos.

Mas, além da pratica, esse processo educativo de participação exige também formação teórica. Por isso, o MST tem organizado em Pernambuco vários cursos de formação política para os novos acampados e também para os jovens, filhos de assentados. Dentre esses cursos, ressaltamos o Pé no Chão, que teve sua primeira turma no ano de 2003. Dede então já foram 19 turmas de formação política e profissional, que prepararam cerca de 950 jovens Sem Terra para assumirem tarefas de direção no Movimento.

Rompendo as Cercas do Conhecimento

Os trabalhadores rurais Sem Terra não tiveram apenas o direito a terra negada; a esses camponeses lhes foi historicamente negado uma série de direitos, entre eles, o direito à educação. Neste sentido a luta pela terra fez o MST lutar também pelo direito ao conhecimento, como cerca necessária a ser rompida, para que os trabalhadores do campo possam ser sujeitos políticos, que pensam, que agem, e usam a palavra como arma para transformar o mundo.

Nesta luta, o principal desafio é superar o índice de analfabetismo entre os camponeses. Para isso, além de participar da Campanha Nacional de Alfabetização, o MST está contando com a ajuda solidária do governo Cubano para desenvolver o método Sim, Eu Posso, um programa de alfabetização de jovens e adultos que ajudou a erradicar o analfabetismo em Cuba, na Venezuela e na Bolivia.

Há 20 anos atrás o índice de analfabetismo entre os Sem Terra chegava a 90%. Hoje esse índice caiu para 23%. Entre 2007 e 2008 o MST alfabetizou mais de dois mil trabalhadores Sem Terra em Pernambuco. Desde o seu inicio, já foram 10.000 camponeses alfabetizados pelos programas do MST.

“Todos e Todas Sem terra Estudando” é mais do que uma convocatória do MST. É um compromisso de todos os assentados e acampados. Hoje temos 200 escolas em assentamentos e acampamentos, com mais de 13 mil estudantes e 700 educadores. Além do ensino fundamental, investimos também na formação técnica de nossos jovens, com cursos técnicos de enfermagem, pedagogia, normal médio e EJA médio, num total de 400 jovens Sem Terra estudando.

Rompendo as cercas do preconceito de gênero

Romper com o preconceito contra as mulheres e com a cultura machista que predomina no Brasil é outra bandeira de luta do MST. No meio rural essa cultura é ainda mais forte, e tem historicamente relegado à mulher o papel de cuidar da casa e dos filhos, negando-lhe o direito à participação política. Romper com essa lógica exige um primeiro passo: garantir a participação das mulheres na luta e nos espaços de decisão política do Movimento. Por isso, a coordenação dos acampamentos e assentamentos é formada por um homem e uma mulher, assim como a direção das brigadas. Temos hoje, em Pernambuco, cerca de 95 mulheres participando da coordenação estadual do MST, o que representa praticamente 50% da coordenação.

Desde 2006 a Jornada de Luta das Mulheres Camponesas, realizada na Semana do dia 08 de março, tem se tornado um marco na luta contra o agronegócio e o modelo econômico. Esse ano as mulheres Sem Terra se mobilizaram em vários municípios do Estado. No Sertão, ela realizaram um protesto contra os grandes projetos de irrigação e o avanço do agronegócio na região. Na Zona da Mata, as mulheres realizaram um ato contra o trabalho escravo e infantil e contra o monocultivo de cana na Usina Cruangi, onde o Ministério do Trabalho resgatou 252 trabalhadores rurais, dentre eles, 27 menores de idade. Todos encontrados na usina, em regime de escravidão.

Nossos desafios atuais

Temos assistido, nos últimos anos, a uma mudança acelerada no perfil da estrutura do capitalismo no campo. O latifundiário coronelista atrasado está sendo substituído pelo agronegócio, que aprofunda ainda mais a submissão da agricultura brasileira aos interesses do capitalismo internacional e à monocultura exportação, acumulando mais riqueza e poder, e concentrando mais terra. Nesta conjuntura, também os inimigo da reforma agrária mudaram de perfil, e são mais fortes e poderosos do que o antigo latifundiário improdutivo.

Avanço do agronegócio e da monocultura agro-exportadora: Em Pernambuco, os projetos governamentais de promoção de agrocombustivel têm impulsionado o avanço do agronegócio na Zona da Mata, já tomada pela monocultura tradicional da cana. Isso tem aumento a exploração do trabalho e os conflitos por terra na região. No sertão, os grandes projetos de irrigação estão substituindo antigas áreas de agricultura familiar por grandes áreas de agricultura irrigada para exportação, principalmente de fruticultura, mas também nas áreas de cana-de-açucar e eucalipto, através da entrada de empresas multinacionais desses setores. Esse processo aumenta a concentração de terras e a expulsão de agricultores e populações tradicionais de suas terras.

Ofensiva do Poder Judiciário: O poder judiciário tem sido um dos maiores empecilhos para a Reforma Agrária, inviabilizando a maioria dos processos de desapropriação de terras. Pernambuco é o segundo estado com mais processos de desapropriação de terras parados na justiça. Além disso, o poder judiciário tem sido um importante instrumento na criminalização da luta pela terra, garantindo reintegrações de posse quase sempre sumárias a favor do latifúndio e criminalizando lideranças da luta pela terra.

O Poder Midiático: Na luta pela reforma agrária a grande imprensa brasileira tem se prestado permanentemente a propagandear falsas informações promovendo o modelo agroexportador e desqualificando os pequenos agricultores que produzem alimento para o povo brasileiro. Além de cotidianamente criminalizar a luta pela reforma agrária exibindo imagens e notícias que tentam desmoralizar os dirigentes do movimento e isolar a luta pela reforma agrária da sociedade e de nossos principais e potenciais aliados.

Apesar da difícil conjuntura que vivemos no Brasil hoje, o MST segue mobilizando os camponeses e camponesas Sem Terra, organizando a luta pela terra e reafirmando que a Reforma Agrária é o principal instrumento para resolver definitivamente o problema da estrutura agrária injusta, concentradora de terra e de riqueza, e para garantir a soberania nacional e alimentar do povo brasileiro. Reafirmamos: seguiremos ocupando terra, derrubando cercas, conquistando chão.