Quem manda mais: um governo federal ou um fazendeiro?

O primeiro capítulo da luta dos Sem Terra por um pedaço de chão na cidade de Taió, no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, foi interrompido pela ação do atual ocupante da área, o proprietário da Empresa HCR (Heidrich S.A.), também conhecida como Fazenda Mato Queimado. Resguardado por seguranças armados, o empresário Irineu Piazera proibiu a entrada de agentes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de um Oficial de Justiça que carregavam um mandado de imissão de posse, no início da tarde de 6/5.

Entre os funcionários do Incra/SC, estavam o Procurador-Chefe, o Ouvidor Agrário e o Superintendente Regional Substituto. A incursão seria o primeiro passo para a conquista da terra. Assim que o Instituto apresentasse o documento judicial, a terra passaria a pertencer à União e ficaria pronta para a instalação dos assentamentos.

O mandado de imissão de posse é definitivo, ao contrário do que dizem os fazendeiros, seus advogados e a imprensa. Decreto assinado pela Presidência da República, em 22 de janeiro de 2008, declara de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural denominado “Fazenda HCR”, além de reprovar indenização a particular. A fazenda faz parte de um conjunto de empresas de papel e celulose da Heidrich S.A., entre elas, a Himasa, que tem uma terra limítrofe à Mato Queimado e está em litígio para desapropriação.

O caso é para a polícia

A Polícia Militar fechou os acessos à fazenda e dificultou a passagem dos ônibus do MST. Além disso, Taió e as cidades vizinhas tiveram o policiamento reforçado. Os capangas da empresa ajudaram o trabalho da Polícia derrubando pontes e fazendo circular carros pelas estradas da região para fiscalizar entrada e saída de ônibus.

A situação de conflito não é inédita na cidade. No final de janeiro e começo de fevereiro de 2008, quando o Incra tentou tomar posse da terra pela primeira vez, a Polícia e os fazendeiros tentaram dificultar o trabalho do instituto e dos Sem Terra. Também fecharam os acessos à fazenda e apreenderam equipamentos de trabalho e os veículos do MST. Prefeituras e a Associação Comercial Industrial e Agrícola (Aciat) arrebanharam a população para fazer um protesto contra o movimento durante audiência de conciliação com a juiz agrário no Fórum de Taió.

Nesses dias, a empresa foi responsável por colocar cerca de 300 empregados, todos armados, para intimidar a ação dos sem-terras. Os trabalhadores ficaram instalados no centro comunitário da cidade e, em retaliação construída pelas autoridades da cidade, tiveram a água e a luz cortadas.

Uma terra especial

Com a certeza de que a questão da terra de Taió seria resolvida pelo Incra, de três regiões diferentes do Estado partiram ônibus e caminhões para agilizar o processo de assentamento. A intenção do movimento era ocupar a terra assim que o instituto oficializasse a posse. “Se o MST não ocupar, os peões dos empresários vão tomar posse da terra e dizer que eles fizeram a reforma agrária”, explicou uma liderança do movimento.

A terra de Taió é emblemática para o MST. Com 972 hectares, comporta pelo menos 35 famílias e representa um passo importante na luta pela Reforma Agrária no Estado. A terra vai assentar famílias das mais diversas regiões do Estado, que vão desenvolver a agricultura familiar em um território em que a prioridade é a indústria madeireira e a plantação de fumo.

Repressão e boicote

Ainda durante a manhã de 6/5, um ônibus e um caminhão originários de Curitibanos (Meio-oeste) foram parados por seis viaturas da Polícia Militar na estrada de terra que liga as cidades de Mirim Doce e Taió. A idéia inicial era se encontrar com as outras caravanas em Pouso Redondo. Os policiais militares obrigaram as cerca de 40 pessoas, entre crianças, jovens e adultos, a saírem do ônibus.

Depois de fazer a revista pessoal e nos veículos, a Polícia Militar apreendeu todos os pertences dentro do caminhão, ou seja, tudo aquilo que as famílias ainda tinham de bens, como colchões, roupas, alimentos e ferramentas de trabalho. A apreensão só foi possível depois de uma busca minuciosa a fim de achar alguma irregularidade. O para-barro do caminhão estava rasgado. O ônibus foi apreendido porque, supostamente, estava com superlotação. Crianças, jovens e adultos ficaram a pé, no meio da estrada, sem comida e sem segurança.

Proteção e solidariedade

Não satisfeitos com o seqüestro dos objetos pessoais dos Sem Terra, os policiais ainda apresentaram denúncia no Conselho Tutelar por suposto mal trato às crianças. Os agentes do conselho chegaram na localidade e puderam observar que a condição de desconforto que as crianças estavam submetidas não foi motivada pelos sem-terras, e trataram de oferecer lanche, leite e agasalho.

Uma terceira caravana, com um ônibus e um caminhão, de Mafra (Planalto Norte) também passou pela mesma situação.

Em Pouso Redondo, no ponto combinado, um ônibus com famílias de Campo Erê (Extremo-oeste) aguardava, de forma intranqüila, os desdobramentos dos acontecimentos com as demais caravanas. Ao lado deles, também estavam algumas das principais lideranças do MST no estado e cerca de trinta apoiadores de sindicatos e organizações populares. O ônibus do extremo-oeste saiu às 22h do dia 5/5 e chegou na madrugada do dia seguinte na região.

Os servidores do Incra só conseguiram chegar perto da fazenda por volta do meio-dia de 6/5, cerca de 14 horas depois que os Sem Terra deixaram Campo Erê.

A noite mais fria do ano

Reunidos em Pouso Redondo e em contato constante com as lideranças dos outros ônibus, a direção do MST resolveu adiar a ocupação da terra, e todos foram levados para o Assentamento 25 de Maio, localizado em Santa Terezinha, a cerca de uma hora de Taió, no final da tarde. No assentamento, as famílias foram recebidas pelos assentados e ficaram instaladas num amplo salão de festas. O acesso ao assentamento é feito por uma estrada de terra de 12 quilômetros na saída de Santa Terezinha.

A primeira noite na região, que prometia ser a mais gelada do ano, tinha tudo para ser ainda mais fria e desconfortável porque todo os pertencentes dos Sem Terra haviam sido apreendidos e ninguém soube informar onde foram guardados. Depois de negociação com a Polícia Militar por volta das 22h, o MST conseguiu resgatar algumas peças, em especial roupas, cobertores e colchões, para garantir o mínimo de conforto para as famílias. Os objetos estavam todos amontoados no ferro-velho da cidade.

Dois jovens Sem Terra, que também não se conhecia o paradeiro, pois foram levados pelos policiais para carregar e descarregar, estavam lá para cuidar das coisas. Eles gastaram mais de quatro horas ininterruptas nesse trabalho. Um deles recebeu uma proposta do comandante local da polícia. Se eles deixassem a cidade, não precisariam mais descarregar o ônibus e o caminhão e a Polícia faria vistas grossas às irregularidades apontadas.

No depósito, também se encontrava fogões, a lenha e a gás, botijões, pias, guarda-roupas velhos, panelas, sacos de limão, cebola e frutas, e remédios, enfim, tudo que as famílias tinham e conseguiram carregar em uma viagem de esperança e luta.

A situação de represália ficou tão evidente que até mesmo o proprietário do ferro-velho reconheceu. “O motivo da apreensão era para atrasar e dificultar a vida de vocês”, disse Nazário, morador e dono da sucata, que ofereceu jantar, chimarrão e pinhão aos jovens. Sua família também foi solidária e apoiou.

Pelo menos naquela noite um pouco mais de conforto estava garantido e a luta por aquela terra em Taió seria menos árdua. Apesar de estrelada e com lua cheia, a madrugada, como a previsão do tempo prometia, foi a mais fria do ano. Na região, a temperatura oscilou entre 3 e 5ºC.

O dia seguinte e a expectativa

Na manhã seguinte, ainda sob geada de final de madrugada, as lideranças do MST reuniram as famílias em assembléia para tratar da organização do novo acampamento, que, por ora, ficaria dentro do próprio assentamento do MST. Foram organizadas as brigadas de alimentação, limpeza e segurança. O mais importante é que ficou claro que a resistência vai ser mais difícil e duradoura do que o imaginado anteriormente.

A sensação de desespero no começo deu lugar a um sentimento de esperança e necessidade de se organizar. “O assentamento de Taió vai ser uma grande experiência que vamos desenvolver”, afirmou Irma Brunetto, liderança do MST que acompanhou o ônibus de Campo Erê.

A permanência no 25 de Maio, onde os agricultores estão assentados desde 1989, é importante porque mostra àquelas famílias, que estão se iniciando no movimento, que a conquista de um pedaço de terra é possível.

“Pra nós do Movimento Sem Terra é uma grande alegria estar novamente no município de Taió um ano e três meses depois do decreto de desapropriação da fazenda Mato Queimado. Estamos aqui com aproximadamente 50 famílias que vão ser assentadas nessa área que foi desapropriada há mais de um ano e que Incra está se imitindo na posse. Por esse motivo essas famílias estão aqui para ser realizado o assentamento”, declarou para a imprensa local Genira Andriolli, uma das coordenadoras do grupo.

Por enquanto, a luta pela área em Taió é apenas uma esperança, porque, na luta do povo e com o MST, a terra não se ganha, se conquista. Algumas famílias vão desistir no caminho, outras vão se incorporar, mas, a exemplo do Assentamento 25 de Maio, as famílias sem-terras vão se fixar naquela terra e dela colher alimento e cidadania.

Nos próximos dias, a direção do Incra em Florianópolis promete retornar à Taió para tomar posse da terra e fazer a reforma agrária. Dessa vez, vai com reforço de agentes da Polícia Federal para garantir a segurança e a efetivação do mandado de imissão de posse. O Incra não vai poder contar com a Polícia Militar estadual.