Caso Cosan: aliciamento, dívidas e cortador de 17 anos
Por Maurício Hashizume
Dois argumentos acompanharam a retirada da Cosan, uma das maiores companhias sucroalcooleiras do mundo e pertencente ao grupo transnacional Cargill, da “lista suja” do trabalho escravo. A liminar concedida pelo juiz substituto Raul Gualberto Fernandes Kasper de Amorim, do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), acolhe as justificativas de que a situação não era tão grave a ponto de ser caracterizada como trabalho escravo e de que as irregularidades encontradas eram de responsabilidade de um empregador terceirizado.
Na decisão de 8 de janeiro de 2010, o magistrado sustenta que os autos de infração relativos ao caso são insuficientes para a “tipificação da redução à condição análoga à de escravo”. Em junho de 2007, operação do grupo móvel de fiscalização do governo federal libertou 42 trabalhadores da Usina Junqueira, da Cosan, localizada em Igarapava (SP). “Inexistem elementos que atestem a ofensa ao direito de ir e vir desses trabalhadores”, conclui.
Entre os 13 autos de infração lavrados, destacam-se: limitar, por qualquer forma, a liberdade do empregado de dispor de seu salário; admitir ou manter empregado sem o respectivo registro em livro, ficha ou sistema eletrônico competente; deixar de disponibilizar água potável e fresca em quantidade suficiente nos locais de trabalho; e manter empregado com idade inferior a 18 anos em atividade nos locais e serviços insalubres ou perigosos.
A avaliação da procuradora do trabalho Carina Rodrigues Bicalho, que fez parte do grupo móvel de fiscalização responsável pela operação que envolveu a Cosan, não coincide com a do juiz. Ela enumera um conjunto de constatações que considera plenamente suficientes para a caracterização do trabalho escravo contemporâneo: aliciamento de trabalhadores, submissão a sistema de endividamento (conhecido também como “barracão” ou truck system) e condições degradantes e irregulares nas frentes de trabalho e em termos de alojamento, alimentação, transporte etc.
Relatos colhidos pelos representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Polícia Federal (PF), que compõem o grupo móvel de fiscalização, respaldam a ocorrência de aliciamento. Um preposto da dita empresa terceirizada José Luiz Bispo Colheita – ME arregimentou mão-de-obra em Araripina (PE). De lá, mobilizou transporte irregular – sem a Certidão Declaratória exigida pelo MTE – até Delta (MG), na divisa entre SP e MG, próximo a Igarapava (SP).
A promessa de emprego no Centro-Sul, mais especificamente em usina da Cosan, motivou o deslocamento das pessoas. A viagem foi cobrada antecipadamente (R$ 210). As vítimas contaram que, no momento da abordagem inicial, não foram informadas que teriam de arcar com aluguel, comida e produtos de necessidade básica para o trabalho.
Quando chegaram ao precário “Alojamento do Guri”, em Delta (MG), as vítimas se viram obrigadas a pagar pela estadia. Alimentos e outros itens essenciais (chapéu de proteção contra o sol, marmita para refeições e garrafa térmica para levar água) adquiridos nos supermercados do Carlinhos e do Juarez, indicados pelo intermediário na contratação, eram contabilizados como dívidas e acabavam sendo descontados dos salários.
“Não estava sobrando dinheiro para que eles pudessem mandar para a família”, sublinha a procuradora Carina, que integra atualmente a equipe da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região (PRT-1). A maior parte do grupo começou a trabalhar em maio de 2007 e a fiscalização recolheu “vales” correspondentes aos produtos contabilizados no sistema de dívidas.
No comunicado divulgado por ocasião da inclusão do conglomerado na atualização de 31 de dezembro de 2009 da “lista suja”, a Cosan manifesta “repúdio veemente” contra “qualquer prática que não respeite os direitos trabalhistas de colaboradores do seu quadro de empregados e dos quadros de seus fornecedores e parceiros”. Entre os libertados da Usina Junqueira, entretanto, havia um jovem de 17 anos trabalhando no corte de cana, atividade proibida para quem não tem 18 anos completos.
Durante a inspeção do “Alojamento do Guri”, foram constatadas outras irregularidades como o excesso de pessoas (algumas inclusive com suas respectivas famílias), alimentos (próximos a EPIs e ferramentas sujas) dispostos no chão, carnes penduradas em varais pelos cômodos, instalações sanitárias sem condições de uso e fiação elétrica inadequada.
Havia ainda problemas graves nas frentes de trabalho como a ausência de água potável e o transporte irregular. A água que os trabalhadores levavam para beber era retirada diretamente das torneiras do “Alojamento do Guri”, sem passar por qualquer filtragem ou purificação. Sem documentação regular e em péssimo estado de conservação, o ônibus que levava o grupo estava sem freio e foi apreendido pela fiscalização.
Carina relata que, na audiência após o primeiro dia de inspeções, representantes da Cosan concordaram em providenciar o retorno dos trabalhadores para Pernambuco e em pagar dois tipos de indenizações: por danos materiais (passagem e alimentação da viagem de chegada, todos os “vales” contabilizados como dívidas nos mercados etc.) e “pela situação verificada” (de R$ 800 para cada trabalhador). “Na prática, essa última indenização foi paga a título de danos morais individuais”, explica a procuradora, sem antes reforçar que a empresa não acataria esse desembolso extra se o quadro fosse apenas de irregularidades trabalhistas.
Compromisso anterior
Na liminar em favor da Cosan, o magistrado Raul Gualberto referenda ainda o entendimento de que as ocorrências registradas na operação se deram em “outra empresa, José Bispo Colheita – ME, a qual prestava serviços terceirizados” ao poderoso grupo do setor de cana-de-açúcar. “É dizer, as irregularidades que apontariam a configuração do trabalho escravo indicam sua prática por outra pessoa jurídica, não pela impetrante [no caso, a Cosan]”, acrescenta o juiz substituto do TRT-10.
Essa mesma posição é reforçada no comunicado da Cosan. “A empresa José Luiz Bispo Colheita – ME prestava serviços de corte de cana-de-açúcar para diversos produtores do interior do Estado de São Paulo que faziam parte da cadeia produtiva da Cosan”, declara a empresa.
“O evento que envolveu a empresa José Luiz Bispo Colheita – ME não contou com a cooperação ou concordância da Cosan”, emenda o grupo, reafirmando que “possui rígidas políticas internas que determinam o cumprimento das normas legais aplicáveis a seu negócio” e que “se viu então envolvida como responsável solidária por tais irregularidades”. O “descredenciamento” da José Luiz Bispo Colheita – ME da cadeia produtiva também foi anunciado.
A Cosan não chega nem a citar, porém, que já tinha assinado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15) – sob o nº 2803/2006, em março de 2007 (três meses antes da fiscalização). O TAC trata justamente da contratação de terceirizados na Usina Junqueira e em outras 16 usinas mantidas pelo grupo no interior paulista à época do acordo. O acordo define limites (20% na safra de 2007; 15% na safra de 2008; 10% na safra de 2009; e redução a zero na safra de 2010) e estabelece, com destaque, condições específicas para a contratação de prestadoras de serviços para o corte manual da cana.
No referido TAC, a Cosan se compromete a contratar somente empresas terceirizadas “regularmente constituídas e financeiramente idôneas, assegurando ao trabalhador [da pessoa jurídica contratada] condições análogas às dispensadas aos empregados próprios”. À fiscalização, o próprio José Luiz Bispo, dono da José Bispo Colheita – ME, confirmou que sua empresa não era dotada de capacidade financeira. Algumas evidências saltaram aos olhos da inspeção. A remuneração dos trabalhadores (R$ 2,44 por cada tonelada derrubada no eito da cana-de-açúcar) era paga com o dinheiro que a própria Cosan depositava para o intermediário, que recebia valor equivalente a 135% da produção dos cortadores. Além disso, José Bispo declarou que funcionários da companhia acompanhavam as empreitadas e que possuía apenas uma casa popular e um Ford Pampa 1986 sem seguro que, após acidente que resultou na perda total do veículo, virou sucata.
“Não era um problema de terceirizado, de fornecedor”, sustenta, categoricamente, a procuradora Carina. Para ela, José Luiz atuava na prática como “gato” (aliciador) da Usina Junqueira e a empresa intermediária (José Bispo Colheita – ME) não se estava na categoria de “financeiramente idônea” para ser aceita como terceirizada. Segundo a procuradora, portanto, a relação dos cortadores de cana com a Cosan era, diferentemente da forma como é tratada na nota da empresa e na liminar, bem mais direta.
O juiz Raul Gualberto faz menção, em sua decisão, à terceirização e ao TAC anterior à fiscalização trabalhista. “Apesar de questionada a licitude dessa terceirização, nesse aspecto, houve Termo de Ajustamento de Conduta da impetrante com o Ministério Público do Trabalho destinado a eliminá-la, o que, a princípio, restou devidamente cumprido”, avalia. Carina destaca, contudo, que a terceirização “sempre foi considerada ilegal” e que o acordo apenas estabelecia prazos e exigências com vistas à regularização completa do corte para a Cosan até 2010, sem que fosse necessário aguardar o trâmite, muitas vezes moroso, de ações civis públicas na Justiça.
As cláusulas do TAC nº 2803/2006, completa a procuradora, não estavam sendo aplicadas também no que diz respeito às condições de trabalho. Os cortadores contratados diretamente pela Cosan não conviviam com o mesmo rosário de problemas – desde EPIs, a alojamentos inadequados e cobrança pela alimentação e por ferramentas – enfrentado pelo grupo de aliciados por José Luiz para o empreendimento em Igarapava (SP).
Repercussão posterior
Em decorrência da inclusão da Cosan na “lista suja”, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) bloqueou operações com o tradicional grupo sucroalcooleiro, em caráter preventivo. “A celebração de novos contratos com o BNDES fica condicionada à exclusão da companhia do referido cadastro”, informou, em nota, o banco estatal. A rede varejista Walmart, que é signatária do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, anunciou, por sua vez, a suspensão temporária de compras por causa da presença do nome da Cosan no clube de infratores.
Um dia depois do posicionamento do BNDES e no mesmo dia do anúncio do Walmart, a Cosan obteve liminar e saiu da “lista suja”. A exclusão permitiu a retomada das relações comerciais e financeiras. Associada à União da Indústria de Cana-de-açúcar (Única), a companhia é dona de 23 usinas (21 em São Paulo e duas em construção, em Goiás e no Mato Grosso do Sul), tem o controle das marcas de açúcar União e Da Barra, dos 1,5 mil postos de combustível da Esso no país e da venda de lubrificantes Mobil.
Quem também veio a público para defender a Cosan foi o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes. Mesmo não sendo de sua alçada, ele classificou a inclusão da Cosan na “lista suja” de “exagero” e “erro”.
Justamente por conta de sucessivos descumprimentos de normas trabalhistas previstas em acordos prévios (assim como no caso da libertação de trabalhadores da Usina Junqueira), o MPT fez uma proposta, em 25 de novembro de 2009, para que a Cosan desembolse R$ 3,4 milhões em substituição a possíveis execuções de multas na Justiça. O prazo de 45 dias já se esgotou e, segundo informações da assessoria de imprensa da PRT-15, ainda não foi encaminhada nenhuma resposta oficial ao procurador Mário Antonio Gomes, que está à frente das negociações.
A proposição de acordo atingiu altos valores por conta de diversas infrações à Norma Regulamentadora 31 (NR-31), entre elas a falta de banheiro e de água potável nas frentes de trabalho dos canaviais. Uma das ações contra a Cosan corre na 3ª Vara de Trabalho de Araçatuba (SP). A PRT-15 quer que 10% sejam revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e que 90% do valor total sejam investidos em instituições de caridade.
A unidade de Igarapava (SP) faz parte de pelo menos dois pactos de responsabilidade empresarial: o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, articulado pelo governo federal, e o Protocolo Ambiental que faz parte do Programa Etanol Verde, do governo paulista, que concede certificados de boas práticas socioambientais e estabelece metas de redução de impactos. No comunicado público sobre o episódio, a companhia assume para si o “papel de liderança, junto aos governos estadual e federal, no esforço de regulamentar e melhorar as condições de trabalho de toda a cadeia produtiva do agronegócio”.
Ainda na mesma nota, a Cosan se declara “surpreendida com a inclusão de seu nome no cadastro de empregadores da Portaria nº 540/04 do Ministério do Trabalho, publicado no último dia 31 de dezembro de 2009” e “que tal processo de inclusão do seu nome na lista não era em absoluto de seu conhecimento e que, portanto, não teve a oportunidade de se defender”. Na última sexta-feira (15), a reportagem encaminhou perguntas sobre as irregularidades flagradas pelo grupo móvel e seus desdobramentos, com prazo para envio das respostas. A empresa, contudo, optou por não se pronunciar.