Os 20 anos do MST no Pará

Do Amazonia.org.br Em 2010, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) completa 20 anos de atuação no Pará. Região marcada por violentos conflitos agrários no País, o estado tem recebido novos investimentos, que acentuam o debate sobre o modelo de desenvolvimento da região amazônica. Ulisses Manaças, membro da direção estadual do MST no Pará, falou com o site Amazonia.org.br sobre a atuação do movimento no estado, a evolução e os efeitos da exploração econômica na região e as perspectivas em relação às eleições deste ano. Confira.

Do Amazonia.org.br

Em 2010, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) completa 20 anos de atuação no Pará. Região marcada por violentos conflitos agrários no País, o estado tem recebido novos investimentos, que acentuam o debate sobre o modelo de desenvolvimento da região amazônica.

Ulisses Manaças, membro da direção estadual do MST no Pará, falou com o site Amazonia.org.br sobre a atuação do movimento no estado, a evolução e os efeitos da exploração econômica na região e as perspectivas em relação às eleições deste ano.

Confira.

Amazonia.org.br – Diante de que cenário se encontrava o MST, no Pará, 20 anos atrás, quando o movimento dava os primeiros passos no Estado?

Ulisses Manaças – O MST existe formalmente desde 1984, e veio para o Pará já dentro de um esforço nacional do movimento, então recém-constituído. Nesse período, no Estado, já existiam lutas pela terra, de forma espontânea. O que caracterizava os conflitos aqui era a luta posseira, para a garantia da sobrevivência: uma família, o lote e a arma. A violência foi uma das características fundantes do Pará. A disputa pelo território.

É importante lembrar que na década de 1970 vários projetos de colonização foram implementados no Estado, principalmente no sul e sudeste e na região do Baixo Amazonas, por governos da ditadura militar. Eles procuravam garantir a presença física na Amazônia, com objetivos como salvaguardar a fronteira da invasão estrangeira.

Mas um elemento fundamental nessa região é a presença da grande pecuária e da indústria madeireira, que num projeto consorciado procuraram ocupar o território. Tanto é que eles foram responsáveis por crimes ambientais e trabalho escravo em todo o Pará.

O MST, então, vem para a região com uma proposta nova. De construção dos assentamentos, mas não somente eles. Com o objetivo de construir comunidades que se auto-organizem e façam do território um espaço de gestão que vai entrar em disputa com esse grande projeto do capital. Esse é o contexto. Um movimento formado por uma militância oriunda do sindicalismo rural combativo, que estava irrompendo nesse período, e que saiu fortalecida da luta contra a ditadura militar.

Qual o panorama hoje na região?

Nós passamos por vários períodos. As primeiras ocupações do MST não tinham essa característica dos assentamentos como comunidades com atuação em diversas esferas da vida humana, em áreas como educação, produção organizada, cultura popular e saúde comunitária. Nós fomos agregando esses elementos no decorrer de nossa história, desde 1990, quando houve a primeira ocupação no município de Conceição do Araguaia, um assentamento de 100 famílias.

Hoje, esses assentamentos procuram ser comunidades embrionárias de um novo projeto de desenvolvimento para a Amazônia. Porém, nós estamos enfrentando um cerco muito grande. Isso porque aquela ocupação de território na Amazônia, antes capitaneada pela indústria madeireira e pela pecuária de corte, vem cedendo lugar a uma nova forma de ocupação. O capital se aperfeiçoou nessa região, e atualmente quem procura disputar território com as comunidades camponesas são as indústrias transnacionais, que ganharam espaço na década de 90, com o neoliberalismo.

Casos como o da Cargill, empresa que tem um porto maior do que o porto da Companhia Docas do Pará, na cidade de Santarém.Também existem aqui as grandes mineradoras, como a Alcoa, que inaugurou uma indústria de bauxita na região de Juruti. As empresas estão disputando território hoje na Amazônia.

Isso, além do capital financeiro. O banco Opportunity, por exemplo, comprou propriedades na região. São fazendas de pecuária, que na verdade representam uma atividade de fantasia, porque o papel fundamental dessa instituição financeira é garantir direito de lavra no território sul e sudeste do Pará, onde está localizada a maior jazida mineral do mundo. Então são vários interesses que se completam, que estão embutidos.

Aquele latifúndio que seria nosso inimigo central permanece sendo inimigo, porque precisamos de terra para a reprodução de nossa vida. Porém, ele é um inimigo secundário. Há uma conjugação de setores como a indústria madeireira, a pecuária, a produção de grãos, as transnacionais e o capital financeiro que hoje disputam território conosco.

A natureza de nossa luta mudou. A terra permanece sendo um dos objetivos centrais do MST, mas queremos mais. Queremos uma Reforma Agrária e queremos também a mudança do modelo de desenvolvimento, especialmente aqui na Amazônia.

Muitas das ações do MST acontecem em áreas onde há trabalho escravo, crimes ambientais e titulação fundiária duvidosa.Como você avalia essas três questões atualmente?

É importante que se diga que a mídia afirma que são os movimentos sociais os responsáveis pelos conflitos no campo. Na verdade, ocorre o inverso. Só existem movimentos sociais no campo, tanto na Amazônia em todo o Brasil, porque há um problema agrário não resolvido. A Amazônia, em especial, é um grande caos fundiário.

Para se ter uma idéia, no ano passado, como resultado de um grupo de trabalho sobre a questão da grilagem no Pará, 6.102 títulos irregulares foram descobertos. Falsos ou grilados. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tentou anulá-los, mas o Tribunal de Justiça do Estado do Pará não garantiu o bloqueio desses títulos. Então praticamente todos os títulos que existem aqui são irregulares.

Isso está relacionado com a forma de ocupação do território: a abertura da fronteira agrícola. Hoje, para o capital, para o agronegócio, a Amazônia é a última fronteira a ser aberta para a exploração. E com isso, para eles, a floresta é um obstáculo. Ela precisa vir abaixo para dar lugar à pastagem, ao monocultivo e mesmo à mineração.

Essa questão está na origem de todos os problemas ambientais da região. Ainda mais quando o governo tem acenado, por exemplo, para garantir a concessão de florestas para empresas privadas. Tem também esse problema da norma que garante a titulação de terra com até 1.500 hectares, que para nós também é uma ameaça. Isso precisa ser debatido exaustivamente com a sociedade.

Nós somos favoráveis a um processo de titulação de terra, mas é preciso que se imponha limites. O capital financeiro, especulativo, não pode adquirir terra na região amazônica, pois ela precisa ser protegida. Desta forma, nós estamos defendendo, juntamente com outras organizações, o desmatamento zero na região. De forma que a sociedade possa realizar debates sobre a utilização da floresta, o que é fundamental para seu desenvolvimento.

O trabalho escravo, por sua vez, também está relacionado com a questão da abertura da fronteira agrícola. Ao longo do tempo, governos apostaram que a região amazônica era um espaço para reprodução ampliada de capital, enriquecimento rápido, e isso foi propagandeado. Assim, a Amazônia – especialmente o Pará – se tornou o maior destino migratório do Brasil.

Com isso, pessoas sem formação e que não têm o amparo do Estado são vítimas fáceis dos grandes latifundiários que procuram reproduzir o trabalho precário em suas propriedades para enriquecimento rápido.

Em dezembro, o presidente Lula assinou um decreto autorizando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a desapropriar uma fazenda no município de Rio Maria, no sudoeste do Pará. A medida representa a segunda vez no Brasil que uma área é declarada para fins de Reforma Agrária levando-se em consideração o descumprimento da função social no aspecto da preservação ambiental. Qual sua avaliação sobre isso?

O decreto do governo foi uma sinalização muito positiva, alinhado com uma bandeira histórica dos movimentos sociais, mas ainda incipiente diante do desafio que temos na região amazônica.

Os setores mais atrasados e conservadores do Estado e do Brasil têm feito pressão para que o Código Florestal brasileiro seja alterado. Os setores ligados ao agronegócio querem flexibilizar a legislação que protege o meio ambiente, para que eles possam destruir a floresta e ampliar seus negócios na região.

Existe por exemplo a proposta do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), para reduzir a área de reserva na Amazônia Legal de 80% para 50%, com isso garantindo mais espaço para o agronegócio destruir a floresta.

Se formos analisar, em todos os espaços ocupados pelo MST ou por outros movimentos sociais já existe de antemão crime ambiental, porque são áreas de cobertura somente de pastagem, onde a floresta já foi destruída. Um dos casos mais graves é o da Fazenda Cabaceira. Há cerca de um ano, por decreto do presidente da República, a área foi desapropriada e virou assentamento para Reforma Agrária. Foi pago cerca de R$ 8 milhões ao proprietário, que destruiu a região chamada de Polígono dos Castanhais para a produção de pastagem.

Os crimes ambientais precisam ser combatidos de forma eficiente e coerente com aquilo que temos defendido: a desapropriação das terras em razão de crimes ambientais, muito comuns no Pará.

A região sul e sudeste do Pará tem sido reconhecida, ao longo do tempo, como uma das regiões onde há mais violência agrária no país. Esse cenário permanece?

Sim, permanece. É talvez a região mais violenta do Brasil.

A ocupação dessa área remete a pouco mais de 100 anos atrás. É uma região muito nova. Há, por exemplo, um município como Canaã dos Carajás, que tem 10 anos de existência. Em 2003, tinha 10 mil habitantes, e hoje já tem 29 mil, por conta da mina de Salobo, explorada pela Vale. Há também Parauapebas, uma cidade com 19 anos de idade e que já tem 220 mil habitantes, em razão da presença da Vale. Tucuruí, onde está a quarta maior hidrelétrica do mundo, também cresceu rapidamente. Marabá tem sido foco de iniciativas na área de siderurgia.

É uma região que tem sido remodelada devido aos grandes projetos que vem recebendo. Nessas cidades há a pressão do capital e consequentemente o maior fluxo migratório de toda a região Norte do País.

Por outro lado, há a aliança dos grandes fazendeiros da região, que estão substituindo o pasto pela produção do eucalipto, para alimentar essas indústrias siderúrgicas. A produção de eucalipto numa região de terras de solo frágil como o da Amazônia representa um grave crime ambiental. Sabemos como é a intervenção do eucalipto na terra.

Esses fatores, portanto, vão demarcando toda a geopolítica no sul e sudeste do Pará; as pressões sociais, a violência e a pressão sobre as terras das comunidades quilombolas, das comunidades ribeirinhas e das comunidades camponesas. Eles representam uma violência qualificada do Estado contra as comunidades e têm contribuído com o aumento da violência, embora tenha diminuído o número de assassinatos.

Como o MST atua na área da educação no Pará?

O MST, junto com outros movimentos sociais, resolveu, nos últimos dez anos, se dedicar muito à questão da educação. Mas isso vai além da construção de escolas. Nós acreditamos que nenhuma comunidade camponesa conseguirá se desenvolver com plenitude se não houver uma democratização do acesso à educação.

Então resolvemos construir uma proposta dentro deste tema. E para isso tomamos medidas como pressionar as universidades a reconhecerem a educação do campo como um modelo de educação específico. Esses debates recentes na universidade sobre a educação no campo, que inclusive têm sido alvo de pesquisas, estudos e formulações, foram uma conquista dos movimentos sociais.

Aqui no Pará, por exemplo, conseguimos construir, no assentamento Palmares, no município de Parauapebas – um assentamento de 517 famílias – a maior escola do campo no Brasil. São quase dois mil alunos, com aulas para o primeiro e segundo graus. O ensino é de qualidade e a infraestrutura da escola muito boa.

Nós percebemos o reflexo das conquistas na área da educação nas famílias e sabemos de sua importância para agregar conhecimento a nossa luta e qualificar os assentamentos.

Quais as perspectivas do MST em relação às eleições deste ano? Você acha que a candidatura de Marina Silva à presidência fará com que a sociedade brasileira se mobilize com temas antes relegados a um segundo plano?

Nossa preocupação é que estamos vendo poucas novidades no cenário eleitoral. Queremos que as eleições fujam da polarização entre PT e PSDB. Portanto, a candidatura da Marina pode representar uma novidade.

Agora, nós queremos que esse debate vá para além da defesa da natureza. Precisamos conectar essa discussão com a evolução das políticas públicas que garantam também o desenvolvimento social.

Para o MST, as eleições podem e devem se tornar um espaço privilegiado de debate sobre o rumo do modelo de desenvolvimento. O modelo que o Brasil adotou é insustentável. Novas propostas têm de ser apresentadas, em especial para a Amazônia.

Portanto, a candidatura da Marina abre essa possibilidade de ampliação do debate acerca do modelo de desenvolvimento.

Tendo em vista a comemoração dos 20 anos da atuação do MST no Pará, quais as principais conquistas do movimento na região? Quais os desafios que permanecem para os próximos anos?

A história do MST no Pará é marcada por muitas dificuldades. É o Estado mais violento do Brasil em relação à questão dos conflitos no campo. Só nos últimos anos, foram mais de 600 assassinatos. Portanto, a atuação de um movimento social como o MST acaba sendo marcada por muita violência também. Em 1998, nós perdemos dois dirigentes, o Fusquinha e o Doutor. Em 1996, perdemos 19 trabalhadores rurais no massacre de Eldorado do Carajás. São marcas muito dolorosas em nossa história.

Porém, o MST conseguiu construir assentamentos de referência no desenvolvimento da vida social, da escola, da educação, com saúde de qualidade integrada ao meio ambiente – e não somente aquela voltada a dar o remédio para quem está doente. Realizamos várias experiências no campo da agroecologia, que para nós é a baliza fundamental para a construção de um outro modelo de agricultura na Amazônia. Não se pode pensar em agricultura convencional na Amazônia, e a agroecologia é o caminho para a harmonização da relação entre homem e meio ambiente.

Nós conseguimos conquistar formação. A academia se abriu para o MST. Criamos, junto com a Universidade Federal do Pará (UFPA), três cursos: um de Agronomia, um de Pedagogia e agora uma turma de Letras, para agregar conhecimento científico à vida no campo.

Essas são algumas das conquistas de nosso movimento, além de pautar de forma mais acentuada a questão dos crimes ambientais na Amazônia, bem como outros temas como o da soberania alimentar, da violência no campo, do trabalho escravo. São pautas que hoje estão no cotidiano da sociedade paraense e amazônida por conta da atuação do MST e de outros movimentos sociais do campo e da cidade.

São 20 anos de conquistas, vitórias, mas acima de tudo de muitos desafios. Permanece o desafio desse novo modelo agrícola para a Amazônia; permanece o desafio da multiplicação da formação política nos assentamentos; permanece o desafio da universalização do acesso à educação, porque a grande parte do campesinato ainda é formada por analfabetos. Permanece também a luta de massa para reconduzir a reforma agrária como uma pauta central para o desenvolvimento nacional.

Acreditamos que a Reforma Agrária passa por um momento de derrota. É um momento de forte criminalização contra os movimentos sociais, em especial o MST, com Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional. Portanto, acreditamos que a elevação das lutas de massa e uma maior participação política nas diferentes escalas são importantíssimas pra reconduzirmos a Reforma Agrária para o cenário da atualidade.