A função social esquecida

Por Vasconcelo Quadros

Por Vasconcelo Quadros

Parada na pauta da Câmara há seis anos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que legaliza o confisco de propriedades que se utilizam de trabalho escravo, poderia aliviar os conflitos pela reforma agrária caso já tivesse sido transformada em Lei. Os 161 estabelecimentos autuados pelo Ministério do Trabalho desde 2004 representariam, segundo estimativas extraoficiais, perto de dois milhões de hectares que poderiam ser anexados ao estoque de terras da reforma agrária, atendendo 30 mil famílias de trabalhadores rurais sem que “ao contrário dos atuais critérios de desapropriação” o governo precisasse desembolsar um centavo para indenizar os donos da terra.

“A PEC 438 se insere nos critérios de cumprimento da função social da terra. Ela ajudaria a combater o trabalho escravo e facilitaria a obtenção de terras para a reforma agrária” afirma o presidente do Instituto Nacional de Coolonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart.

Para se ter uma idéia do alcance da lei, para este ano o Incra prevê vistorias em área que, uma vez desapropriadas, podem acrescentar ao atual estoque da reforma agrária cerca de 4 milhões de hectares, o suficiente para assentar 60 mil trabalhadores rurais. Os oito mil assentamentos distribuídos em todo o país historicamente ocupam pouco mais de 80 milhões de hectares.

Concentração O ex-senador Ademir Andrade, hoje vereador e presidente do PSB do Pará, autor da proposta, diz que as propriedades que praticam trabalho escravo têm áreas acima de 10 mil hectares de terra e estão concentradas basicamente na região Norte do país.

“Há dez anos, quando apresentei a PEC, algumas propriedades tinham entre 100 e 200 mil hectares. Hoje a prática de trabalho escravo diminuiu muito. Mas se a lei estivesse em vigor, impediria o trabalho escravo e reduziria muito o desmatamento e os demais crimes ambientais na região amazônica. Um crime está conectado ao outro”, observa Andrade.

Segundo o ex-senador, a mão de obra escrava era empregada, especialmente, no desmatamento de grandes áreas que os proprietários transformam em pastagens.

Uma década depois das primeiras denúncias, afirma Andrade, a situação se inverteu.

Hoje mais de 90% dos desmatamentos são provocados por trabalhadores rurais que tiveram acesso à terra e, sem alternativas de sobrevivência, negociam as matas dos assentamentos com as madeireiras.

“Os trabalhadores assentados desmatam por necessidade de sobrevivência. 95% deles não têm condições de viver da agricultura e optam pela pecuária”, diz Andrade.

Antecipação Apesar de a PEC 438 ainda não ter virado lei, o Incra já reivindica na Justiça a posse de pelo menos três fazendas em que o Ministério do Trabalho encontrou indícios de trabalho escravo no Mato Grosso e no Pará depois que a justiça abriu processo contra os proprietários no ano passado.

“Nós estamos sempre de olho no cadastro do Ministério do Trabalho”, admite uma fonte da autarquia. De 1997 até o ano passado, cerca de 2.500 propriedades rurais foram fiscalizadas e muitas delas apresentavam as características necessárias para a desapropriação: improdutivas, destruição do meio ambiente e desrepeito à legislação trabalhista, caracterizando condições de trabalho análoga à escravidão.

Só no ano passado, foram autuados 324 estabelecimentos rurais e resgatados 3.561 trabalhadores. Em geral, a descoberta de trabalho escravo é um indício de que há outras irregularidades incompatíveis com a função social da terra prevista na Constituição. Desde que o governo passou a fiscalizar as propriedades rurais, o trabalho escravo em sua forma original, a servidão por dívidas contraídas pelo trabalhador com o proprietário, reduziu drasticamente. A principal razão é o temor do proprietário em arcar com pesadas multas, responder a processo e ainda perder a terra que passa a alvo de rigorosa fiscalização.