Haiti precisa de investimento permanente, diz militante do MST

Do Opera Mundi O panorama é perverso: análises de economistas e dirigentes de organizações campesinas mostram que a ajuda internacional, motivada pelos desastres naturais, aumenta o grau de dependência das importações e não permite o fortalecimento da produção agrícola haitiana, conforme explicou o professor de história José Luis Patrola.

Do Opera Mundi

O panorama é perverso: análises de economistas e dirigentes de organizações campesinas mostram que a ajuda internacional, motivada pelos desastres naturais, aumenta o grau de dependência das importações e não permite o fortalecimento da produção agrícola haitiana, conforme explicou o professor de história José Luis Patrola.

Patrola é membro do MST e coordenador do programa de cooperação entre a Via Campesina do Brasil e organizações camponesas do Haiti. Segundo ele, até os anos 1990, os camponeses eram responsáveis pela produção de 80% dos alimentos demandados pela sociedade. Hoje, produzem somente 45%.

Em entrevista, ele fala da presença da Via Campesina no Haiti, que data de 2009. De acordo com ele, a já debilitada agricultura haitiana sofreria ainda mais se fosse instalado um modo de produção intensivo.

Confira abaixo:

Opera Mundi: Qual foi a reação das pessoas após o governo haitiano pedir para que todos que tivessem parentes fora de Porto Príncipe saíssem da capital?

José Luis Patrola: A concentração de gente na região de Porto Príncipe é enorme. Como o terremoto atingiu principalmente essa zona, houve uma mudança radical na vida de todos. Centenas de milhares de pessoas que perderam as casas ou que estavam em uma situação difícil antes do terremoto montaram enormes acampamentos em todas as praças da região metropolitana, em especial a Cham de Mas, localizada em frente ao palácio nacional.

Outra parte migrou massivamente para as zonas rurais fugindo do terror e à procura de comida, moradia, água e o mínimo de abrigo. Estima-se que de 600 mil a um milhão de pessoas abandonaram Porto Príncipe. Em resumo, mais de 250 mil pessoas morreram no terremoto e um milhão migrou em busca de outras zonas. Um desastre sem precedentes.

Como é a situação socioeconômica no campo haitiano?

A área rural haitiana, que acolhe mais de 65% da população e é responsável por grande parte da economia, é muito pobre. As poucas terras férteis do país são dividas entre muitos camponeses. Cerca de 75% do território é montanhoso. Por uma série de fatores ligados à abertura comercial, o campo haitiano tem sofrido bastante. Atualmente, mais de 55% dos alimentos consumidos no país são importados. No entanto, as organizações camponesas temem a invasão de sementes híbridas e transgênicas como medida de combate à fome.

Quais são os principais produtos cultivados no Haiti?

Até os anos 1990 os camponeses haitianos eram responsáveis pela produção de 80% dos alimentos demandados pela sociedade. Da produção de leite, legumes e grãos, até gêneros industrializados, existia uma economia agrícola razoável. Depois da abertura comercial e as importações, o sustento dos agricultores acabou. Hoje em dia, apesar de os camponeses cumprirem um papel importante na economia nacional, há uma crise, agravada pela degradação das terras e a erosão do solo. Esses problemas surgiram pelo desmatamento desenfreado, motivado pelo consumo de carvão vegetal como combustível.

Os camponeses conseguem se sustentar com a produção?

A precariedade do sistema de transporte e as dificuldades em comercializar seus produtos provocaram o aumento da pobreza. Os camponeses são a categoria mais pobre e explorada da sociedade. Muitas vezes se alimentam mal e destroem as florestas, por causa do carvão, que acaba sendo a única maneira de gerar renda.

A doação de alimentos por estrangeiros tem qual efeito na produção local?

Análises de economistas e de dirigentes das organizações campesinas mostram que a ajuda internacional, motivada pelos desastres naturais, aumenta o grau de dependência das importações e não permite o fortalecimento da produção nacional. É verdade que, em momentos de crise, a ajuda humanitária é importante. No entanto, ela precisa ser transformada em ajuda estrutural no médio e no longo prazo. O Haiti é um país que sofre muito pela ausência de soberania econômica, política e alimentar. O terremoto comprovou uma vez mais essa terrível realidade.

Apesar de ser um país ainda bastante rural, a representatividade política das massas rurais é fraca. Isso pode mudar depois do terremoto?

Toda a sociedade haitiana está se transformando desde o terremoto. Até onde chegará esse grau de transformação “espontâneo” é uma incógnita. Existe uma elite política que concentra suas preocupações nos processos eleitorais. As últimas eleições tiveram uma participação de apenas 8% dos eleitores. Há uma descrença generalizada na política tradicional. A população não se preocupa com o processo eleitoral, pois não há esperança de mudança.

Os políticos oportunistas se aproveitam dessa circunstância para favorecer seus interesses pessoais. Existe uma frente camponesa que poderá representar uma alternativa ao povo haitiano de maneira geral. Os rastros do terremoto poderão marcar uma nova década para as forças sociais que pautam um projeto de mudanças para o Haiti. Existem sinais de unidade.

Como é a ação do MST e da Via Campesina no país?

A Via Campesina desenvolve, desde 2009, um importante programa de cooperação com as organizações camponesas do Haiti, fortalecendo novas técnicas de produção e apoiando métodos organizativos capazes de reforçar a capacidade e força do movimento camponês.

Nosso espírito solidário aumentou com o terremoto. Estamos preparando uma equipe com 30 pessoas que trabalharam durante um ano lá, ensinando às diversas organizações camponesas noções de agroecologia, a construir casas, cisternas para armazenar água, a plantar hortas, produzir sementes e um programa de reflorestamento frutífero.

Qual foi sua estratégia de trabalho depois do terremoto, já que muitos haitianos estão voltando para suas terras?

Estabelecemos como estratégia reforçar a ajuda aos camponeses no que se refere ao meio ambiente, à produção de alimentos e à organização social. Os problemas do campo já eram graves antes do terremoto. Agora, com o êxodo urbano, a situação se agrava ainda mais. Dessa forma, ajudar o setor camponês significa atacar o programa pela raiz. Nesse sentido, convocamos os governos solidários do mundo para que ajudem a reconstruir o Haiti, não se esquecendo da população camponesa. Sem os camponeses, tudo o que for feito será insuficiente e paliativo.

Vocês recebem ajuda de governos estrangeiros?

Em 2010 não tivemos ajuda do governo brasileiro. Viemos com nossos próprios e escassos recursos. Fizemos um trabalho de diagnóstico e propusemos uma série de medidas. Muitas delas apresentamos ao governo Lula e esperamos efetivar um programa de produção de sementes, de construção de cisternas em conjunto com o MST e as organizações camponesas do Haiti.

Existe uma pressão dos grandes países doadores para estabelecer uma agricultura intensiva e a introdução de agrocombustiveis?

Existem boatos de que, motivadas pelos efeitos do terremoto e as necessidades que surgiram no meio rural, empresas produtoras de sementes tentariam controlar esse mercado. Em 2009 houve uma forte campanha contra os agrocombustiveis. Há o temor de que muitas terras usadas para a produção de alimentos se transformem em centros produtores de agrocombustivel.

Isso aumentaria ainda mais a vulnerabilidade do setor camponês e a fome. Acredito que a mobilização social haitiana e a opinião pública internacional não irão permitir que isso aconteça. Os camponeses salvaram centenas de milhares de pessoas do terremoto e agora precisam de ajuda para se organizar e produzir alimentos para toda a população. Desenvolver o agronegócio, em qualquer de suas formas, significaria nessas terras semear a morte.

Quais são os principais riscos para a agricultura haitiana?

O maior risco para o campo haitiano é sofrer com a incapacidade de produzir alimentos para a sua própria subsistência e para oferecer à população urbana. Por outro lado, se esse país não alterar urgentemente o nível de vida dos camponeses pobres que desmatam a pouca reserva florestal existente em busca de alguma fonte de renda, os ciclones e furacões serão cada vez mais devastadores O Haiti tende a desaparecer se esses problemas estruturais não forem resolvidos. Aqui, vivemos sobre uma permanente ameaça de uma tragédia demográfica sem precedentes.

É fácil introduzir a lógica da produção em cooperativa no país?

Historicamente os camponeses sempre desenvolveram técnicas de cooperação. Com a introdução do capitalismo, essas técnicas foram substituídas pelo individualismo. Felizmente, no Haiti muitas dessas técnicas prevalecem e os camponeses são muito solidários no trabalho produtivo. Deveremos fortalecer essas experiências sem pensar que somos melhores que eles. Esse povo tem uma história e uma cultura que devem ser respeitadas.

O senhor acha que o terremoto pode ser, do ponto de vista da agricultura, um novo ponto de partida?

Deveremos ver o terremoto como uma ocasião para reconstruir um país, que ruiu. As ruínas do Haiti foram apenas agravadas pelo tremor de terra. Não é de hoje que essa pequena ilha, super populosa, clama por ajuda estrutural. Ou ajudamos a reconstruir esse país ou poderemos ser testemunhos de novas tragédias sem precedentes como a ocorrida no dia 12 de janeiro de 2010.