“Felizmente, nem todo o Ministério Público do RS é reacionário e conservador”, diz jurista

Do IHU Felizmente, nem todo o Ministério Público do Rio Grande do Sul é reacionário e conservador Jacques Távora Alfonsin* Com veemência compensa o errante aquilo que lhe falta em verdade e forças.[1]

Do IHU

Felizmente, nem todo o Ministério Público do Rio Grande do Sul é reacionário e conservador

Jacques Távora Alfonsin*

Com veemência compensa o errante aquilo que lhe falta em verdade e forças.[1]

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul promoveu, no dia 28 de janeiro passado, durante o Forum Social Mundial, uma audiência pública em que ouviu várias organizações populares sobre a sua atuação em relação a problemas político-jurídicos nos quais sua presença é exigida como condição legalmente exigida de solução. Não foram poucas as queixas lá, então, formuladas, no que se refere ao seu posicionamento relativo a direitos humanos fundamentais de trabalhadores pobres da cidade e do campo. No dia 24 de março passado, serviu de anfitrião, novamente, aí já em parceria com outras entidades da sociedade civil, para debater o Plano nacional de direitos humanos (PNDH3) e as razões pelas quais esse tem sido tão contestado.

Possivelmente, como reação contrária a tais iniciativas, todas demonstrando uma sensibilidade social que não adota a mesma distância e o mesmo desprezo que grande parte do Poder Judiciário tem para com o povo, a quem deve os seus serviços, um promotor de Justiça concedeu entrevista de página inteira à ZH de domingo passado (28/03), na qual “explica e justifica” todo o empenho profissional que desenvolve para criminalizar o MST.

Afora o fato de que a publicação procura armar ideologicamente as/os leitoras/es contra o chamado “abril vermelho”, mês em que os movimentos populares ligados aos agricultores sem terra intensificam os seus protestos públicos, no Estado e no país, recordando os massacres históricos que sofrem por sua luta em favor de vida e liberdade, as opiniões do entrevistado traem preconceitos já comprovados anteriormente, comuns a boa parte de quem considera a aplicação da lei o resultado puro de um silogismo estreito, imune aos graves efeitos da injustiça social, geradora de pobreza, miséria e morte.

Em dois tópicos deduzidos da entrevista isso aparece de forma clara. Escondido atrás do fato de que o entrevistado serviu à deliberação do próprio Conselho Superior do Ministério Publico de extinguir o MST, a publicação deduz que ele somente pretendeu ver reconhecida a “ilegalidade” do Movimento. A aberração autoritária e inconstitucional de extingui-lo, tinha de desviar a atenção de quem lê a tal entrevista, da vergonha que se abateu sobre o Ministério Público Estadual, desde que a sua maquinação secreta de por um fim ao Movimento veio a público.

Escondida atrás do fato, também, de que as escolas itinerantes do MST gozavam do direito de educar, do reconhecimento público, antigo e autorizado do Conselho de Educação do Estado, além do apoio de renomadas/os educadoras/es do país, a entrevista esconde que a liberdade de pensamento, o direito à educação das crianças acampadas e assentadas, aqui no Estado, foram fechadas por um Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pelo mesmo Ministério Público e a Secretaria de Educação, como se, somente esses Órgãos fossem os donos do único estudo, da única ideologia, da única pedagogia saudáveis para elas. Certamente aquela, da rasteira e conformada submissão aos valores da educação que despista a desigualdade social, não questiona as causas da pobreza, maqueia a injustiça, preserva o pensamento consumista e não tem outro horizonte que não o da conveniência de mercado e capital.

Dedicado agora a punir apenas a “chinelagem”, segundo as suas próprias palavras, assume o entrevistado estar de acordo com o mais baixo preconceito que predomina culturalmente nos meios jurídicos contra quem pratica os chamados “crimes de bagatela”. É como se tais criminosos não fossem dotados de nenhuma dignidade. O epíteto serve, justamente, para consagrar a concepção de que tais pessoas são criminosas por sua própria condição econômica, não servindo para outra coisa que não a de ameaçar a segurança patrimonial dos aquinhoados, assim merecendo sofrer as mesmas penas que os chinelos sofrem com o peso do corpo que essa segurança precisa suportar.

Lembrando os episódios de ocupação do Incra e da Fazenda Cutrale, a imobilização que obteve das marchas de protesto do Movimento, o “mérito” da Procuradoria da República no caso da Fazenda Nenê, em Canoas, o fato de se inspirar em pessoas como um alcagüete do regime militar quando o MST nasceu em Encruzilhada Natalino, e um sociólogo de conhecida oposição ao MST, afirma o entrevistado estar defendendo o direito de propriedade, baseando-se em 50 volumes de documentos para agir como age.

Quem sabe, nisso tudo se encontre a resposta para o seu “zelo” em favor da ordem, segundo a concepção que ele tem do que seja ordem. Perdido no meio dessa papelada, ele esquece, convenientemente, o extenso rol dos direitos políticos e sociais dos sem-terra que ele sacrificou, previstos na mesma Constituição que jura defender, nos efeitos danosos das execuções judiciais que provocou, ignora se as crianças dos sem-terra têm escola, agora, proteção à saúde que suas farmácias caseiras lhes forneciam. Da propriedade, não se lembra de sua função social e da reforma agrária, também prevista na Constituição e sempre prorrogada, prefere silenciar.

Nesse rumo, autoriza que se pense estar ele entre quantas/os acham que o Elton Brum da Silva, um sem-terra assassinado por um PM em São Gabriel o ano passado, não passa de um “mártir” a serviço da causa e da ideologia do MST. Considerando-se vítima da mais justificada resposta que os movimentos populares que defendem direitos humanos lhe deram, por sua conduta de perseguição àquela organização popular, ele afirma participar de um “grupo de resistência” dentro da sua instituição. Lá, pelo jeito, ele considera a resistência uma atitude louvável e corajosa, passando a impressão de que é vítima e não algoz. Aqui fora, quando os movimentos populares como o MST usam a mesma resistência contra a miséria e a pobreza, essa passa a ser crime.

Está enganado o referido promotor. Resistência, e ponha-se resistência nisso, devem estar tentando organizar as/os suas/seus colegas de trabalho que, inspirados nos direitos humanos, organizaram os dois eventos que noticiamos acima. Elas/es, seguramente, não vão merecer a atenção que a mídia vem dedicando ao entrevistado, uma coisa que, talvez, lhe sirva de advertência sobre as razões pelas quais foi procurado em época tão conveniente à defesa dos privilégios latifundiários, dos quais ele, queira ou não, vem se mostrando um vigilante guarda de segurança.

São dotadas/os, essas/es suas/seus colegas, de uma indignação ética bem diferente da raiva que ele tem contra o MST, certamente compartilhada pelo grupo que ele lidera, ao ponto de querer extinguí-lo. Por paradoxal que pareça, seguindo o seu próprio conselho, o MST já resistiu, resiste e vai continuar resistindo.

Nota:
(1) J. W. Von Goethe. Torquato Tasso, IV ato, 4ª cena. In HABERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado constitucional. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008, p. 79.

*Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.