Dinheiro público para o agronegócio

Dinheiro público para o agronegócio* Sérgio Sauer – Professor da Faculdade da UnB de Planaltina (FUP/UnB) Relator do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação da Plataforma Dhesca – Brasil

Dinheiro público para o agronegócio*

Sérgio Sauer – Professor da Faculdade da UnB de Planaltina (FUP/UnB)
Relator do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação da Plataforma Dhesca – Brasil

Estudo divulgado recentemente pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) ressalta, com otimismo, as perspectivas do agronegócio brasileiro. Traçando um cenário bastante positivo, este estudo avalia que todas as cadeias importantes do setor terão, nos próximos anos, ganhos de produtividade através de uma maior eficiência no uso dos recursos. Segundo notícia divulgada pela grande imprensa, estes ganhos de eficiência serão suficientes para garantir o abastecimento doméstico e defender a posição de destaque do país no mercado internacional.
Além deste quadro de eficiência, o argumento mais utilizado por aqueles que defendem o atual modelo de desenvolvimento do campo é a contribuição do assim chamado agronegócio para o equilíbrio da balança comercial brasileira. Como as contas oficiais do MAPA, por exemplo, computam um saldo positivo entre os gastos com importações e os ganhos com as exportações, esse setor é saudado como produtivo e benéfico ao Brasil. Apesar desses números e da tão propalada eficiência, a pergunta é: qual é o custo público dessa contribuição?
Olhando apenas alguns dados econômicos, a relação parece mesmo positiva, ou seja, as exportações agropecuárias têm contribuído para manter a balança comercial brasileira “no azul”. Apenas para ilustrar essa linha de defesa, de acordo com dados do MAPA, em 2008, o setor agropecuário contribuiu com cerca de 36% das exportações do Brasil, que foram da ordem de R$ 197 bilhões, portanto, gerou ingressos da ordem de R$ 71,8 bilhões e gastou em torno de R$ 11,8% com importações.
Em primeiro lugar, é importante observar que esta contribuição do agronegócio gera um custo público, ou seja, um gasto financiado pelo conjunto da sociedade brasileira. Este custo não se refere a qualquer inferência monetária atribuída aos sérios impactos ambientais e/ou aos custos sociais do atual modelo de desenvolvimento, baseado no monocultivo de grandes extensões de terras, e sim uma menção aos gastos públicos, por exemplo, resultantes da recente rodada de renegociação das dívidas do setor.
Esta dívida do setor agropecuário, diga-se de passagem, é motivo de um constante processo de renegociação, que teve início já em meados dos anos 1990. Apesar dos sucessivos alongamentos de prazos, incluindo prazos de carência, diminuição das taxas de juros e novas condições de pagamento, não vem sendo amortizada pelos devedores, sendo que mais de 70% do montante total desta dívida corresponde a contratos do setor patronal.
De acordo com dados do Orçamento Geral da União, projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional (Lei nº. 12.017, de 2009), referente às contas públicas de 2010, a estimativa é de um gasto anual de R$ 800 milhões com subsídios financeiros e creditícios. Segundo estes dados, a União gastou quase R$ 1,5 bilhões, em 2007 e 2008, com a securitização das dívidas agrícolas. Em 2009, foram utilizados outros R$ 842 milhões com esta securitização. O Programa Especial de Seguritização Agrícola – programa que permitiu a renegociação das dívidas agrícolas dos contratos acima de R$ 200 mil na origem, e que ficavam fora da securitização – exigiu também algo em torno de R$ 248 milhões por ano desde 2007.
Além deste gasto com a equalização de juros da dívida agrícola, é preciso contabilizar também as renúncias fiscais e isenções de impostos, destinados ao setor agropecuário. Em relação à renúncia fiscal, os dados da Receita Federal demonstram que a União deixou de recolher mais de R$ 37,8 bilhões desde 2003, sendo que a estimativa é uma renúncia de R$ 8,85 bilhões só em 2010.
Estes valores não estão atualizados de acordo com os índices inflacionários do período. É importante mencionar que esta renúncia fiscal é resultado de isenções, redução de tarifas e alíquotas, ocorridas a partir da edição das Leis nº. 10.925 e 11.051, ambas de 2004, as quais suspenderam a incidência da contribuição do PIS/Cofins sobre produtos agropecuários, ampliando posteriormente para a comercialização de fertilizantes e insumos agrícolas. Nestes valores, portanto, não estão contabilizados outros apoios públicos como, por exemplo, os incentivos à exportação e a isenção de ICMS, nem a prorrogação das dívidas das cooperativas junto à Receita Federal (Imposto de Renda de Pessoa Jurídica), INSS (contribuição social do setor patronal), PIS, etc., renegociadas a partir da Medida Provisória no. 303, de 2006.
Outro aspecto que deve ser contabilizado como renúncia fiscal é a total ineficiência histórica na cobrança de tributos territoriais, apesar da existência de mais de cinco milhões de imóveis rurais no Brasil. O Brasil possui uma legislação, o Imposto Territorial Rural (ITR), modificado em 1996 com um intuito de ser um mecanismo para desestimular o uso especulativo e a improdutividade das terras. No entanto, a arrecadação do ITR foi historicamente irrisória, pois o volume anual não passou de 0,2% da arrecadação federal, em 1996, declinando para 0,11%, em 2004. Esta arrecadação caiu ainda mais a partir da Lei 4.896, de 2005, a qual transferiu toda a responsabilidade de arrecadação do ITR para os municípios.

A contribuição do agronegócio

Diante destes números, a concordância com a ênfase na contribuição do agronegócio deve ser, no mínimo, relativizada. No afã de defender o atual modelo de desenvolvimento, é importante lembrar ainda que os dados da contribuição na balança comercial não são estratificados, ou seja, não há qualquer menção da contribuição da agricultura familiar na produção e na pauta de exportação. De acordo com dados do MAPA, o principal item de exportação é o complexo soja, responsável por quase 19% do total de exportações do setor. Mesmo sendo a cultura em que a agricultura familiar possui a menor participação, ela é responsável por 16% da produção nacional de soja, segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contribuindo então para a pauta de exportação brasileira.
Sem delongas sobre as condições precárias da agricultura familiar – historicamente excluída de importantes políticas públicas que financiaram a implantação do atual modelo baseado na Revolução Verde –, essa contribuição precisa ser considerada levando em contas alguns elementos chaves como, por exemplo, a disponibilidade de terras. De acordo com dados do Censo, foram identificados um pouco mais de 4,3 milhões de estabelecimentos como sendo da agricultura familiar, ou seja, 84,4% do total dos estabelecimentos brasileiros. Estes, no entanto, ocupam uma área de 80,25 milhões de hectares, ou seja, apenas 24,3% da área total ocupada pelos estabelecimentos brasileiros.
Esses dados demonstram que há uma assimetria profunda entre a disposição de recursos produtivos – especialmente o fator terra – e a contribuição efetiva da agricultura familiar no desenvolvimento do campo. O mais importante, no entanto, é deixar claro que o agronegócio – entendido aqui apenas como o setor patronal rural – não é o principal muito menos o único responsável pelo desenvolvimento econômico brasileiro. Ao contrário, os dados do Censo Agropecuário de 2006 confirmam que a agricultura familiar é a principal responsável pela produção de alimentos e pela ocupação da mão de obra no campo, contrastando com o modelo baseado na concentração da renda e na desigualdade social.
Outro aspecto a ser considerado se refere ao acesso a recursos públicos por parte do agronegócio como, por exemplo, acesso ao crédito. De acordo com dados dos bancos oficiais, principais operadores das linhas de crédito para a agricultura brasileira, o agronegócio teve a sua disposição R$ 65 bilhões, como recurso para custeio e investimentos na safra 2008/2009, e outros R$ 58 bilhões na safra anterior. Esse volume de recursos públicos foi quase 500% superior aos R$ 13 bilhões destinados à agricultura familiar para custear a safra 2008/2009 desse segmento.
De acordo com dados do Banco do Brasil, principal operador nacional de recursos públicos para o setor agropecuário brasileiro, foram destinados quase R$ 90 bilhões ao agronegócio, entre 2003 e 2008. Segundo informações divulgadas pela imprensa em maio de 2009, esse valor é 212% superior ao que o Banco emprestou à agricultura familiar. É importante observar ainda que, primeiro, os demais bancos oficiais (BNDES, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste do Brasil) possuem outras linhas de crédito, mantidas com fontes próprias, destinadas prioritariamente ao agronegócio. Segundo, mesmo sem dados disponíveis, há fontes e incentivos estaduais, recursos públicos também utilizados para financiar atividades deste setor.

Várias fontes de financiamento

Além da disponibilidade de recursos, a juros baixos, para financiar a produção do agronegócio, é fundamental contabilizar outros gastos públicos como, por exemplo, a celebração de convênios de diversos Ministérios com entidades do setor patronal. De acordo com dados do Sistema Integrado de Administração Pública (SIAFI), o MAPA disponibilizou mais de R$ 40 milhões para entidades patronais na última década, como por exemplo, para a Confederação Brasileira de Agricultura (CNA), a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR).
Apenas o SENAR nacional, presidido e administrado pela CNA, celebrou convênios da ordem de R$ 25 milhões no mesmo período. Esses convênios, celebrados entre Ministérios e entidades para a execução de atividades diversas como a organização de feiras agropecuárias, realização de pesquisas no meio rural, publicação de livros e revistas, etc., acabam sendo usados para custear parte da máquina administrativa das entidades patronais.
Além de recursos de convênios, o trabalho do SENAR é resultado da arrecadação de contribuição compulsória, a qual é repassada à CNA e às Federações patronais estaduais, para a execução de atividades de qualificação e formação profissional no meio rural. Esta arrecadação é bastante significativa, pois de 2000 a 2006, de acordo com informações do Ministério da Previdência fornecidas ao então dep. Adão Pretto (PT/RS), foi repassado mais de R$ 884 milhões ao SENAR. Nos anos de 2008 e 2009, portanto, em apenas dois anos, esse volume de recursos chegou a mais de R$ 712 milhões, segundo informações deste Ministério ao dep. Dr. Rosinha (PT/PR).
Criado em 1991, o SENAR (nacional e nos Estados) é administrado pelas entidades patronais, provocando uma “promiscuidade institucional”, como demonstram procedimentos investigativos do Tribunal de Contas da União (TCU). Há vários procedimentos e auditorias abertas no TCU, sendo que muitos apontam problemas no uso dos recursos, especialmente o desvio de finalidade na utilização dos mesmos. O caso mais recente é a constatação pelo TCU de irregularidades em convênios celebrados entre o SENAR e a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (FAESP), envolvendo mais de R$ 4 milhões. A ação de busca e apreensão no SENAR do Mato Grosso pela Polícia Federal é, sem sombra de dúvidas, o caso mais emblemático. Esta ação, realizada no início de março, é resultado de investigação da Controladoria Geral da República (CGU), a qual constatou o desvio de mais de R$ 10 milhões do SENAR/MT.
Todos estes dados apenas demonstram que se, de um lado, o modelo de desenvolvimento agropecuário é competitivo no mercado globalizado, de outro, essa posição não é resultado apenas dos ganhos de produtividade e eficiência do setor. Historicamente, o Brasil destinou, e continua destinando, grandes somas de recursos públicos – financiando pesquisa, assistência técnica, disponibilizando recursos fartos e baratos para o crédito rural, etc. – para sustentar este modelo baseado na monocultura extensiva e na concentração de renda e terra. Esta opção de “desenvolvimento”, além dos impactos ambientais e sociais, se traduz em custo público, portanto, financiado pelo conjunto da sociedade brasileira.

*Artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em Abril 2010, ano 3, número 33, pp. 8 e 9