Eldorado dos Carajás: chacinas são um bom negócio no Brasil

Por Leonardo Sakamoto*

Por Leonardo Sakamoto*

O Massacre de Eldorado dos Carajás, no Sul do Pará, que matou 19 Sem Terra e deixou mais de 60 feridos após uma ação violenta da Polícia Militar para desbloquear a rodovia PA-150, completa 14 anos hoje. A estrada estava ocupada por uma marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que se dirigia à Marabá a fim de exigir a desapropriação de uma fazenda, área improdutiva que hoje abriga o assentamento 17 de Abril. A Polícia recebeu ordens de retirá-los e deu no que deu. O Massacre é considerado o maior caso contemporâneo de violência no campo, tanto que esta data passou a ser lembrada como o Dia Mundial de Luta pela Reforma Agrária.

Desde então, a realidade pouco mudou na região. O Pará, sob forte influência de proprietários rurais e de mineradoras, é o estado com maior número de casos comprovados de trabalho escravo e um dos lideres no desmatamento ilegal. É também campeão no número de assassinatos de trabalhadores rurais em conflitos agrários e de lideranças sociais e religiosas que, marcadas para morrer, já têm uma bala batizada com seu nome. Isso sem contar o descaso com a infância, que toma forma de meninas nos bordéis e de meninos em serviços insalubres no campo. Garotas com idade de “vaca velha”, como dizem garimpeiros e peões, ou seja, com 10, 12 anos, trocam a sua alegria pela dos clientes.

O que é justiça? É punir apenas aqueles que apertaram o gatilho ou inclui os que, através de sua ação ou inação, também garantiram que uma tragédia acontecesse? Em 1992, 111 detentos foram mortos na já desativada Penitenciária do Carandiru após uma ação bizarra da Polícia Militar. Mais de 153 pessoas ficaram feridas, das quais 23 policiais. O falecido Coronel Ubiratan Guimarães, que coordenou a invasão/banho de sangue para conter a rebelião, foi eleito posteriormente deputado estadual, tripudiando a memória dos mortos – candidatava-se com o número 14.111. Luiz Antônio Fleury Filho, governador na época do massacre, aprovou a conduta da polícia. Hoje é deputado federal.

[img_assist|nid=9632|title=Andreina Araújo|desc=A sem-terra Andreina Araújo, com o filho no colo, chora a morte do marido à beira de sepultura no cemitério de Curionópolis (PA), na época do massacre|link=none|align=left|width=640|height=448]

E por aí vai: Quem foi responsável pela Chacina da Castelinho, quando um comboio de supostos criminosos foi parado próximo a um pedágio na rodovia Castelinho, em Sorocaba (SP), e 12 pessoas executadas em 2002? E pelo Massacre de Corumbiara (RR), no qual 200 policiais realizaram uma ação armada para retirar cerca de 500 posseiros que ocupavam uma fazenda no município, resultando na morte de dois PMs e nove camponeses, entre eles uma menina de 7 anos em 1995? Ou ainda Vigário Geral, em que 50 policiais militares, que estavam fora de seu horário de serviço, entraram atirando na favela e mataram 21 inocentes em 1993 como uma “prestação de contas”?

No caso de Eldorados dos Carajás, as autoridades políticas na época, o governador Almir Gabriel e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara, não foram nem indiciados.

Todos esses massacres e chacinas têm em comum o fato de vitimarem pessoas excluídas socialmente: camponeses, trabalhadores rurais, pobres da periferia, presos. Enquanto isso, o envolvimento de policiais militares tem sido uma constante. Se, hoje, massacres como os de 10, 20 anos atrás são mais raros, o mesmo não se pode dizer da violência policial. Comportamento que, muitas vezes, é aplaudido pela classe média, pois isso lhes garante o sono diante das hordas bárbaras. Muitas chacinas passaram a ocorrer em conta-gotas, no varejo, de forma silenciosa que não chame a atenção da mídia daí e aqui de fora.

[img_assist|nid=9633|title=Mario Pantoja|desc=O coronel Mário Colares Pantoja, um dos condenados, durante julgamento|link=none|align=right|width=640|height=448]

O Poder Judiciário tem sua grande parcela de responsabilidade no clima de impunidade que alimenta a violência. A Justiça, que normalmente é ágil em conceder liminares de reintegração de posse e determinar despejos no caso de ocupações na cidade, é lenta para julgar e punir assassinatos e outras formas de violência contra trabalhadores.

Para que direitos humanos sejam efetivamente respeitados no país são necessárias mudanças reais, pois há impunidade também quando o governo não atua para acabar com a situação de desigualdade ou exploração que estava na origem do conflito. Seja ao permitir que garimpeiros continuem a explorar reservas indígenas, seja ao tolerar que crianças durmam na rua ou trabalhadores precisem perder a vida na luta pela reforma agrária.

Há uma relação carnal que se estabelece entre o patrimônio público e a propriedade privada não só na Amazônia, mas em outras partes do país. Muito similar ao que se enraizou com o coronelismo nordestino da Primeira República, o detentor da terra exerce o poder político, através de influência econômica e da coerção física. O já tênue limite entre as duas esferas se rompe. É freqüente, por exemplo, encontrar policiais que fazem bicos como jagunços de fazendas. O Massacre de Eldorado dos Carajás é um dos tristes episódios brasileiros em que o Estado usou de sua força contra os trabalhadores e a favor dos grandes proprietários de terra.

E, ao final, quem estava no topo da cadeia de responsabilidade pode continuar indo para sua casa tomar um uísque e coçar a barriga. Pois sabe que sua contribuição de violência é apenas mais uma, entre outras tantas que povoam a mídia ou, pior, passam despercebidos dela e da opinião pública.

Publicado originalmente no UOL