Trabalho escravo: 37 mil libertos em 15 anos

. Por Leonardo Sakamoto Do Blog do Sakamoto Há dois anos, um trabalhador teve o rosto, braços e tórax queimados, repetidas vezes, com ferro de marcar gado em brasa em uma fazenda no Pará. Seu crime? Ter reclamado dos três meses de salários nunca pagos e da falta de comida decente para ele e os colegas. A sessão de tortura teria sido realizada pelo próprio dono da fazenda com a ajuda de capatazes. Para mostrar quem manda e quem obedece. Leia também

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Por Leonardo Sakamoto
Do Blog do Sakamoto

Há dois anos, um trabalhador teve o rosto, braços e tórax queimados, repetidas vezes, com ferro de marcar gado em brasa em uma fazenda no Pará. Seu crime? Ter reclamado dos três meses de salários nunca pagos e da falta de comida decente para ele e os colegas. A sessão de tortura teria sido realizada pelo próprio dono da fazenda com a ajuda de capatazes. Para mostrar quem manda e quem obedece.

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Acesse a página da Campanha contra o Trabalho Escravo do Agronegócio

Este é um caso extremo, mas serve para ilustrar a que ponto chegam as condições degradantes a que são submetidos os trabalhadores escravizados em todo o país. Mais de 37 mil deles, em 2600 estabelecimentos rurais, foram libertados desde 1995 (quando foi criado o sistema de combate a esse crime) em ações de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal.

Desmatavam a floresta amazônica para a implantação de propriedades rurais, limpavam pastagens, faziam cercas para os bois do patrão. Catavam tocos e raízes preparando o terreno para chegada de soja, milho ou algodão. Produziam carvão vegetal para abastecer fornos de siderúrgicas. Cortavam cana. Mas também trabalhavam em canteiros de obras de hidrelétricas ou costuravam as roupas que compramos (por pouco) no dia-a-dia.

Para discutir como o Brasil vem enfrentando o trabalho escravo, o que vem dando certo nesse combate e o que falta fazer para que esse crime contra os direitos humanos seja extirpado, representantes da sociedade civil, empresas, governo e organizações internacionais estão se reunindo, entre os dias 25 e 27 de maio, no Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, na Procuradoria Geral da República, em Brasília.

A abertura contou ontem com a presença do ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Brito, dos ministros Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) e Carlos Lupi (Trabalho), da vice-procuradora gerla da República, Débora Duprat, do responsável pela Organização Internacional do Trabalho para América Latina e Caribe, Jean Maninat, entre outros. O mestre de cerimônias foi o ator global Wagner Moura, membro da ONG Humanos Direitos. O tom entre todos foi parecido: houve avanços importantes, mas ainda estamos longe de mostrar que esse crime não compensa.

Sabe-se que a escravidão contemporânea é sustentada por aqui por um tripé: impunidade (que dá a liberdade para explorar sem reservas pela certeza de que punição é coisa para pobre), ganância (e a busca por economizar dinheiro com a dignidade do trabalhador para concorrer em um mercado cada vez mais globalizado e a pobreza (que empurra milhões para aceitar qualquer emprego).

Combater esse tripé significa atacar um crime, mas também rever nosso sistema de Justiça, nossos padrões de consumo e nosso modelo de desenvolvimento. Ou seja, na luta contra o trabalho escravo reside a grande batalha deste início de século: crescer economicamente e, ao mesmo tempo, garantir que isso seja feito para benefício de todos, sem a degradação do ser humano ou do meio ambiente.

Recentemente a presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), senadora Kátia Abreu (DEM-TO) criticou o combate ao trabalho escravo em entrevista à revista Veja. Fez o mesmo ontem em artigo publicado pelo jornal Estado de S. Paulo, apontando razões ideológicas para a ação dos funcionários públicos responsáveis pela libertação de pessoas. Não é a primeira vez, nem será a última, em que ela afirma deplorar a escravidão, mas contesta que as condições encontradas pela fiscalização configurem esse crime.

Os produtores flagrados por esse crime reclamam que o governo viu trabalho escravo em colchões que não atendiam às medidas recomendadas, na falta de azulejo no banheiro ou na inexistência de área de descanso para empregados.

Mas não comentam que a fiscalização também encontrou, nas mesmas fazendas, pessoas presas a dívidas ilegais, aliciadas em outros cantos do país sob promessas fantasiosas, tendo que comer alimentação estragada e brigar com o gado pelo acesso a água, em alojamentos precários montados dentro de currais, sendo ameaçados, espancados, retidos, exauridos. Se as pessoas soubessem ler os documentos públicos ou se informar junto aos órgãos competentes, saberiam que não é uma autuação pro azulejo que configura escravidão (o que seria ridículo), mas é um conjunto delas configurando a inexistência de respeito à dignidade e à vida humana.

Mas por que tanto esforço para defender quem reduz trabalhadores a instrumentos de trabalho?
Considerando que esse tipo de mão-de-obra é usada para garantir competitividade ao produtor, a sua adoção representa, na prática, concorrência desleal com relação àqueles que operam dentro de formas contratuais de trabalho.

Contudo, muitas entidades de produtores têm defendido o associado envolvido no crime, ignorando uma ação comercial lógica, que seria retirá-lo do grupo ou suspendê-lo enquanto apresentasse pendências, para evitar uma contaminação da imagem da entidade e do setor e, conseqüentemente, perdas econômicas. Mas, em verdade, o que é preservado com essa defesa não é um interesse comercial particular, mas algo mais profundo: a classe social dos proprietários rurais.

Apesar de serem poucos os empreendimentos que usam trabalho escravo, são muitos os que empregam sem os direitos garantidos por lei ou que superexploram a força de trabalho, gerando lucros ou facilitando a competição.

Por isso, da mesma forma que o combate à escravidão contemporânea tem sido ponta-de-lança para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores rurais (ele pressionou pela ampliação da estrutura de inspeção do trabalho e de punição de infratores, o que é útil a toda a sociedade, por exemplo) a defesa dos empresários que utilizam esse expediente tem servido de bandeira para a manutenção do status quo no campo.

Um caso emblemático é o da proposta de emenda constitucional número 438/2001 que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo contemporâneo for encontrado. Aprovada no Senado e em primeiro turno na Câmara, ela está engavetada devido à pressão de representantes do setor agropecuário no Congresso, a chamada “bancada ruralista”.

Por mais que a proporção de empregadores que utilizam trabalho escravo contemporâneo seja pequena diante do universo de produtores rurais, esses representantes políticos são contrários à proposta. Pois, para eles, o que está em jogo é a propriedade da terra, considerada inviolável por parte dos seus representados – os proprietários rurais.

A sua manutenção e concentração é condição fundamental para possibilitar o negócio agropecuário, pois, além de ser capital, é o locus onde se produz riqueza através do trabalho. A “PEC do Trabalho Escravo” é, pelo ponto de vista de membros da classe ruralista, um risco à sua própria existência e, portanto, lutar contra a sua aprovação representa mais do que manter a exploração de formas não-contratuais de trabalho.

Em tempo: Gilberto Andrade, o proprietário rural acusado de ter queimado o trabalhador de que falei no início deste texto, é um dos raros casos de condenação e prisão por esse crime no país. O interessante é que ele não foi julgado ainda pela libertação desse trabalhador, mas por outra ocorrida em uma de suas fazendas – uma das várias libertações que ocorreram em suas terras.