Atlas revira entranhas do trabalho escravo no Maranhão
Por Bianca Pyl
Apreendidos durante as fiscalizações, os cadernos com anotações de débitos servem normalmente para comprovar sistemas de servidão por dívidas existentes nos casos de trabalho escravo contemporâneo. Não foi diferente na operação trabalhista que libertou 27 pessoas submetidas à escravidão na Fazenda Sagrisa, em Codó (MA), que pertence ao Grupo Maratá, com sede em Lagarto (SE).
Por Bianca Pyl
Apreendidos durante as fiscalizações, os cadernos com anotações de débitos servem normalmente para comprovar sistemas de servidão por dívidas existentes nos casos de trabalho escravo contemporâneo. Não foi diferente na operação trabalhista que libertou 27 pessoas submetidas à escravidão na Fazenda Sagrisa, em Codó (MA), que pertence ao Grupo Maratá, com sede em Lagarto (SE). Em novembro de 2005, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que estiveram no local encontraram oito cadernos na cantina da propriedade no interior do Maranhão.
Além dos registros de dívidas relativas a itens de alimentação, de higiene e até de ferramentas de trabalho, um dos cadernos trazia uma anotação diferente: “um dia de deixação de comer”. Desesperado com a situação de endividamento a qual estava submetido, um dos trabalhadores preferiu cortar a própria alimentação para tentar “poupar” recursos e minimizar o tamanho da mordida dos “descontos” no fim do mês.
Entre os libertados, quatro eram adolescentes com idade inferior a 18 anos e uma criança de apenas 11 anos foi também flagrada trabalhando no local. Em depoimento, uma das vítimas declarou que nada recebeu pelo trabalho na Fazenda Sagrisa. Os próprios administradores da propriedade fiscalizada afirmaram na ocasião que os filhos do empresário José Augusto Vieira, dono do Grupo Maratá, administram parte do patrimônio do conglomerado, mas o próprio José Augusto “mantém o controle das decisões”.
À Justiça, o “gato” (aliciador de mão de obra) Raimundo Nonato Pereira chegou ainda a confirmar que, quando necessário, comprava ferramentas aos trabalhadores e depois descontava dos salários dos mesmos, ratificando a prática de servidão por dívida. Segundo Raimundo, a água dos empregados realmente era a mesma utilizada pelo gado.
Mesmo com todas essas evidências colhidas pela fiscalização e compiladas pelo Ministério Público Federal do Maranhão (MPF/MA), o fazendeiro José Augusto Vieira e o “gato” Raimundo, conhecido como “Anão”, foram absolvidos da acusação de crime de trabalho escravo. De acordo com a sentença da 1a Vara Federal de São Luís (MA) (confira histórico do processo) publicada em 2009, “a instrução processual não logrou demonstrar com grau de certeza necessária para estribar uma sentença condenatória”.
Para a Justiça Federal do Maranhão, “os depoimentos prestados em juízo pelos fiscais [que atuaram nas libertações da Sagrisa] também não apresentam aptidão para darem ensejo a uma condenação, pois apenas confirmam o teor do relatório, o qual não é suficiente para demonstrar a efetiva existência das supostas condições aviltantes de trabalhos”.
Uma das justificativas complementares apresentadas pelo Judiciário para absolver o empresário José Augusto foi a extensão do grupo. “O fazendeiro reside no estado de Sergipe e tem mais de doze fazendas no Maranhão o que torna quase impossível a sua presença constante em todas elas”, salienta a sentença. O Grupo Maratá mantém empreendimentos nos setores agropecuário (pecuária, sucos, café e tabaco), alimentício, de embalagens e também de educação (Faculdade e Colégio José Augusto Vieira). Só a Fazenda Sagrisa tem cerca de 20 mil hectares.
O MPF/MA recorreu da decisão. Para o órgão, “a decisão de primeiro grau desprezou completamente a palavra das vítimas, que é essencial nessa espécie de delito, bem como a palavra dos fiscais que confirmaram em juízo todo um teor das autuações que lavaram”. Por conta da operação, José Augusto Vieira entrou para a chamada “lista suja” do trabalho escravo, cadastro de infratores mantido pelo MTE, em dezembro de 2006. O nome do empresário do Grupo Maratá permaneceu até dezembro de 2007, quando o Judiciário concedeu liminar judicial para a retirada da relação.
Atlas
Realidades, como a acima retratada, fazem parte do Atlas Político-Jurídico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Maranhão, elaborado pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA). O documento foi lançado na última quinta-feira (27), como parte dos diversos eventos da Semana Nacional de mobilizações, por ocasião do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (28 de janeiro).
Inédito, o Atlas traz sete capítulos que partem do histórico da região sudoeste do Maranhão até avaliações críticas das políticas direcionadas ao combate à escravidão. A obra contém estudos específicos sobre as vítimas, sobre os empregadores proprietários das terras e sobre os “gatos” intermediários. Há ainda análises das fiscalizações, de processos em andamento no Poder Judiciário e de conexões existentes entre a escravidão e o poder político.
O Atlas compila dados e informações (que constam no acervo do CDVDH e que foram captadas junto a diferentes órgãos públicos), bem como depoimentos de vítimas da escravidão contemporânea que procuraram a entidade.
“Nós entendemos que esse material não deve estar restrito aos militantes de direitos humanos. É preciso divulgar, expor que o Judiciário, o Legislativo e o Executivo deixam a desejar no combate ao trabalho escravo”, explica Nonato Masson, advogado do CDVDH e um dos autores do trabalho.
A comparação entre a quantidade de trabalhadores libertados do trabalho escravo nos últimos anos com o baixíssimo número de condenações criminais aparece com destaque no documento. O Atlas Político-Jurídico radiografou apenas 11 sentenças judiciais, com apenas 4 condenações, sendo duas de “prestação de serviço à comunidade”. “Essa comparação ilustra bem a morosidade da Justiça. E quando há sentença, ela não é executada porque tramita em primeiro grau”, emenda Nonato.
A radiografia da escravidão identificou ainda diversas ameaças aos defensores de direitos humanos e descaso em relação às medidas judiciais por parte dos réus. As vítimas do trabalho escravo, por seu turno, relataram ter medo de se apresentar aos tribunais para confirmar seus depoimentos, em função das ameaças e violências que sofreram.
“A conclusão que chegamos é que não há política de Estado e de governo que de fato mude a vida dos peões. Não há um enfrentamento concreto”, opina o advogado do CDVDH. “O Judiciário precisa ser mais rápido e efetivo na eliminação de entraves judiciais para a aplicação da lei com mais celeridade, por se tratar de um crime contra a humanidade; o Executivo precisa ser mais operacional no sentido de fazer avançar a construção de políticas publicas fazendo com que seus planos ganhem efetividade prática. Estes não podem ser apenas intenções políticas”, aponta o documento.
Outros casos
O Atlas Político-Jurídico também analisa o caso da Fazenda Agrossera, localizada em São Raimundo das Mangabeiras (MA), de propriedade de Pedro Augusto Ticianel. A área foi fiscalizada em outubro de 2005, pelo MTE, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), além de representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da Polícia Federal (PF).
Na ocasião, foram flagrados 103 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Com base no relatório da fiscalização, o MPF/MA apresentou denúncia contra seis responsáveis, entre os quais o proprietário Pedro Augusto Ticianel, além de gerentes e aliciadores. A denúncia foi recebida pela Justiça Federal em 16 de maio de 2006.
O Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1) declarou a Justiça Estadual como sendo competente para processar e julgar o crime. Posteriormente o Supremo Tribunal Federal (STF) reformou essa decisão e fixou a competência novamente para a Justiça Federal. Ao retornar para a Justiça Federal, foi prolatada a sentença de absolvição sumária, ou seja, sem que qualquer testemunha fosse ouvida em juízo.
A decisão se fundamenta na existência de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) relativo a questões trabalhistas – assinado por parte dos réus para com o MPT antes da lavratura dos autos de infração originados da fiscalização. A Agropecuária e Industrial Serra Grande (Agroserra) foi incluída pela primeira vez na “lista suja” em dezembro de 2007. Desde então, foi retirada, incluída e retirada novamente por decisão liminar. A última delas, que mantém a empresa fora da lista, foi emitida em julho de 2009.
Também fazem parte do Atlas Político-Jurídico os processos que envolvem o juiz estadual Marcelo Testa Baldochi e Miguel Rezende, que já foi flagrado inúmeras vezes utilizando mão de obra escrava. Apenas na Fazenda Zonga – que fica em Bom Jardim (MA), dentro da Reserva Biológica (Rebio) de Gurupi -, que pertence a Miguel, foram cinco flagrantes de escravidão: 52 libertados em 1996, 32 em 1997, 69 em 2001, 13 em 2003 e, mais 45 em 2010.
Atualmente, Miguel, que já beira dos 80 anos de idade, responde, na Justiça, pelo crime de exploração de pessoas em condições análogas à escravidão na Fazenda Rezende, em Senador La Rocque (MA), flagrado em 2001. Outros dois crimes cometidos na mesma propriedade (em 1996 e 1997) prescreveram. Em 2003, auditores encontraram novamente 65 vítimas de escravidão na mesma área. O pecuarista Miguel de Souza Rezende já fez parte por três vezes da “lista suja” do trabalho escravo.
Marcelo Testa Baldochi, juiz estadual, também já foi relacionado na “lista suja”, na atualização de dezembro de 2008. A inspeção que gerou a inclusão do juiz no cadastro foi realizada na Fazenda Pôr do Sol, de propriedade do magistrado, em setembro de 2007. No local, o grupo móvel encontrou 25 pessoas – entre elas um adolescente de 15 anos – em condições análogas à escravidão. De acordo com os trabalhadores, o próprio juiz orientou o grupo no sentido de declarar à fiscalização que estavam no local apenas como posseiros no plantio de roça, numa tentativa de descaracterizar o crime.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) teve de intervir, por solicitação do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Maranhão (Sindjus-MA), para que o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA) instaure um processo disciplinar que apure a conduta do integrante da instituição. Por duas vezes (2007 e 2009), o TJ-MA rejeitara instalar processo contra juiz.
O juiz também é acusado de comandar pessoalmente um despejo violento de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ocupavam justamente a Fazenda Pôr do Sol. O Ministério Público Estadual (MPE) denunciou inclusive a interferência de Marcelo Testa Baldochi em um dos processos de escravidão que envolve Miguel de Souza Rezende.