Unidos da Lona Preta, uma batucada do povo brasileiro


De Unidos da Lona Preta


Foi Candeia quem avisou: outra escola de samba é possível. Eram meados da década de 1970, e as escolas de samba já haviam entrado no circuito da mercantilização e na ditadura do visual. Processos estes que, com o passar do tempo, viriam a se aprofundar.

Candeia, bom sambista que era, não gostou. Fundou ele mesmo uma escola de samba, a G.R.A.N. Quilombo, cujo objetivo principal era defender a participação do povo com suas manifestações culturais dentro das escolas de samba.


De Unidos da Lona Preta

Foi Candeia quem avisou: outra escola de samba é possível. Eram meados da década de 1970, e as escolas de samba já haviam entrado no circuito da mercantilização e na ditadura do visual. Processos estes que, com o passar do tempo, viriam a se aprofundar.

Candeia, bom sambista que era, não gostou. Fundou ele mesmo uma escola de samba, a G.R.A.N. Quilombo, cujo objetivo principal era defender a participação do povo com suas manifestações culturais dentro das escolas de samba.

Passadas algumas décadas, é da mão daqueles que pensam que outra sociedade é possível, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que se articula um outro formato de escola de samba: a Unidos da Lona Preta.

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Fundada em 2005, a Unidos da Lona Preta surge com o objetivo de congraçamento militante, de festejo compromissado. Num tempo de desesperança, de indivíduos individualizados, percebia-se como o encontro e o fazer coletivo são elementos fundamentais para a construção do reconhecimento de pertença e o auto-reconhecimento enquanto classe.

E de fato, o samba desde sempre fundamentou esse reconhecimento. Eis que a Unidos da Lona Preta se consolida. E apesar das dificuldades, existe bravamente.
Em meados do ano de 2008, percebe-se a necessidade de realizar um salto qualitativo no âmbito dessa expressão cultural.

Algumas mudanças ocorrem: os ensaios passam a ser realizados na Comuna Urbana Dom Hélder Câmara, em Jandira, que passa a ser a sede e referência da escola; os ensaios de bateria passam a ter regularidade; forma-se uma roda de samba, a Comuna do samba; inicia-se um processo de formação que envolve samba, literatura e política; buscam-se apoios e fazem-se rifas para a compra de mais instrumentos; envolve-se jovens de todos os assentamentos e da vizinhança da Comuna Urbana; convida-se aliados do MST para participar das atividades.

Nesse formato, a Unidos da Lona Preta já desfilou duas vezes, em 2009 e em 2010. 
Mas o carnaval, como sempre, passou…todos e todas dormiram depois da festa, e ao acordar, o mundo seguia igual, com suas mazelas, injustiças e misérias. O sucesso do processo coletivo até o carnaval e do próprio desfile eram irrefutáveis. Mas era necessário ir mais além.

A Unidos da Lona Preta passa a pensar o mundo e a pensar-se com mais rigor. Era necessário entender esse estar no mundo. Dúvidas surgem, dilemas se colocam. O próprio processo nos perguntava para onde caminhar. Como o samba, com muitos instrumentos, mas sem ser instrumentalizado, ensaia a bateria e o processo de transformação social? Como a arte se coloca no mundo, questionando-o para além do simbolismo estético? Seria possível aliar poesia e porrada?

Tantas perguntas oriundas de tanto fazer…e as respostas vão se apresentando aos poucos, como as rimas perfeitas para o desenlace das estrofes.

O desfile é um momento importante, mas o mais importante para a Unidos da Lona Preta é o processo. Este processo deve garantir formação política, formação cultural em termos mais amplos, formação rítmica e relações sociais. Enfatizar apenas o desfile é justamente fortalecer o imediatismo da sociedade do espetáculo, onde a o brilho-notícia apaga os vestígios do trabalho e do contexto dessa criação.

A Unidos da Lona Preta não faz samba-festinha, faz samba-luta.

Arte popular não é industria cultural assim como cuíca não é teclado.
Nosso grupamento carnavalesco é uma escola de samba, e não um bloco.
Mas então – perguntaram-nos alguns – para ser escola de samba terão que ter dinheiro, brilho e mulher pelada?

A resposta foi rápida e simples: quem disse que escola de samba é somente o pastiche visual vendido pela transmissão da televisão? E quem disse que as escolas de samba sempre foram entremeadas por financiamentos e hierarquias? Hoje as escolas de samba tem um formato que de fato não é o que mais propicia a participação popular.

É uma totalidade contraditória assim como nossa sociedade. Mas quando a Unidos da Lona Preta deixa de se pensar como escola de samba é porque aceita que só existe o formato hegemônico atual para essa expressão cultural. Então vamos disputar o conceito sim, porque a Unidos da Lona Preta ensina samba, então é escola de samba. E ponto final.

Nosso samba é resistência, mas não fica nesse reducionismo romântico. O samba é ataque e contra-ataque também. Tabelinha bem feita na entrada da área e chute certeiro no ângulo. Olhem a proliferação de amantes do gênero. Percebam a existência de rodas de samba nos quatro cantos e quatro ventos.

Verifiquem a quantidade de comunidades do samba que surgiram nos últimos anos em toda São Paulo, fenômeno social derivado justamente da mercantilização das escolas de samba. Percebam que mesmo mercantilizadas, industrializadas e financeirizadas, as escolas de samba seguem lotadas e mantendo comunidades próprias (apesar da TV e das modelos…). Quadro complexo companheiros…samba não quer compadecimento de ninguém porque, concretamente, não precisa.

Para o carnaval de 2009, a Unidos defendeu o seguinte tema: “Avante Juventude, a luta é pra valer, 50 anos de Revolução Cubana, 25 de MST”. Naquele ano, o samba-enredo coletivo, o já famoso Avante Juventude, foi cantado de maneira apoteótica, com 500 pessoas tomando festivamente as ruas de Jandira.

Para o carnaval de 2010, a Unidos da Lona Preta afinou ainda mais seus instrumentos políticos-percussivos. Uma série de debates com batucadas sobre a denominada Questão Urbana foi o manancial fértil para a composição coletiva do samba enredo. Naquele carnaval, um grito pela aliança campo-cidade foi a temática defendida pelo samba “Povo do campo e da cidade: tamo junto e misturado”.

Para o carnaval 2011, já estão ocorrendo uma série de discussões sobre o tema: “Plantar o pão, colher a vida: para o mundo se alimentar sem veneno”. Dita temática será um canto pela humanidade. Por reforma agrária, justiça e soberania alimentar. Contra os transgênicos, os agrotóxicos e o agronegócio. Pela agroecologia e por uma nova relação entre homem e natureza.

A idéia de fazer debates e formações sobre o tema escolhido em cada ano tem como meta a participação e a apropriação de todas e todos sobre o quê será cantado e contado. São as informações colhidas nos debates e formações que embasam o samba-enredo, que é construído coletivamente. Esse samba sem autor, ou melhor, onde todos são autores, tem maior autonomia com relação à sua poética e criatividade, uma vez que não é um samba apenas descritivo do visual, como o são hoje os sambas-enredos das grandes escolas.

Para além desta forma diferente de composição do samba, o processo de construção do carnaval da Unidos da Lona Preta é, como um todo, diferente do processo de confecção desfile das escolas de samba atuais, que é alienado e alienante.

A construção dos desfiles de escola de samba, nos moldes atuais, não permite que o seu produtor, ou seja, o compositor, o ritmista e o folião, se aproprie do produto final de sua própria produção cultural. Hoje em dia, o participante de uma escola de samba executa um projeto por outro construído, ou seja, alheio a si mesmo, e sendo apenas parte de um todo que este produtor não tem possibilidade de entender e acessar.

É um processo, em termos marxistas, alienado. Esse processo descrito vincula-se também à própria profissionalização do carnaval e ao caráter competitivo do mesmo, o que se desdobra na dependência das escolas com relação às ligas e aos patrocínios que condicionam o fazer artístico.

Na tentativa de defender a liberdade de expressão e manifestação artística, a Unidos da Lona Preta optou também por não participar de concursos nem fazer parte de ligas de escolas de samba. Pois é compas, como podem notar, fazer samba-militante é cansativo, exige decisões, escolhas, mas é mais gratificante também.

No fundo, o que esta experiência propicia são novas relações sociais. Sentimentos de pertença e sorrisos infantis que participam e se alegram. Politização pela arte e arte politizada. Expressão cultural e reivindicação expressa de novos tempos. Encontro de pessoas e pessoas que se encontram na própria origem. Candeia já tinha avisado: um povo sem passado é um povo sem futuro. E nós, humildemente, mas convictos, vamos fazendo nossa parte.

(foi publicado no Passa Palavra )