“Terras improdutivas somam 134 milhões de hectares”

 

Do Instituto Humanitas Unisinos

 

Do Instituto Humanitas Unisinos

Segundo dados recentes do Incra, a região sul do Brasil (e não a Amazônia) foi a que apresentou o maior incremento no número de grandes propriedades improdutivas. A informação é do engenheiro agrônomo Gerson Luiz Mendes Teixeira, que desenvolveu um estudo com o objetivo de realizar um cotejo entre os perfis das estruturas fundiárias do Brasil de 2003 e de 2010, retratados nas respectivas atualizações das Estatísticas Cadastrais do Incra.

Os dados obtidos, segundo Gerson, “demonstram a falácia dos argumentos dos ruralistas sobre a necessidade de mudanças no Código Florestal para liberação de áreas para a expansão do agronegócio”. E continua: “uma vez atualizados os índices de produtividade, conforme determina a lei, teremos uma enorme ampliação do estoque de imóveis passíveis de desapropriação”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Gerson traz dados alarmantes sobre a questão da terra no país, entre eles a informação de que “contabilizamos, no Brasil, 69,2 mil grandes propriedades improdutivas, com área equivalente a 228,5 milhões de hectares”.

Engenheiro agrônomo, Gerson Teixeira é ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA e integrante do núcleo agrário do Partido dos Trabalhadores.

Confira a entrevista:

O que de principal aconteceu na estrutura fundiária brasileira nessa década a partir do seu estudo dos dados cadastrais 2010 do Incra?

O estudo visou realizar um cotejo entre os perfis das estruturas fundiárias do país de 2003 e de 2010, retratados nas respectivas atualizações das Estatísticas Cadastrais do Incra. Confiando nas apurações dessa autarquia, cada vez mais qualificadas e livres de inconsistências, os dados apontam a possibilidade de ter ocorrido, nesse período, um importante, ainda que localizado, processo de agravamento da concentração de terra, acompanhado do incremento dos níveis de ociosidade da grande propriedade.

Esse indício de agravamento da concentração é percebido fundamentalmente (mas não exclusivamente) na Amazônia Legal, região de expansão das fronteiras agropecuária, mineral e energética. Contudo, o aumento de 18,7% verificado no número de grandes propriedades improdutivas – aquelas passíveis de desapropriação para reforma agrária – ocorreu em todo o país. E mais: ao contrário do que se poderia supor, a região sul do Brasil (e não a Amazônia) foi a que apresentou o maior incremento no número de grandes improdutivas, no período, com 32%. No Norte, foi de 30%.

Esses dados demonstram a falácia dos argumentos dos ruralistas sobre a necessidade de mudanças no Código Florestal para liberação de áreas para a expansão do agronegócio. E, também, que o instrumento de desapropriação para fins de reforma agrária é aplicável em qualquer região do país, a despeito da enorme e injustificável defasagem dos parâmetros que orientam os cálculos dos graus de utilização e de eficiência dessas áreas.

Uma vez atualizados os índices de produtividade, conforme determina a lei, teremos uma enorme ampliação do estoque de imóveis passíveis de desapropriação. Para que se tenha ideia, tomando-se os dados de 2010, contabilizamos no Brasil, 69,2 mil grandes propriedades improdutivas, com área equivalente a 228,5 milhões de hectares.

De acordo com o Censo Agropecuário de 2006, há 94 milhões de hectares com matas e ou florestas naturais (incluindo-se 50,2 milhões de terras destinadas às Áreas de Proteção Permanentes e Reservas Legais). Subtraindo-se toda a área com matas e florestas naturais (não apenas das grandes) da área total das grandes porções improdutivas, conclui-se que haveria no Brasil uma área improdutiva, dentro das grandes propriedades improdutivas, pelo menos 134 milhões de hectares.

O senhor afirma que se agravou a concentração de terras no Norte do país, particularmente na Amazônia, mas nessa região o histórico já não é de grande concentração. Como, e a partir de que dinâmica, isso se agravou ainda mais?

Regra geral no Brasil como um todo, o histórico é de concentração. Na Amazônia, o quadro é superlativo em função da combinação de vários fatores, tais como as dimensões geográficas; as particularidades históricas dos padrões de ocupação ditados até por razões da geopolítica dos governos militares do ciclo de 1964; a inexistência histórica de regulação e controle públicos; e, no período recente, as circunstâncias internas e externas que balizam a expansão da fronteira agropecuária naquela região.

De 2003 para 2010 houve uma verdadeira corrida pelo cadastro de terras na região norte, no caso. A área total cadastrada saltou de 89 milhões para 170 milhões de hectares. Nesse processo, enquanto as áreas cadastradas das pequenas e médias propriedades cresceram, respectivamente, 16% e 33%, a área das grandes propriedades subiu 133%. Estas detinham 61% da área total dos imóveis da região, em 2003, e passaram a controlar 75% em 2010. E, teoricamente, era para ter sido o contrário, pois o Programa Terra Legal seria um estímulo ao cadastramento das áreas de posse, porque, em tese, só alcança as pequenas e médias.

Por trás desse fenômeno, destacaria fatores específicos e gerais. Entre os particulares apontaria a fragilidade da presença pública e dos controles sociais que facilitariam a apropriação pelo grande capital de terras públicas e privadas, e a importância estratégica da região na esfera global.

Ao mesmo tempo, alimenta esse processo o rebatimento, naquela região, da “opção brasileira”, reforçada nos anos recentes, pela transformação do país em um grande protagonista no comércio internacional de commodities minerais e agrícolas, incluindo os agrocombustíveis. No caso agrícola, integram as medidas nessa direção o expressivo reforço às políticas de estímulos creditícios, tributários e fiscais para a agricultura produtivista; os incentivos para a atração de capital externo para segmentos nobres do agronegócio; e os estímulos para a criação de empresas brasileiras de “classe mundial”.

Ao mesmo tempo e associadamente, o referido processo incita as repercussões fundiárias da procura de terras no país pelo capital externo, movida (I) pela aposta no mercado global do etanol; (II) para os investimentos das “papeleiras”; (III) pelo estado de vulnerabilidade da oferta alimentar por conta de sistemáticas quebras de safra em todo o mundo, provavelmente já refletindo os efeitos das mudanças climáticas; e (IV) pelas apostas na atratividade dos instrumentos de mercado decorrentes dos acordos no âmbito da COP do Clima.

Particularmente, penso que o capital externo tem tido participação notável nesse processo de reconcentração. Infelizmente, não temos dados concretos para sustentar essa impressão, por culpa, principalmente da Advocacia Geral da União – AGU. Em 1994, a AGU emitiu parecer concluindo pela recepção parcial, pela Constituição de 1988, da Lei n. 5.709/71, que regula a aquisição de terras por estrangeiros. Desde então, até 2010, com a revisão desse parecer, determinada pelo presidente Lula, o país teve um apagão no controle do processo de apropriação do território do país por grupos estrangeiros. Não temos ideia da dimensão da estrangeirização da terra no Brasil.

O senhor diz que se assiste a uma corrida pela terra e pelos bens ambientais por parte do capital estrangeiro. Exatamente, que tipo de terra interessa a esse capital e quais são os bens ambientais que procuram?

Com a crise climática e ambiental, biodiversidade, terra e água assumem significados cada vez mais estratégicos em escala global. O Brasil, em especial a Amazônia, é abundante nesses recursos, cujos controles passam pelo controle da terra.

O próprio Banco Mundial alertou os países da África e América Latina sobre a tomada de terras em curso pelo capital internacional nessas regiões, com forte presença do capital financeiro. Mais ostensivamente, a China, por meio de estatais, tem adquirido milhões de hectares de terra no Brasil (e em outros países da América Latina e África), ou efetivado contratos com produtores locais, para garantir a segurança alimentar da sua população.

Fornecemos terra, água, e alimento, com subsídios da Lei Kandir, para garantir a oferta de alimentos aos chineses. Nada contra dispormos das nossas riquezas naturais para contribuir com a segurança alimentar mundial, desde que priorizando as relações com as nações mais pobres e, sob condições internas de sustentabilidade, controle soberano do nosso território e sem alimentar a especulação e a concentração fundiária, entre outras anomalias.

O modelo econômico determina também a dinâmica da estrutura agrária no país?

É o determinante de última instância, principalmente quando o modelo está direcionado para a sustentação de uma economia de base excessivamente primário-exportadora.

Os ruralistas afirmam que o estoque de terras para fins de Reforma Agrária no Sul e no Sudeste se esgotou. Os dados das Estatísticas Cadastrais do Incra de 2010 corroboram essa afirmação?

Tentei demonstrar o equívoco, ou manipulação, dessa afirmação.
A ideia de que a pequena propriedade está perdendo força e espaço na estrutura agrária brasileira não se confirma pela análise dos dados.

Quais são as principais conclusões sobre os dados do minifúndio e da pequena propriedade, tendo-se o quadro comparativo 2003/2010?

Especificamente pelos dados do Cadastro do Incra, tem-se que, em todo o Brasil, comparando 2003 com 2010, somente as grandes propriedades ampliaram a participação das suas áreas nas áreas totais dos imóveis rurais. Passaram de 51%, para 58%. A participação da área das pequenas declinou de 18% para 15,6%; e das médias, de 21% para 20%. A participação da área dos minifúndios também diminuiu de 9,4% para 8,2%, mas o número dessa categoria aumentou 21%.

Na síntese, temos elementos para suspeitar que a questão agrária brasileira foi exacerbada. Os indícios de fragilização da pequena propriedade nos levam a indagar a razão para tal. Avalio como de singularidade histórica, em termos internacionais, a obstinação dos governos Lula para a inclusão da agricultura familiar entre os objetivos das políticas públicas. Após séculos de exclusão, foi preciso um trabalhador na presidência para dar um basta nessa segregação. Somas fabulosas de recursos passaram a ser destinadas pelo governo para o fortalecimento da agricultura familiar, em crédito à produção, sustentação de preços, mercados institucionais, etc.

Todavia, entre as aspirações do presidente e o seu objeto final, tivemos formuladores e operadores das políticas com as cabeças voltadas para um processo de modernização conservadora desse segmento, nos mesmíssimos padrões daquele que balizou a modernização do latifúndio, e em absoluto antagonismo com as especificidades de organização e cultura da agricultura camponesa. Não é à toa que a taxa de inadimplência dos miniprodutores na região norte do Brasil exceda aos 90%.

É correta a afirmação de que o agronegócio cada vez mais se concentra principalmente na média propriedade? As inovações tecnológicas têm sido decisivas para essa dinâmica? Produzir mais depende cada vez menos da área agricultável?

Para a confirmação da previsão contida no seu questionamento, ainda temos que demonstrar, de fato, a excelência produtiva do agronegócio. Os dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO, referentes ao ano de 2009, não confirmam as pregações acerca da excelência dos padrões técnicos do agronegócio brasileiro. Na média de todos os cereais, a produtividade no Brasil em 2009 foi de 3.526 Kg/Ha, o que colocou o país no 56º posto em termos globais. Na pecuária de corte, o nosso índice médio de produtividade, expresso em peso da carcaça, de 220 Kg/Animal, posiciona o país na 48ª colocação em todo o mundo.