A terrível rotina dos que trabalham nos frigoríficos



Do Instituto Humanitas Unisinos


Ao analisar a situação da produção bovina e avícola no Brasil, Siderlei de Oliveira  põe acento na difícil situação dos trabalhadores desta indústria. Ele destaca como ponto positivo o fato de que “temos o maior frigorífico do mundo, a Friboi, com as fusões, e o segundo maior frigorífico do mundo, a Marfrig, além do maior produtor e exportador de frango, a BRF, todas empresas brasileiras. Então, é um setor onde nós temos ponta no mundo, e que emprega muita gente”.

Do Instituto Humanitas Unisinos

Ao analisar a situação da produção bovina e avícola no Brasil, Siderlei de Oliveira  põe acento na difícil situação dos trabalhadores desta indústria. Ele destaca como ponto positivo o fato de que “temos o maior frigorífico do mundo, a Friboi, com as fusões, e o segundo maior frigorífico do mundo, a Marfrig, além do maior produtor e exportador de frango, a BRF, todas empresas brasileiras. Então, é um setor onde nós temos ponta no mundo, e que emprega muita gente”.

No entanto, continua, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, “esse setor se desenvolveu muito em cima da produção, da competição, se organizou para competir com as outras indústrias internacionais, neste caso as européias. E ganhou os mercados porque produz uma carne muito barata, no caso da avícola, em cima do ritmo e da exploração da mão-de-obra. Além disso, pagam um salário baixo, com uma produção muito alta por homem. Essa produção aumentou muito nos últimos anos e, junto com ela, aumentaram as doenças. O ritmo é intenso, insuportável, as pessoas têm uma vida útil de trabalho muito curta hoje no setor”.

A entrevista foi feita em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT.

Siderlei de Oliveira, membro da Central Única dos Trabalhadores (CUT), é presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (CONTAC) e dirigente da União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação (UITA).

Confira a entrevista:

Nos últimos meses tem crescido o número de denúncias sobre as péssimas condições de trabalho nos frigoríficos. O que está acontecendo nos frigoríficos brasileiros?

Os frigoríficos sempre foram problema. Era uma indústria meio escondida, não era de ponta, como no caso da indústria automobilística. Ela sempre teve problemas, com muito pouca organização por parte dos empresários, que se preocupavam apenas com a produção. E, geralmente, ela é instalada em pequenas cidades perto da produção bovina ou, no caso, avícola, procurando fundões, em estados como Mato Grosso e Goiás, no caso dos bovinos, onde tem um movimento sindical muito incipiente, muito fraco.

A falta de ação dos sindicatos devido à localização dessas empresas é um problema importante. As avícolas são um pouco diferente. Trata-se de uma indústria nova, que tem 30 anos no Brasil. Só que ela se desenvolveu muito e hoje é uma das mais modernas do mundo. Não se encontra no mundo uma indústria avícola como a brasileira, pois conseguiram desenvolver alguns métodos que são muito bem feitos. Então, hoje, nós temos um custo barato do frango, que compete bem no mercado internacional.

Somos campeões mundiais de exportação, só não somos ainda campeões mundiais de produção porque tem os Estados Unidos que produzem muito frango e consomem muito no mercado interno. E no setor de carne nós já começamos a ter títulos também.

Temos o maior frigorífico do mundo, a Friboi, com as fusões, e o segundo maior frigorífico do mundo, a Marfrig, além do maior produtor e exportador de frango, a BRF, todas empresas brasileiras. Então, é um setor onde nós temos ponta no mundo, e que emprega muita gente. Por isso é que agora começou a desenvolver demais.

As indústrias avícolas estão até com falta de pessoal para trabalhar, e agora está piorando ainda mais a situação por causa das doenças. Esse setor desenvolveu muito em cima da produção, da competição, se organizou para competir com as outras indústrias internacionais, neste caso as européias. E ganhou os mercados porque produz uma carne muito barata, no caso da avícola, em cima do ritmo e da exploração da mão-de-obra. Além disso, pagam um salário baixo, com uma produção muito alta por homem.

Essa produção aumentou muito nos últimos anos e, junto com ela, aumentaram as doenças. O ritmo é intenso, insuportável, as pessoas têm uma vida útil de trabalho muito curta hoje no setor. Antigamente, um trabalhador de frigorífico levaria 15 anos para aparecer com uma doença, por exemplo, pelo frio, como uma pneumonia, ou um reumatismo, além de alguns cortes que eram comuns na época – acidente em frigorífico era corte -, e algumas contaminações biológicas. Hoje não.

Hoje um jovem de 25, 30 anos, com 5 ou 6 anos de frigorífico já está doente, com lesões irreversíveis. Só que é um setor que emprega em torno de 800 mil trabalhadores no Brasil, só na fábrica, sem contar com os trabalhadores satélites da fábrica. Com esse ritmo, 25% dos trabalhadores já estão doentes, ou dentro da fábrica, ou na previdência, ou desempregado, porque as empresas já mandaram embora devido às doenças.

Os frigoríficos não utilizam tecnologia para facilitar o serviço dos funcionários?

Não. Ser humano para eles não tem investimento. Tem investimento na produção e nas máquinas para aumentar a produção. Por que agora vemos esse monte de denúncias? Porque depois de muita luta nós conseguimos convencer as autoridades brasileiras a fazer com que as empresas começassem a discutir a normatização dos locais de trabalho. Então, nesse momento, nós temos em situação de consulta pública uma norma regulamentadora nos locais de trabalho.

O problema dos frigoríficos não se resolve com médicos, nem com técnicos, mas se resolve com questões políticas, com a vontade dos empresários de resolver os problemas que criam as doenças dos trabalhadores. É preciso mexer nos locais de trabalho, nas condições de trabalho, com redução de ritmo e pausas de 10 minutos em cada 50 para a recuperação dos líquidos lubrificantes das articulações, já que as lesões são causadas pela falta desse líquido.Mas mexer com isso é prejuízo, porque reduz a produção.

Esse é um problema de Estado, de nação, onde os trabalhadores não são cuidados como deveriam. Por exemplo, a alegação dos empresários é de que eles não podem investir nesse momento, porque o setor está passando por problemas econômicos. Não, saúde não tem preço. Agora, porque não pode enfrentar, então vão adoecer os trabalhadores que estão dentro das fábricas? Então não funcionem! Quem não tem condições de dar boas condições de trabalho, não pode ter condições de funcionar, tem que ser proibido de abrir as portas.

As galinhas e os ministérios

Fizemos uma campanha nacional contra as doenças dentro dos frigoríficos, inclusive com um símbolo de galinhas gigantes empurrando uma cadeira de rodas com um doente em cima e conseguimos colocar para a sociedade o problema das doenças nos frigoríficos através dessa campanha. E a justiça, que sempre teve uma posição de defesa do empresariado, começou a tomar ciência da gravidade do caso e começou a atuar.

O Ministério Público do Trabalho, que é um órgão de Estado, não é governo, também tomou posição e tem poder para atuar. Um dos problemas graves é que o Ministério do Trabalho não tem atuação, não tem fiscalização suficiente e, mesmo assim, foi dada ordem para que reduzissem as fiscalizações nas fábricas, pois os empresários fizeram pressão.

O próprio Ministério do Trabalho não cumpre a sua parte, e, quando cumpre, a multa é tão pequena, tão irrisória que os empresários pagam a multa rindo e continuam fazendo as mesmas coisas, sem melhorar nada. Agora, com a ação do Ministério Público, as denúncias começaram a aparecer. Diz o Ministério Público que está denunciando tudo que tem encontrado e tem aplicado pesadas multas, de 26 milhões, 14 milhões, porque o Ministério Público faz o cálculo baseado numa publicação dos frigoríficos de quanto um homem produz por ano de trabalho. A partir deste valor e calculando uma expectativa de vida, cobra-se na justiça aquele ‘X’ que ele produz por ano, na expectativa de 40 anos úteis de trabalho, e tem dado ações muito grandes.

Reflexos na economia

Essa situação já está provocando problemas econômicos para o país, porque os frigoríficos europeus onde a nossa carne está competindo deslealmente, baseada na exploração existente aqui no país, estão fazendo retalhamento e já estamos perdendo mercado. Já chegou aos consumidores europeus de que forma é produzida a carne brasileira. Todo esse problema que está aparecendo agora é efeito da campanha nacional contra as doenças nos frigoríficos.

Mas é preciso mostrar a diferença entre o setor avícola e o setor bovino. O setor bovino emprega menos pessoas, também adoece tanto como no setor avícola, mas com um número menor de trânsito, já que tem um número menor de trabalhadores. Por exemplo, o maior frigorífico do mundo tem 63 mil trabalhadores. Já apenas uma empresa avícola emprega 140 mil trabalhadores, que é a BRF. Aí que está a diferença.

Em que frigorífico a situação é mais dramática, no abate e processamento de carne bovina, de aves ou suína? Há diferenciações?

A situação mais dramática é na indústria avícola, porque tem o maior número de trabalhadores. Uma empresa avícola, para ser rentável, não poder ter menos que mil trabalhadores. São empresas como em Marau (5 mil trabalhadores); a Perdigão, em Concórdia (6 mil trabalhadores só numa fábrica); em Serafina Corrêa, uma cidade muito pequena do sul (2.700 trabalhadores). São todas fábricas grandes, com grande contingente de trabalhadores e com grande contingente de doenças.

Uma outra característica onde tem indústria avícola é o número de farmácias que tem na cidade. É impressionante, porque o consumo de medicamentos é muito grande. E os medicamentos vendidos lá são anti-inflamatórios, remédio para dor e calmantes. A outra questão também é o número de doentes enviados para a previdência nessas cidades. A previdência também tem que se envolver, porque quem está pagando a conta somos nós, através da Previdência Social. Esses doentes são jogados lá e a empresa diz que cumpre a lei, que paga suas obrigações. Agora, por pagar as obrigações não tem direito de mutilar, não tem direito de adoecer.

Os principais pontos são políticos, não são tão técnicos, e exigem uma mudança no setor de trabalho, usando as questões técnicas, mas para mudar o ambiente de trabalho. Além da pausa para descanso, há também a questão do tempo de exposição, porque é aquela teoria da vela: cinco segundos com a mão em cima da vela não avermelha a mão, mas 10 segundos já começa a dilacerar. Até seis horas de trabalho, o corpo não adoece muito, mas depois de seis horas é quando começam as doenças. Nós temos que tirar a mão do trabalhador de cima da vela na hora que começa a queimar, que é após as seis horas. Nós estamos pedindo seis horas de tempo de exposição, não quer dizer que seja redução de jornada. O trabalhador pode sair daquele trabalho de exposição, o trabalho penoso, e fazer outra coisa.

Qual é o tamanho do setor no Brasil? Quantas pessoas emprega? Qual é a média salarial?

A cadeia produtiva avícola, por exemplo, passa de 1 milhão e meio de trabalhadores envolvidos: tem o integrado, tem o transportador, a fábrica de ração, os apanhadores de frango, que apanham os frangos na madrugada. No setor bovino, fala-se em 500 mil. O setor melhor organizado no ramo alimentício é o setor avícola. Os frigoríficos bovinos estão nos estados de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais. Mas o setor avícola é um setor urbano. Ele está dentro da cidade porque precisa muita mão de obra. Então aí nós temos bastante organização. A média salarial está em torno de R$800, R$900 por mês, porque não precisa de especialização nenhuma. Chegou na frente da fábrica pode entrar e trabalhar.

A produção de carnes brasileiras – bovina, aves e suína – está destinada prioritariamente para o exterior?

A carne avícola chega a 65%, 70% de exportação. A carne bovina não está muito longe disso. O grande consumo é a exportação. O Brasil está sendo a bola da vez de produção de carne, porque na Europa é muito difícil, não tem espaço físico para a criação de animais soltos no campo como se cria no Brasil. A questão avícola também precisa de muita terra para produzir alimentos para os frangos, no caso de cereais, como milho, soja.

O Brasil é um país propício à criação de grande escala, tanto bovina, como avícola, por ter essas condições de produção de cereais e por ter grandes extensões de terras, de campos, para serem ocupados no caso bovino. Não há, no mundo inteiro, condições iguais às brasileiras. Temos aqui pessoas especializadas, que foram formadas pelas empresas durante anos.

A família vai se formando no ramo, aprendem a criar o frango. Então, já temos uma equipe pronta, esperando para montar mais um aviário, e isso está dando condições de desenvolvimento para o setor. O Brasil tem todas as condições, por isso que está crescendo. O problema fica apenas na questão das doenças e do salário, que tem que ser melhor dentro dessas fábricas. 

Quais são os grandes grupos que controlam o processamento de carnes no Brasil? São todos nacionais?

Acho que esses grandes grupos têm dinheiro internacional também. No momento em que vão para as bolsas de valores, já deixam de ser brasileiros. Apenas a direção é brasileira. Por exemplo, a Friboi, o maior frigorífico do mundo, vende ações no mundo todo, mas é direção brasileira. A Marfrig, o segundo maior frigorífico do mundo, tem a direção brasileira. O maior produtor de carne avícola do mundo, BRF, igualmente possui direção brasileira. A produção de carne no mundo está sendo dominada por brasileiros.

De todos os grupos, qual deles pratica mais violência contra os trabalhadores?

Essa pergunta sempre vem. As pessoas querem saber quem é o melhor e quem é o pior. Eu respondo contando a história de dois bandidos que se encontraram, e um disse para o outro assim: “Tu estás matando com bala de chumbo, com chumbo cruzado, que faz um rombo na cabeça dos caras”; e aí o outro bandido fala: “Mas tu também mata”. E ele responde: “Não, eu mato com bala de ouro, calibre 22, que é bem fininha, e depois tem um médico para tapar o buraquinho onde a bala entrou para não ficar feio”. E aí, o que mudou? Um morreu com bala de ouro, com um médico do lado, e o outro morreu sem médico, mas morreram os dois. Então não tem bonzinho aí. Tem um que mostra para a sociedade que é o melhor porque tem médicos, tem serviço de assistência, mas lá na ponta, lá onde adoecem, são iguais.

As condições que apresentam são iguais, porque a competição é muito grande. O ritmo de trabalho é dado por uma máquina, e o homem não tem domínio do ritmo. Já na indústria bovina eles têm um certo controle do ritmo, mas na avícola não tem controle nenhum, é a máquina que dá o ritmo. E é o casamento máquina-homem que está mutilando esse país no setor frigorífico.

Grupos como o Brasil Foods e JBS Friboi tem recebido recursos do BNDES, dentro da estratégia de se criar fortes grupos nacionais na área da alimentação, para competir internacionalmente. Como você vê essa política?

Foi bom você tocar nisso. O Brasil tem um problema sério de Estado e de governo também, que é a visão de que tem que desenvolver a indústria para o país crescer. País que cresce com a população doente, nunca vai ser um país desenvolvido. Ele pode ser um país rico, mas não desenvolvido. Para ser desenvolvido é preciso que seus trabalhadores sejam sorridentes, não tristes e doentes. Essa é a questão. Eles só pensam que a indústria tem que se desenvolver e metem dinheiro, sem contrapartida nenhuma.

O BNDES pega parte do dinheiro dos trabalhadores, dos fundos de garantia, e dá para as empresas. Mas cadê a contrapartida social? No mínimo, as empresas tinham que prometer dar boas condições para os trabalhadores, mas isso não acontece. Esse dinheiro público tem que ter uma contrapartida para os trabalhadores que fazem parte desse jogo, que não é só econômico. Tem uma questão social aí no meio, de saúde, de bem-estar.

Nós estamos num governo mais socialmente justo, mas temos que despertar também para isso, de parar de usar dinheiro público para crescer, fazendo crescer também a exploração e a mutilação dos trabalhadores. 

Recentemente a Brasil Foods fechou uma unidade em São Lourenço (RS). Na área da alimentação ocorre deslocamento de plantas industriais para se buscar mão-de-obra mais barata como se vê no setor têxtil e de calçados?

Não, isso não existe pelo seguinte: é um setor que tem que estar organizado no local. Por exemplo, ele tem que ter as pessoas especializadas próximas da fábrica, no caso dos integrados, que tem que ter áreas para criar o frango. Então não dá para ir embora e levar tudo junto. O que houve foi uma migração dos frigoríficos bovinos para o norte e nordeste, e aí o setor avícola ficou onde tem condições de produção de frango e de cereais. O que fechou lá em São Lourenço foi uma indústria de leite, e ela não fechou, foi uma transferência de produção para uma fábrica maior que eles têm em Lajeado.

Não estou defendendo que está certo o que eles fizeram, estou dizendo o porquê fizeram. Não é um atraso de produção, atraso de mão de obra, é o negócio de juntar produção. Aquilo lá era uma indústria de outros proprietários, a Perdigão comprou e juntou tudo que é leite dela num lugar só. É isso que está acontecendo. As indústrias avícolas ficam onde estão, não houve nenhum caso de fechamento, pelo contrário, é só crescimento.

Só aí no sul tem 6 mil vagas abertas que não conseguem ser preenchidas, pois está faltando mão de obra. Ela não faz essa migração como faz a indústria automobilística, ou como fazem outros tipos de indústria atrás do incentivo fiscal. Só incentivo fiscal para a indústria avícola não resolve; ela tem que ter o incentivo fiscal, mas precisa condições e vocação para o setor de pequenos produtores de avícola. Se vai para a Bahia é um caos, por que lá não tem a mão de obra européia que temos aqui na região sul, por isso que essa indústria se concentra aqui nessa região.

Gostaria de acrescentar alguma coisa?

Acho que as autoridades e as universidades também têm o seu papel na questão do desenvolvimento nacional. É preciso que as universidades comecem a debater o desenvolvimento também na ótica social, dos trabalhadores. Não só o desenvolvimento econômico por si.