Indústria madeireira cria “assentamentos de papel”


Por Luiz Felipe Albuquerque
Da Página do MST

Por trás de meros números que associam o desmatamento da Amazônia com os assentamentos da região, há um processo bastante complexo que passa despercebido ou é ignorado intencionalmente para atacar a Reforma Agrária.

“Os órgãos do Incra e até pessoas ligadas a órgãos ambientais cadastravam famílias que vivem a mais de mil quilômetros de distância da área a ser assentada. Essas famílias entravam num cadastro e se criava um assentamento no meio de floresta. Sem estrada por perto, sem escola, sem acesso a nenhuma infraestrutura, hospital nem nada. E a maioria dessas famílias sequer sabia que estavam nesse programa de assentamento. Elas eram cadastradas à revelia”, demonstra Márcio Astrini, do Greenpeace, em entrevista à Página do MST.

Em 2007, o Greenpeace lançou o estudo Assentamento de Papel, Madeira de Lei, denunciando esse processo que não tem nenhuma relação com a Reforma Agrária defendida pelos movimentos sociais do campo.

“Toda vez que falamos em desmatamento em assentamentos temos que verificar como está esse assentamento e porque foi colocado numa área de floresta. E se foi ele que, de fato, realizou esse desmatamento, ou se sua existência se dá somente no papel, feito para exploração madeireira e não para assentar famílias”, orienta Astrini.

“Nesse debate do Código Florestal, por exemplo, o que vemos é que a agricultura familiar e os assentados não querem desmatar. A reivindicação do setor é exatamente para fazer recuperação das áreas de florestas, transformando num ativo econômico para que possam usá-las”, avalia o diretor do Greenpeace.

Abaixo, confira a entrevista.


Nas últimas semanas, a imprensa burguesa associou o aumento de desmatamento na Amazônia, especialmente no estado do Pará, com os assentamentos da região. O que de fato está por trás desses números?   

O Greenpeace fez um estudo um tempo atrás falando sobre a relação dos assentamentos com o desmatamento. Nesse estudo desmentimos a ideia de que os assentamentos causam desmatamento, exatamente porque esses assentamentos eram o que chamamos de “assentamento de papel”. Ou seja, nunca existiram.

Eram negociados como se fossem para assentar as famílias, mas na verdade serviam só para atender um esquema madeireiro e de grilagem de terras, visando a retirada de madeira e a conversão de capital fundiário.

O que causa estranheza para nós são sempre duas coisas. A primeira é que a Amazônia virou o quarto de despejo de assentamentos no Brasil. Quase toda a política de Reforma Agrária agora é feita na Amazônia. Para se livrar de um “problema” e para inflar números de assentamentos, nos últimos anos o governo federal – tanto o governo Lula quanto o governo Fernando Henrique Cardoso – criou cada vez mais assentamentos nessa região.

O que, inclusive, não atende as reivindicações de Reforma Agrária. Cria-se um assentamento e o abandona numa área longe de tudo, dificultando a sobrevivência dessas famílias no assentamento.

O segundo aspecto que também sempre causa estranheza é que a própria legislação diz que um assentamento não tem que ser feito em área de floresta. Tem que ser feito em área já desnuda.

O que normalmente deveríamos discutir é como recuperar as áreas em que as famílias foram assentadas, para que possam, com o reflorestamento, utilizar economicamente a área, incluindo ativos florestais, com extração de frutas e de madeiras, diversificando a economia do assentamento, da agricultura familiar. E fazer com que essa terra fique menos propensa à pressão de acumulo do capital fundiário.

Essa associação do desmatamento com os assentamentos na Amazônia é muito mais complexa do que se parece?

Toda vez que falamos em desmatamento em assentamentos temos que verificar como está esse assentamento e porque foi colocado numa área de floresta.

E se foi ele que, de fato, realizou esse desmatamento, ou se sua existência se dá somente no papel, feito para exploração madeireira e não para assentar famílias.

E se esse assentamento foi mesmo implementado ou se as famílias foram despejadas em uma área sem as menores condições de sobrevivência.

Nesse debate do Código Florestal, por exemplo, o que vemos é que a agricultura familiar e os assentados não querem desmatar.

A reivindicação do setor é exatamente para fazer recuperação das áreas de florestas, transformando num ativo econômico para que possam usá-las.

É possível tirar renda da floresta sem desmatar?

Quem trabalha com essa questão sabe: quanto mais floresta se tem, maior a possibilidade da diversificação do uso econômico daquela área.

Quanto mais diversificado o uso econômico, mais chance de fixar o assentado naquele local e menor é a pressão por compra do capital fundiário daquela área.

Assim, consegue-se fazer com que o assentamento seja economicamente viável.

É sempre estranho quando se vê algum número de desmatamento associado aos assentamentos.

Ou é porque ele não está funcionado, ou porque foi colocado lá para exploração madeireira, não cumprindo sua função, criado para um outro público – e não para o público da Reforma Agrária.

Como se dá na prática a atuação desse grupo que parece uma espécie de máfia?

De fato, é uma máfia. Os órgãos do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e até pessoas ligadas a órgãos ambientais cadastravam famílias que vivem a mais de mil quilômetros de distância da área a ser assentada.

Essas famílias entravam num cadastro e se criava um assentamento no meio de floresta. Sem estrada por perto, sem escola, sem acesso a nenhuma infraestrutura, hospital nem nada. E a maioria dessas famílias sequer sabia que estavam nesse programa de assentamento. Elas eram cadastradas à revelia. Levantamos vários casos desses.

E segundo que elas nunca foram assentadas de fato. Então, utiliza-se a figura do assentamento para disponibilizar aquela área para a exploração madeireira. Em vez de assentados, o que existia lá de fato era a indústria da madeira, que acabavam tendo um título falsificado – assinado pelo presidente da comunidade assentada, por exemplo – ou feitos em nomes de laranjas.

Muitas vezes esse cambalacho feito em nome dos assentamentos servia para escoltar madeiras que eram retiradas de outras regiões.

O esquema era todo falso. Pegavam a documentação de extração de madeira gerada daquela região para esquentar madeiras que eram extraídas de outros locais, viajando como se fosse madeira legal, sendo que o assentamento em si já é absolutamente ilegal e inapropriado.

E os pseudo-assentamentos ficavam no meio da floresta…

O que começou a chamar mais atenção é que esses assentamentos eram realizados no meio da floresta. E sabemos que a política de Reforma Agrária não pode ser feita no meio da floresta.

Que condições de vida teria essas pessoas? Um assentamento tem de ser feito em locais com infraestrutura. Trata-se de pessoas, de novas populações que precisam de uma rede integrada de atendimento social e necessitam de acesso para escoar sua produção e ser disponibilizada no mercado.

Numa área remota de floresta não é possível fazer isso. Analisamos 99 assentamentos nesse estudo. Todos com esse tipo de problema. Assentamentos que eram feitos por essa máfia.

Depois desse estudo, inclusive, os assentamentos foram suspensos e o Ministério Público, inclusive, utilizou para tentar frear nessa máfia. Mas sabemos que não será assim que esse esquema irá acabar, mas pelo menos é um instrumento que joga uma luz sobre um problema gravíssimo na Amazônia e que contamina muitos desses números que associam o desmate aos assentamentos.

Os madeireiros coagiam os assentados?

Tem-se toda a sorte de perversões nesse modelo. Muitos assentados chegam a algumas áreas levados por madeireiros. Cobram desses assentados o transporte, a alimentação, constroem uma escola na vila, um posto de saúde. Depois essa dívida é cobrada por meio da extração de madeiras.

Com isso, os assentados pagam as dívidas autorizando os madeireiros a fazer as extrações de madeiras e outros recursos dentro do assentamento. Ou seja, era realmente uma máfia que ainda existe na região da Amazônia.

E esse é apenas o primeiro passo de toda uma cadeia de exploração…

Tem a exploração madeireira e a grilagem de terras. Estão intimamente associadas. Muitas vezes o grileiro é o mesmo que faz a exploração madeireira. O ciclo do desmatamento na Amazônia é exatamente esse: começa com a exploração seletiva de madeira, já fragilizando o solo, para depois entrar com o desmatamento total. Podam o restante de floresta que ainda está ali – madeira não comercializável -, tacam fogo e entra com o gado.

O gado é exatamente o agente econômico e motivador jurídico para o grileiro pedir a posse daquela área. Assim que se dá o desmatamento.

A indústria madeireira, a grilagem de terra e a pecuária – com um índice de produção muito baixa, já que o boi não é um produtor de carne, mas sim de latifúndio. O boi é o guardião da terra.

Com a grilagem se estabelecendo sobre a terra, cria-se uma infraestrutura e a terra passa a ter, com o tempo, valor para a agricultura, entrando principalmente o cultivo de soja.

Como o Estado se comporta nesse processo?

Isso mostra muito claramente o seguinte: há uma ausência de Estado vergonhosa.

Existe uma população que precisa de assistência, que é levada para área de  assentamento. Mas essas populações não são tratadas com o mesmo entusiasmo com que o governo apresenta os números da Reforma Agrária.

O governo apresenta um número de famílias assentadas, a quantidade de assentamentos criado, mas quando se põe uma lupa sobre esse dados, verifica-se que não se passa de números. Falta política, falta infraestrutura, falta transferência de tecnologia para produção, falta financiamento.

Acontece que o governo acaba largando essas pessoas humildes na mão desses que se aproveitam da situação de omissão do governo, da fragilidade social envolvida, exatamente para promover a extração de recursos naturais.

Nesse momento é que se tem esses números de desmatamento nos assentamentos, que estão ligados ao abandono do governo nessas áreas. Essas florestas são derrubadas sob a conivência do governo federal.