Sistema de produção e distribuição concentrador gera fome, diz especialista


Do Correio Braziliense

Do Correio Braziliense

A fome no mundo não é consequência da escassez de alimentos. Teoricamente, o que é produzido hoje seria suficiente para alimentar todos os habitantes do planeta. Sendo assim, por que tantas pessoas passam fome? A resposta vem da Oxfam, uma organização não governamental (ONG) de origem inglesa que atua em 90 países, inclusive o Brasil – onde está presente há cerca de 50 anos -, e que tem com uma de suas bandeiras o combate à fome e a adoção de políticas públicas que propiciem o aumento da produção de alimentos. Há seis meses, a Oxfam lançou a campanha Cresça (Grow, na língua inglesa).

A entidade defende a ideia de que o problema da fome decorre de fatores como a dificuldade no acesso aos alimentos por causa da especulação com os preços e o pouco apoio dado aos pequenos agricultores. Muriel Saragosa, coordenadora de campanhas da Oxfam no Brasil, considera positiva a experiência brasileira de combate à fome e recomenda que seja copiada por outros países. Mas entende que o país poderia avançar ainda mais se o governo reforçasse os programas de apoio à agricultura familiar.

O que Levou a Oxfam a lançar a campanha cresça?

Foi o fato de que os dados sobre a produção de alimentos são um pouco assustadores. Hoje, há um aumento do número de pessoas com fome e a gente sabe que nós estamos produzindo alimentos em quantidade suficiente para que todo mundo tenha o que comer todos os dias. O que está levando as pessoas a terem mais fome hoje que há 20 anos são outros fatores.

Quais são estes fatores?

Um deles é a alta volatilidade dos preços, porque nós temos uma especulação muito grande em cima dos alimentos. O segundo fator é que a fome é rural. Há mais gente com fome no meio rural do que nas cidades. Isso significa que essas pessoas vivem em terras com solo esgotado, ou seja, não apto à produção de alimentos, ou porque não têm acesso a terra e água. O aumento da demanda global por terra e água, que ocorre hoje, faz com que estes bens também se tornem commodities. E, também nesse caso, há pessoas especulando em cima de terra, como se fosse uma forma de guardar dinheiro, em vez de permitir que ela seja usada para produzir alimentos ou para matar a fome de quem tem fome.

Outra coisa que eleva a insegurança alimentar no mundo é que o sistema de produção e distribuição de alimentos está concentrado nas mãos de poucas empresas. Quatro empresas controlam a venda de sementes no mundo. Seis companhias controlam 75% dos agroquímicos. Três empresas controlam quase 90% do comércio de cereais. Com se não bastasse isso, há também um aumento da especulação em torno do preço dos alimentos.

Por causa da crise financeira de 20Ò8, as empresas que apostavam na bolsa passaram a apostar na alta do preço futuro dos alimentos. E, como não há transparência nas informações sobre os estoques de alimentos, ou seja, as empresas privadas não informam quanto há de estoque nem onde eles estão, cada vez que aparece uma notícia de seca em alguma parte do mundo, começa-se a especular que o preço dos alimentos vai subir, isso passou a ser uma rotina, principalmente depois de 2008. A concentração do estoque de alimentos nas mãos de poucas empresas dá a elas o direito de fazer o que quiserem com os preços.

A concentração de terras ocorre em Larga escala também no Brasil?

No Brasil, isso ocorre menos que na África, mas também ocorre. Hoje, nós temos grandes companhias internacionais comprando terras no Brasil; temos também a China comprando grandes extensões territoriais para alimentar sua população. Outra questão importante, que também contribui para agravar o problema, está relacionada às mudanças climáticas, que estão gerando uma série de pressões e eventos catastróficos, como as secas e as enchentes, que têm grande impacto sobre a produção de alimentos e colocam a população já marginalizada em uma situação ainda mais difícil.

Qual a visão da Oxfam sobre a agricultura familiar?

Ao contrário do que diz a propaganda, quem produz a maior parte dos alimentos que estão nas mesas dos brasileiros é a agricultura familiar. Hoje, 87% da mandioca que o brasileiro come vêm da agricultura familiar, da mesma forma que 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59% dos suínos, 50% da carne de frango e aves em geral e 21% do trigo. Os grandes produtores são responsáveis, principalmente, pelas commodities. Eles produzem aquilo que vai para o exterior. Hoje, por exemplo, o Brasil produz 24% da carne que é consumida no mundo. Desse total, 19% vêm de uma única empresa, o grupo JBS. Mas é a agricultura familiar a grande responsável pelos alimentos que vão para a mesa do brasileiro. Por isso, ela tem que ser valorizada.

O apoio que a agricultura familiar recebe hoje do governo é condizente com o seu peso?

Hoje, a agricultura familiar tem, por parte do governo, um apoio maior do que tinha em épocas passadas. Porém, mesmo assim, a distribuição de recursos é muito desigual Um exemplo: o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, principal base de apoio no governo aos pequenos agricultores, corresponde a 57% do orçamento do Ministério da Agricultura, que está voltado, principalmente, para o agronegócio. Além disso, o Ministério do Desenvolvimento Agrário tem uma deficiência muito grande de pessoal, principalmente nas áreas de pesquisa e extensão rural, setores que, no âmbito do governo federal, estão voltados, prioritariamente, para as commodities e o agronegócio.

No caso da extensão rural, apesar de ter ocorrido um grande esforço por parte do governo para melhorar a qualidade da assistência técnica para a agricultura familiar, esse apoio ainda está muito condicionado a uma assistência por pacotes tecnológicos. Mesmo o financiamento que vem dos bancos é sempre direcionado para um atendimento mais padronizado. Com isso, fica muito difícil para um sistema que aposta na diversidade e no não uso de agrotóxicos conseguir um financiamento agrícola. Isso, indiscutivelmente, é um problema. .

As mudanças climáticas poderão comprometer a produção de alimentos no mundo?

Essa é uma questão muito importante porque os eventos catastróficos ligados às mudanças climáticas pressionam muito mais os pequenos produtores de alimentos do que os grandes, porque os pequenos não têm o que a gente chama de resiliência, que é a capacidade de levantar recursos no banco para se reerguerem. Outra coisa é que o controle dos recursos naturais está escapando das mãos dos pequenos produtores de alimentos devido às dificuldades de acesso à terra. Hoje, está cada vez mais difícil conseguir água para irrigação. Além disso, recursos naturais como florestas ou a pesca estão mais escassos. A terra no Brasil é extremamente concentrada. E isso é um problema para o pequeno produtor.

É possível reverter a crise climática ou o cenário pessimista é irremediável?

Nós estamos caminhando mal. Os países que têm a maior parcela de culpa na produção dos gases do efeito estufa não estão fazendo a sua parte. Não estão cumprindo os acordos internacionais e não estão investindo em fazer algo diferente. Nós consideramos que é importante ter ações de prevenção das mudanças climáticas e de adaptação a esse novo cenário. Mas a realidade é que ninguém está pondo dinheiro na mesa. E nós temos várias propostas. Uma é a instituição de uma taxa sobre transações financeiras, que poderia formar um fundo para financiamento de programas de adaptação aos efeitos da crise climática pela agricultura familiar.

Outra campanha é taxar o combustível dos grandes navios que transportam mercadorias de um país a outro. Seria uma taxa bem pequena que não iria aumentar o preço dos alimentos, mas que incentivaria a produção local dos alimentos, diminuindo o uso dos combustíveis fósseis que contribuem para o efeito estufa. O Brasil deveria fazer isso, pois é uma liderança mundial, é a sexta economia do mundo.

Em relação à produção de alimentos, qual o cenário com o qual vocês trabalham para as próximas décadas?

O que estamos dizendo é que precisamos fazer alguma coisa com urgência. Precisamos, com urgência, que a sociedade tome conhecimento desses problemas e que os movimentos que já têm conhecimento disso sejam fortalecidos e se tornem capazes de conversar com os tomadores de decisão. Precisamos que a agricultura familiar seja fortalecida para garantir, com mais segurança, que as pessoas tenham não só disponibilidade de comida, mas também meios de comprar essa comida. Precisamos investir mais na produtividade, na resiliência e na sustentabilidade dos pequenos produtores e, em particular, nas mulheres, que são hoje a maioria dos pequenos produtores de alimentos e não têm visibilidade como tal.

Outra coisa importante é que a gente precisa parar com esse processo de apropriação da terra e da água por parte das grandes corporações, em detrimento da produção de alimentos e da sustentabilidade ambiental. Temos que parar de produzir carne de vaca para que uma minoria coma em detrimento da produção de feijão e arroz.

Que análise vocês fazem dos programas brasileiros de combate à fome?

No Brasil, houve uma melhora significativa. Inclusive, o fato de o Brasil estar fazendo isso dentro de um sistema democrático e com governança social, em espaços como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), é um exemplo positivo que nós, como Oxfam, estamos documentando e compartilhando com nossos colegas de outros países, para que possam aproveitar o que há de bom da experiência brasileira e ir mais longe. Há uma ideia de que no Brasil não há mais fome. Mas isso não é verdade. O problema continua a existir. Há no Brasil 16 milhões de miseráveis. E quem está na miséria está com fome, porque não pode produzir ou porque não tem acesso a comida. E a maioria dessas pessoas está no campo. E para o Brasil nós temos duas grandes prioridades. A primeira é aumentar a consciência da população em geral sobre a alimentação, sobre o que comer, se o alimento é saudável, se atrás dele há trabalho escravo. A segunda prioridade é trabalhar com a agricultura familiar.

Fora do Brasil, onde a situação é mais crítica?

Sem dúvida que a África é o continente em pior situação. Dentro da África, a região mais crítica é a do Sahel. O mundo não se preocupa com a África. A cooperação internacional diminuiu muito nos últimos anos. A receita que tem sido levada para Lá é que é só produzir soja, milho e algodão que o problema vai ser resolvido. Esse modelo foi – e continua sendo – Levado para a África nos últimos 30 anos, quando a gente sabe que a solução do problema da fome passa pela agricultura familiar adaptada de maneira que os produtores possam trabalhar segundo a realidade local. Na África, a agricultura familiar que produz alimentos tem sido colocada cada vez mais à margem nos espaços de produção. Você vê investimentos em irrigação que vão para a soja, o milho e não vão para o mileto (tipo de cereal), não vão para as mulheres que produzem o feijão-fradinho, que fazem a comida local. O que nós temos hoje na África é uma concentração de área agrícola de qualidade voltada para a produção de commodities e uma diminuição da área destinada à produção local de alimentos.