Agrotóxicos matam população de abelhas e comprometem biodiversidade


Por Martha San Juan França
Da Unesp Ciência


Cercado por laranjais e canaviais, o apicultor Sérgio Trevisan enfrenta há pelo menos cinco anos uma luta inglória. Em 2007, foi o primeiro round. “Era abelha morta por todo lado”, conta à reportagem de Unesp Ciência. A causa, ele e os outros apicultores da pequena Tabatinga, cidade da região de Araraquara, no interior paulista, conhecem muito bem: a pulverização aérea das lavouras com defensivos agrícolas conhecidos como neonicotinoides.


Por Martha San Juan França
Da Unesp Ciência

Cercado por laranjais e canaviais, o apicultor Sérgio Trevisan enfrenta há pelo menos cinco anos uma luta inglória. Em 2007, foi o primeiro round. “Era abelha morta por todo lado”, conta à reportagem de Unesp Ciência. A causa, ele e os outros apicultores da pequena Tabatinga, cidade da região de Araraquara, no interior paulista, conhecem muito bem: a pulverização aérea das lavouras com defensivos agrícolas conhecidos como neonicotinoides.

“Até entendo que o pessoal tenha necessidade de usar inseticida, mas eles precisam saber que o produto pulverizado por avião ou trator mata tudo quanto é inseto, não só as pragas”, afirma.

Considerados o que há de mais moderno em matéria de controle de insetos na agricultura, os neonicotinoides atacam o sistema nervoso desses bichos. Mas o produto acaba se espalhando pelo ar e se depositando nas flores, onde as abelhas coletam o néctar. “Parte delas morre na porta da colmeia, o restante não dá conta nem de chegar lá”, conta Trevisan.

O apicultor procurou os órgãos sanitários e ambientais de Tabatinga, mas não conseguiu comprovar o motivo da tragédia que compromete o seu ganha-pão.
Em agosto passado, Trevisan foi atrás do biólogo Osmar Malaspina, do Centro de Estudos de Insetos Sociais da Unesp em Rio Claro, que estuda a ação desses inseticidas no cérebro das abelhas. Entre 2008 e 2010, Malaspina pesquisou a perda de 10 mil colmeias de Apis mellifera (abelhas africanizadas, com ferrão), mortas por inseticidas na região de Rio Claro. Seus resultados mostraram que em cerca de mil havia vestígios de neonicotinoides.

Segundo o pesquisador, casos como o de Tabatinga se repetem em cidades vizinhas como Brotas, Gavião Peixoto, Boa Esperança do Sul e Iacanga, onde há quase dez anos os fazendeiros lutam contra o “greening”, doença dos laranjais cujo vetor é um pequeno inseto controlado com pulverizações aéreas ou feitas diretamente na planta. Outro agravante foi a proibição da queimada nas plantações de cana. O fogo, que antes afastava qualquer tipo de praga, foi substituído por agrotóxicos.

“Não sou contra o uso de inseticidas, mas devemos estabelecer uma política adequada para que não causem danos”, afirma o pesquisador. Diante das evidências que se acumulam no interior paulista e em outros Estados, ele foi chamado para assessorar o Ibama. Em julho deste ano,o órgão suspendeu temporariamente as aplicações dos neonicotinoides e começou a reavaliar seu uso nas lavouras de todo o país. Três representantes dessa classe de inseticidas estão sob suspeita: imidacloprido, tiametoxam e clotianidina (há ainda um quarto: o fipronil, pertencente a outra classe, a dos fenilpirazois). O primeiro a passar por reavaliação será o imidacloprido, o mais comercializado.

O objetivo dessa reavaliação é definir as medidas que precisam ser adotadas para reduzir os riscos. “Os fabricantes devem apresentar informações adicionais para podermos rever essa suspensão”, diz Marisa Zerbetto, coordenadora de controle ambiental de substâncias e produtos perigosos do Ibama. “É preciso considerar que a aplicação aérea, mesmo quando bem feita, exige muita técnica, sobretudo nos limites da área tratada, para não ocorrer a dispersão na mata nativa.”

A decisão segue diretrizes de políticas públicas do Ministério do Meio Ambiente voltadas para a proteção de polinizadores, o que inclui abelhas, pássaros, borboletas, besouros e morcegos que auxiliam na reprodução das plantas. É também um alerta para a agricultura. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), as abelhas são responsáveis por pelo menos 70% da polinização das culturas que servem à alimentação humana. Seu desaparecimento levaria a perdas de mais de 200 bilhões de dólares por ano.

Segundo Ulisses Antuniassi, pesquisador da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp de Botucatu, no entanto, a medida do Ibama foi unilateral e mal recebida pelos agricultores. Antuniassi propôs recentemente uma escala de classificação de técnicas de aplicação de agrotóxicos para evitar a “deriva do produto”, ou seja, sua disseminação no ambiente, com a contaminação da água, do solo e do ar. “Do ponto de vista biológico, existe um problema que deve ser enfrentado nesse caso”, explica. “Mas antes de proibir um determinado ingrediente ativo é necessário um estudo do impacto no sistema produtivo.”

A decisão do Ibama baseou-se em iniciativas internacionais e em pesquisas realizadas no Brasil, inclusive as da Unesp de Rio Claro. “A maior parte dos produtos aplicados em lavouras de soja, milho, cana ou laranja é altamente tóxica para as abelhas”, afirma Malaspina. “O problema não é só o princípio ativo, mas a forma de manejo e aplicação.” Segundo ele, às vezes o inseticida é liberado apenas para uso direto na planta, mas os agricultores usam avião. Ou é aplicado em doses quatro ou cinco vezes maiores do que as indicadas e em épocas do ano inadequadas.

Desorientadas

Outros problemas podem estar associados. Se a contaminação é por pulverização aérea, geralmente as abelhas morrem imediatamente. Em doses menores, elas não sucumbem de imediato, mas têm problemas para se orientar espacialmente. Além disso, podem tornar-se mais vulneráveis a vírus que arrasam as colmeias. O mel também pode acabar contaminado.

Em março deste ano, dois artigos publicados na revista Science por pesquisadores ingleses e franceses demonstraram como a ação dos inseticidas prejudica a capacidade de orientação das abelhas. No estudo inglês, realizado pela Universidade de Stirling, na Escócia, foram adicionadas pequenas doses do imidacloprido à alimentação de 50 colônias de abelhas. Essas quantidades simulavam as que os insetos encontram nas plantações de colza daquele país. A outras 25 colônias foi dada uma dieta livre do inseticida.

As abelhas foram deixadas em liberdade durante seis semanas para que pudessem procurar seu alimento em plantações. Ao final desse período, as colônias que haviam sido expostas ao inseticida eram de 8% a 12% mais leves que aquelas livres da substância. A diferença de peso deve-se, por um lado, ao fato de os insetos terem trazido menos alimento à colméia e, por outro, a uma queda no número de nascimentos de operárias.

O resultado mais evidente da pesquisa foi a diferença no número de rainhas. Nas colmeias livres de inseticida foram encontradas em média 13 rainhas para cada uma, enquanto nas que receberam alimentação contaminada esse número caiu para 1,7. Embora o estudo não esclareça a causa desse fenômeno, os autores sugerem que ela está nos pesticidas, que afetaram o sistema nervoso das abelhas e distorceram sua capacidade de orientação.

Esta interpretação coincide com os dados do estudo francês realizado com o tiametoxam. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola (Inra), em Avignon, fixaram chips eletrônicos ao tórax de 653 abelhas, das quais uma parte recebeu uma dose de inseticida. E observaram que 43% dos insetos expostos à substância morreram fora da colmeia, supostamente porque se perderam. Entre as que não receberam o inseticida, 17% morreram fora da colmeia.

Em comunicado, Michael Henry, primeiro autor do estudo francês, afirmou que os resultados “têm implicações importantes quando se trata de processos de autorização de inseticidas”. Segundo o pesquisador, até agora, a autorização desses produtos requeria apenas que os fabricantes demonstrassem que o princípio ativo não causa diretamente a morte das abelhas nas doses empregadas habitualmente. Mas ignoram-se as conseqüências das doses que não matam, mas podem alterar o comportamento das abelhas.

A equipe de Malaspina em Rio Claro, em associação com pesquisadores do Quênia e da Holanda, está realizando estudos para verificar o efeito de doses subletais de neonicotinoides e outros inseticidas nas abelhas, principalmente das espécies nativas ou meliponídeas, conhecidas como abelhas sem ferrão, que são menos estudadas.
Sob coordenação da FAO, os três grupos pretendem também padronizar as metodologias de avaliação, tanto das abelhas nativas, como da Apis mellifera para que os resultados dos estudos possam ser comparados.

“As abelhas nativas, como jataí, irapuá, uruçu, sofrem muito com a destruição do ambiente, sem opções de locais para fazer seus ninhos”, afirma o pós-doutorando Andrigo Pereira, especialista em comportamento desses insetos e participante do projeto. Ele cita a importância dessas espécies para a preservação das plantas, dando como exemplo a mamangaba. Apesar de produzir pouco mel, ela é fundamental na polinização de mais de 60 espécies de plantas, entre elas o maracujá, e teve o número de indivíduos diminuído significativamente no sul do Brasil.

Ação no cérebro

Segundo a bióloga Roberta Nocelli, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), associada ao grupo de Rio Claro, o Ministério da Agricultura considera a toxicidade dos inseticidas para as abelhas melíferas, mas não há estudos para outras espécies. “Acreditamos que as meliponídeas têm mais dificuldade para degradar esses produtos e por isso são mais sensíveis”, afirma.

Para testar essa hipótese, os pesquisadores da Unesp estão realizando estudos morfológicos e comportamentais em laboratório, com aplicação de diferentes doses de produtos que agem no sistema nervoso das abelhas, entre eles os neonicotinoides.

No cérebro, essa classe de inseticida tem ação semelhante à da nicotina. Ambos estimulam um receptor cerebral que normalmente é ativado pelo neurotransmissor acetilcolina, tanto em seres humanos como em insetos. Acontece que, diferentemente da nicotina e da acetilcolina, os neonicotinoides ligam-se a esse receptor (chamado colinérgico) de forma irreversível, provocando uma superestimulação neuronal. Como a afinidade entre os receptores colinérgicos e os neonicotinoides é muito maior em insetos do que em humanos, o produto é muito mais tóxico para os primeiros que para os últimos.

O objetivo dos pesquisadores é estabelecer a dose letal destes inseticidas e a partir daí verificar também seus efeitos não mortais em abelhas sem ferrão e melíferas. “Verificamos a ação no sistema nervoso e também no sistema digestivo, nesse caso quando as abelhas ingerem o produto”, explica a pós-doutoranda Thaisa Roat. Ela analisa os danos morfológicos que comprometem a estrutura do cérebro responsável por visão, olfato e processamento de informações das abelhas e podem explicar a desorientação em campo. O mesmo é feito na fase de larva. “As doses de inseticida podem acelerar ou inibir a metamorfose das abelhas”, diz.

Os dados morfológicos são comparados com aqueles obtidos em estudos comportamentais, que avaliam, por exemplo, o reflexo da língua para alcançar o alimento e a atividade motora. “Tentamos avaliar a dose mínima que começa a alterar o sistema cognitivo das abelhas”, explica o colega Andrigo Pereira.

A suspeita de que os neonicotinoides podem causar mortandade em abelhas em curto ou longo prazo é antiga. Em 2004, parte dessas substâncias foi proibida na França, na Alemanha e na Itália. Nos Estados Unidos, no entanto, uma petição pedindo a suspensão desses produtos, assinada por 25 organizações ambientais e de apicultores, foi rejeitada este ano pela Agência de Proteção Ambiental (EPA, em inglês), sob a alegação de que são necessários mais dados sobre o assunto.

Isso não quer dizer que os americanos não estão preocupados com o sumiço das abelhas, muito pelo contrário. Lá foi cunhada, em 2007, a expressão CCD, que em português significa “distúrbio de colapso das colônias”, para se referir ao desaparecimento repentino e sem causa aparente de um grande número desses insetos. Algumas possíveis explicações já foram apontadas, como o surgimento de vírus, problemas de variabilidade genética, falta de alimentos adequados, intensidade no manejo das colmeias e uso intensivo dos inseticidas. Mas nada ficou comprovado.

No Brasil, o problema também foi diagnosticado em vários Estados, principalmente na Região Sul. Os dados não são conclusivos e por isso mesmo pesquisadores como Malaspina preferem não usar o termo CCD para se referir ao desaparecimento desses insetos. A dificuldade maior é comprovar a causa da morte, uma vez que os apicultores não sabem como encaminhar as amostras para os laboratórios. Malaspina sugere que seja feita uma documentação fotográfica das colmeias e que os apicultores registrem boletim de ocorrência caso queiram entrar na Justiça, quando acreditarem que a causa pode ser a aplicação de inseticida.

Para entender melhor o fenômeno e a importância dos insetos polinizadores para a agricultura no Brasil, pesquisadores de 36 instituições científicas, entre os quais o grupo da Unesp de Rio Claro, apoiados pelo CNPq e pelo Fundo Setorial do Agronegócio, acabaram de lançar o livro Polinizadores no Brasil – contribuição e perspectivas para a biodiversidade, uso sustentável, conservação e serviços ambientais. O livro é o primeiro documento em português que aborda o conhecimento sobre polinizadores tanto em áreas naturais como em agroecossistemas.

Segundo os pesquisadores, a perda dos insetos se agrava no país com a derrubada das florestas e as queimadas, que afetam o desenvolvimento das colônias de abelhas nativas, muitas delas ainda desconhecidas e não adaptadas ao manejo. A extinção dessas abelhas pode causar um problema ecológico de grandes proporções, uma vez que são responsáveis pela polinização de parte das plantas nativas de diferentes biomas.