“O Haiti não precisa da Minustah, precisa de solidariedade!”

 

 

Por Joana Tavares
Do Portal Minas Livre

 

Jean-Jacques Dessalines foi um ex-escravo que participou ativamente do processo de independência haitiana, em 1804, a primeira da América Latina. Além da declaração de independência em relação à França, o país rompeu com a escravidão, com a concentração da terra e lançou as bases para a construção de um Estado nacional.

 

 

Por Joana Tavares
Do Portal Minas Livre

 

Jean-Jacques Dessalines foi um ex-escravo que participou ativamente do processo de independência haitiana, em 1804, a primeira da América Latina. Além da declaração de independência em relação à França, o país rompeu com a escravidão, com a concentração da terra e lançou as bases para a construção de um Estado nacional.

No século 20 e 21, no entanto, forças externas voltaram a ameaçar a soberania do país, que passou a ser ocupado por tropas de segurança de vários países – a Minustah, coordenada pelo Brasil – e enfrenta problemas para garantir sua soberania política.

Essencialmente camponês, o país também tem dificuldades de sustentar sua soberania alimentar, além de ter seus cidadãos explorados por projetos de zonas francas, pouco desenvolvimento da infraestrutura e educação. Em janeiro deste ano, completaram-se três anos do terremoto que desabrigou milhares de famílias, e muitas delas ainda vivem em assentamentos precários.

Flávio Barbosa, integrante da Brigada Internacionalista da Via Campesina Dessalines no Haiti, fala nessa entrevista sobre a situação do país, a atuação da Brigada, os projetos de exploração e os de solidariedade.

Qual a atuação da Brigada Dessalines no Haiti?

A Brigada é um projeto de solidariedade e internacionalismo entre os movimentos campesinos no Brasil com as organizações camponesas no Haiti. Os preparativos para a atuação da Brigada começaram quando o governo brasileiro enviou as tropas militares para o país. Naquele momento, nós da Via Campesina Internacional avaliamos que deveria haver outra forma de solidariedade que não fosse estritamente essa dos governos, para procurar estabilizar a sociedade haitiana.

Nos movimentos sociais campesinos fomos dialogando desde 2004, mas o plano só foi efetivar em 2009, quando a Via Campesina Brasil enviou quatro militantes para uma visita de conhecimento e para articular uma estrutura para que fosse uma quantidade maior de pessoas, que pudessem colaborar com a solidariedade tanto política como também técnica, de intercâmbio de práticas de agroecologia, de vivência em vários segmentos. Em 2010, se fixa a Brigada Dessalines no Haiti.

No primeiro momento, havia 10 integrantes, mas com o terremoto de 2010, houve uma solidariedade muito grande, e foram enviados 30 delegados do Brasil para fazer a atuação no país. Nesse ano, a atuação foi mais emergencial, foram instaladas duas mil cisternas de plástico, pré-montadas, nas comunidades camponesas, para garantir água potável. A partir daí, foi estruturado um plano em várias áreas técnicas, envolvendo a questão do reflorestamento e meio ambiente – o Haiti é um país que tem apenas de 3 a 4% de cobertura vegetal nativa – é um país montanhoso, e a principal fonte de renda dos camponeses é o comércio do carvão.

Então a gente atua com um programa de produção de mudas de plantas frutíferas, incluindo as de espécie lenhosas, para que os camponeses possam gerar renda para a família. Uma outra ação da Brigada é na questão da reprodução de sementes, na construção de casas de sementes, etc. Um exemplo enfático da importância dessa ação aconteceu em 2010, quando a Monsanto, multinacional inimiga da agricultura camponesa, ofereceu como doação de 60 toneladas de milho, supomos que geneticamente modificado. Houve uma grande movimentação dos movimentos campesinos e um ato que juntou mais de 10 mil pessoas, em que eles disseram ‘não’ a essa empresa, a esse tipo de ajuda.

Temos atuado também na área de formação, de capacitação política, de metodologia, no sentido de fortalecer os movimentos e a Via Campesina haitiana. Temos também uma atividade de intercâmbio, junto à juventude camponesa. No ano de 2010 e 2011, o Brasil recebeu 78 jovens que passaram um ano, estudaram português e fizeram cursos técnicos de agroecologia, conheceram agroindústrias. Desenvolvemos também iniciativas de alfabetização, de jovens e adultos, pois a realidade da educação é bem precária no Haiti, faltam até cadeiras para os alunos estudarem nas escolas públicas.

Até quando a Brigada pretende ficar no país?

Não há o estabelecimento de prazos, o que há é a ideia de estruturar um programa, principalmente de formação técnica. No Haiti a principal carreira profissional é a agronomia, devido à insegurança alimentar por que o país passa, e os agrônomos não põem o pé na terra, são agrônomos de escritório.

Então a Via Campesina tem um plano de contribuir com a formação técnica em agroecologia lá. Para ter uma ideia, 65% da economia haitiana vem dos serviços da agricultura. E há um destaque grande para o trabalho das mulheres, que conduzem a economia nas cabeças, nos cestos, nos sacos.

Como estão as famílias atingidas pelo terremoto de 2010?

O terremoto de janeiro de 2010 teve um impacto sobre a capital, com mais força. No interior houve algumas rachaduras, algumas casas caíram, mas foram na capital os danos maiores. E nossa ação é muito voltada para os camponeses. Mas passados esses três anos, o que vemos: na capital, ainda continua o drama, muitas famílias continuam desabrigadas. Tem cerca de 500 mil residindo em 498 acampamentos, nas áreas de vazio da capital.

Até 2012, havia muitos acampamentos nas praças públicas, mas o Estado e a polícia promoveram ações de expulsar essas famílias dos espaços públicos, dando auxílios-moradia para que elas voltassem para o interior. Teve também famílias que foram expulsas na marra, com violência, em ações clandestinas. No interior, houve então um problema, porque essas famílias que saíram dos acampamentos – no máximo com R$ 500 dólares de indenização – não têm como se sustentar.

E houve problema de abastecimento, porque não houve um bom inverno. Para completar, ainda teve os ciclones, que causaram prejuízo às plantações. Então o Haiti hoje passa por um processo de grande turbulência, comenta-se que vão morrer muitos camponeses de fome, devido à insegurança alimentar. Os preços dos alimentos têm aumentado muito, então há uma crise iminente no país. A própria FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura] já fez um alerta à comunidade internacional, dizendo que se apresenta uma crise alimentar no Haiti, com danos superiores à crise de 2008.

Com indenizações tão pequenas, com tantas famílias ainda desabrigadas e morando em assentamentos precários, para onde foram os recursos arrecadados pela ajuda internacional mobilizada após o terremoto?

As organizações sociais haitianas produzem a análise de que boa parte desse recurso foi destinado para um grande projeto de reconstrução do país, que inclui a construção de moradias – nesse quesito, os números são muito pequenos – reconstruir estradas, projetos de geração de emprego.

Para isso, foi criado um projeto coordenado pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que é a instalação de zonas francas. São áreas industriais em que os empresários tenham liberdade para se instalar, principalmente com atividades de confecção.

Os empresários ganham muito bem com isso, pois exportam essas roupas- principalmente o jeans – para os Estados Unidos, onde não há impostos pra isso, e pagam super mal aos trabalhadores, em torno de 25 dólares por semana. Há muitas críticas a essas zonas francas, pois as famílias se deslocaram para essas regiões em busca de trabalho, mas não há estrutura de saúde, de moradia e de educação.

Como os movimentos organizados no Haiti vêem as tropas da Minustah e a participação do Brasil?

No início dos anos 2000, o Haiti não tinha uma força própria de segurança nacional para atuar em situações extremas, pois o Exército havia sido destituído. Até 2004, havia uma crise enorme de segurança pública, com atuação de grupos armados, e o Estado não tinha como responder. A leitura que os movimentos fazem é que nesse período foi necessária essa atuação externa do ponto de vista militar, para recolher as armas e garantir a estabilidade e a segurança interna. Mas avaliam que essa força militar teve uma função até no máximo 2006.

Depois disso, essas armas foram recolhidas, baixaram os índices de criminalidade, e a atuação da Minustah tem sido em prol de proteger a iniciativa privada, que vem se instalando no país, e para criminalizar as lideranças de movimentos sociais. Todas as manifestações do país são muito reprimidas, com gás lacrimogêneo e tudo. A avaliação atual é que é desnecessária a presença dos militares, que eles atrapalham a autonomia e a independência do país.

A Minustah é vista hoje como uma opressão externa, de países irmãos, coordenada pelo Brasil, em uma jogada do governo brasileiro para ter um assento no conselho de segurança da ONU. Como os Estados Unidos já estão muito queimados no Haiti, por vários processos de intervenção, o Brasil foi fazer esse papel sujo dos EUA. Mas até que os soldados brasileiros são aceitas porque na relação Brasil-Haiti há um sentimento muito emotivo, que envolve o futebol. Eles sabem tudo dos jogadores do Brasil.

E como vocês vêm a migração para o Brasil?

Os haitianos buscam saídas para o externo, pois são um país de 10 milhões de pessoas em um território pequeno. Estima-se que haja mais de 1,5 milhões de haitianos vivendo nos EUA, garantindo parte da economia do país, através da remessa de dinheiro. Como os EUA têm sido muito restritos à entrada de estrangeiros, o Brasil se tornou uma referência. Eles vêm na expectativa de conquistar trabalho e renda.

Como vem sendo a solidariedade da sociedade civil brasileira e mineira ao Haiti?

No ano de 2010, com toda a comoção criada com o terremoto, a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] promoveu uma campanha para ajudar as vítimas. Em Minas Gerais, a Igreja teve um destaque, pois atuou, além da arrecadação de fundos da campanha nacional, em um projeto específico, chamando “Projeto BH”. Esse projeto foi destinado a promover a agricultura camponesa no Haiti, em parceira com o movimento nacional de pequenos camponeses cabeças unidas, chamando “TetKole”.

Foram R$ 550 mil reais destinados a iniciativas de captação de água e produção de alimentos. Hoje há mais de 1.200 famílias que recebem água potável, após a construção de uma estrutura de captação das montanhas, que também vão para a produção. Foi construído também um centro do movimento, para a experimentação de técnicas agrícolas, que depois são reproduzidas pelas unidades familiares