Constituição e PMDB seguram Reforma Agrária


Por André Barrocal
Da Carta Capital

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) é o principal sindicato dos fazendeiros. Desde 2008 está sob o comando da senadora Kátia Abreu, do Tocantins. Na quinta-feira 3, dois dias antes do prazo final para quem quer disputar eleição em 2014, Kátia trocou de partido. Deixou o PSD e agora pertence ao PMDB, do vice-presidente da República, dos presidentes da Câmara e do Senado e do ministro da Agricultura.


Por André Barrocal
Da Carta Capital

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) é o principal sindicato dos fazendeiros. Desde 2008 está sob o comando da senadora Kátia Abreu, do Tocantins. Na quinta-feira 3, dois dias antes do prazo final para quem quer disputar eleição em 2014, Kátia trocou de partido. Deixou o PSD e agora pertence ao PMDB, do vice-presidente da República, dos presidentes da Câmara e do Senado e do ministro da Agricultura.

A mudança de ares da senadora coincide com as bodas de prata da atual Constituição. Os 25 anos completam-se neste sábado 5. Na promulgação, foi batizada de “cidadã”, graças a inéditos avanços sociais, como o voto dos analfabetos e a saúde pública gratuita para todos. Há um tema, no entanto, em que faltou cidadania: a reforma agrária. E o motivo pode ser entendido no recente casamento de Kátia Abreu com o PMDB.

A Constituição foi um atraso para os sem-terra – e portanto uma vitória para os fazendeiros – ao consagrar uma visão mercadológica sobre o assunto e estabelecer um procedimento engessado que dificulta e protela a reforma. Adotou inclusive dispostivos que a ditadura militar havia abandonado.

O texto proíbe, por exemplo, desapropriar imóveis produtivos. Não importa se a exploração da área beneficia só uma pessoa diretamente, o dono. O Estado não poder invocar a democratização da terra para justificar uma desapropriação em favor de um grupo maior de agricultores e suas famílias.

A indenização tem de ser paga pelo governo de forma “prévia” e a preço “justo”. A parte que se refere a prédios e estradas construídos na fazenda tem de ser liquidada em dinheiro. O decreto de desapropriação assinado pelo presidente da República não garante a posse imediata do terreno aos beneficiários. Tem de ser examinado pela Justiça, a quem cabe a palavra final.

Pagar de forma prévia, justa e em espécie torna a reforma agrária cara e lenta, pois o governo não tem verba sobrando. Instituídas na Constituição de 1946, as três regras foram extintas pelo regime militar, que, entre outras razões golpistas, derrubou o presidente João Goulart por reformas que ele planejava fazer, como a agrária. Em 1964, o ditador Castelo Branco resolveu pagar desapropriação com título público. Em 1969, Costa e Silva decidiu parcelar e fixar um limite: o valor declarado pelo dono na hora de pagar imposto, menor do que o valor de mercado.

“Com tal equipamento jurídico-constitucional”, escreveu José Gomes da Silva, ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, “estava portanto o Executivo devidamente aparelhado para desencadear uma mudança na estrutura agrária brasileira, pendente apenas da indispensável decisão, vontade e ação política”.

A reflexão faz parte do livro Buraco Negro – A Reforma Agrária na Constituinte, que o já falecido engenheiro agrônomo publicou em 1989. É um relato de como a aliança entre conservadores e fazendeiros derrotou os progressistas e pariu a Constituição nada cidadã para os sem-terra.

Os trabalhadores rurais e seus aliados tentaram – e fracassaram – impedir que a Carta privilegiasse a visão econômica. Entre outras coisas, propunham indenizações parceladas. Que estas não seguissem valores de mercado, pois uma desapropriação deveria ser vista como punição ao dono. Que a posse pelo beneficiário fosse automática, sem decisão prévia da Justiça, um poder que ajuda a protelar e encarecer a desapropriação. E que propriedade produtiva não fosse blindada.

A blindagem foi um dos momentos mais dramáticos da Assembléia Nacional Constituinte, na opinião de Gomes da Silva, pai do atual diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), José Graziano da Silva. Por uma margem apertada, os progressistas ganharam a votação que permitiria atingir imóveis produtivos: 267 a 253. Mas não levaram. Precisavam de 280 votos. “Estava sepultada a reforma agrária no Brasil”, escreveu Gomes da Silva.

A votação mínima para aprovar uma proposta não fazia parte das regras originais da Constituinte. Surgiu depois. É obra do que ficou conhecido como Centrão. O bloco juntou parlamentares aliados da ditadura, filiados sobretudo a PDS e PFL, com parte do PMDB, que em tese era progressista mas também tinha seus conservadores. O objetivo era segurar os progressistas, que tinham mostrado força no início da Assembléia.

Graças à manobra do Centrão, o primeiro texto de reforma agrária foi votado em plenário sem que nenhum dos dois lados (conservadores e progressistas) conseguisse 280 votos para bater o outro. Foi o único caso em toda a Constituinte, o que revela como o assunto era polêmico. O projeto caiu em um “buraco negro” – daí o nome do livro de Gomes da Silva –, exigindo concessões de parte a parte, para ser aprovado.

A artimanha do Centrão – juntar parlamentares governistas e oposicionistas para fazer valer seus interesses individuais em Brasília – extrapolou a Constituinte. Vem se reproduzindo até hoje no que o filósofo e cientista político Marcos Nobre chama de “peemedebismo” no livro Imobilismo em Movimento, lançado nesta sexta-feira 4.

O PMDB, diz Nobre, representa uma massa de políticos que cuida dos próprios negócios, sem um projeto para o Brasil. Foi assim sob FHC e Lula, e é assim com Dilma Rousseff. É conservador e faz de tudo para segurar avanços sociais, como a reforma agrária. O lugar perfeito para a líder ruralista Kátia Abreu. “A ideia da reforma agrária, do ponto de vista histórico, acabou”, escreveu ela em um artigo publicado em fevereiro.

Não é o que pensa o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que lamenta que Dilma pareça concordar com a senadora. A gestão Dilma tem o pior desempenho na reforma agrária em duas décadas. A presidenta assinou só 80 decretos desapropriações, nenhum em 2013. No segundo mandato de Lula, a média anual foi de 127.

Um dos motivos usados pelo governo para justificar a lentidão é o preço alto da terra. De 2001 a 2011, o valor do hactare subiu de 443 reais para 1.967 reais. Se a Constituição não privilegiasse o a visão mercadológica, a situação talvez fosse outra. Com Kátia Abreu e o domínio do Congresso Nacional pelo peemedebismo, não há solução à vista.