Um ano após a dramática carta dos Guarani Kaiowá nada mudou

Ruy Sposati
Do Cimi

Mais de um ano depois da dramática carta da aldeia-acampamento Pyelito Kue, na fronteira do Mato Grosso do sul com o Paraguai, os Guarani Kaiowá lançam novo documento denunciando a sistemática omissão do governo federal na demarcação das terras indígenas do Mato Grosso do Sul.

“Nós queremos que eles [governo brasileiro] cumpram a sua palavra. Eles falam que vão fazer. Nós já ficamos esperando. E eles não estão cumprindo, não estão chegando e não vem para demarcar a nossa terra”, afirma o novo documento.

Frente às declarações públicas de fazendeiros sobre financiamento de seguranças privados para reagir às retomadas indígenas, os Kaiowá de Pyelito Kue afirmam que não desistirão da luta pela demarcação de Pyelito, e que não esperarão mais “de braços cruzados”, afirma a comunidade na nova carta. “Nós gritamos que esgotou a nossa paciência (…). Imediatamente precisamos ocupar de volta nosso tekoha”.

Os indígenas exigem a presença da Força Nacional e da Polícia Federal para garantir sua segurança, mas concluem: “se houver algum pedido de liminar ou reintegração de posse, já vamos deixar bem claro que a guerra será declaratoriamente (sic)”.

Nada mudou

Dois anos após a retomada de 1 hectare de seu território tradicional, pouca coisa mudou na vida da comunidade. Continuam sem escola, sem saúde e sem terra para plantar, confinados entre fazendas de gado, debaixo de barracos de lona.

Em 8 de janeiro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) aprovou as conclusões dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Iguatemipegua I, que abrange os Tekohá – terras tradicionais – Mbarakay e Pyelito Kue, reconhecendo como de ocupação tradicional do povo Guarani Kaiowá uma área de 41,5 mil hectares.

Logo após a publicação do relatório, a comunidade se posicionava: a aprovação deste havia sido uma vitória de sua luta – e, no entanto, ainda viviam sob os mesmos 1 hectare de terra. À luz de quase um ano de publicação do relatório de identificação da área, a resposta governamental manteve os ares de pirofagia política, em detrimento de uma ação efetiva que solucionasse os conflitos e fizesse valer a Constituição Federal.

Primeira carta

Escrita à mão em 8 de outubro de 2012 por um jovem estudante Kaiowá – numa folha pautada e em português, após uma longa conversa entre os membros da comunidade – o documento questionava uma decisão judicial de reintegração de posse que retiraria os indígenas daquele um hectare de terra, retomado há quase um ano pelas famílias de Pyelito.

A carta foi entregue, na manhã do dia 8, a membros do Conselho do Aty Guasu, organização política dos indígenas Guarani e Kaiowá, num trecho da estrada vicinal que leva ao acampamento. Não havia sido possível aos indígenas chegarem à aldeia, em função de um bloqueio dos proprietários e arrendatários da fazenda que incidem sobre o território reivindicado pelos indígenas. À tarde, o Aty Guasu publica em seu perfil do Facebook a carta que sacudiria o Brasil e o mundo e reposicionaria os Guarani Kaiowá e o universo indígena na pauta do dia da imprensa, do governo e da sociedade.

Mobilização

O documento provou o poder de mobilização social dos indígenas e a solidariedade geral da sociedade envolvente. Milhares de pessoas saíram às ruas, no Brasil e no mundo, em defesa da demarcação dos territórios tradicionais dos Kaiowá e Guarani; centenas de cartas foram escritas ao governo. Parlamentares, intelecutais e ativistas, muitos deles pelas primeira vez, travaram contato com a luta dos indígenas do Mato Grosso do Sul.

Apesar do apoio e reconhecimento alcançados pelos Kaiowá, o cotidiano da comunidade permaneceu bastante violento. Menos de um mês depois do lançamento da carta, uma indígena de Pyelito Kue foi estuprada por oito pistoleiros, que a amordaçaram e apontaram uma faca em seu pescoço, enquanto a violentavam. Um sem-número de intimidações e ataques à comunidade foram relatados pelos indígenas às autoridades. Em abril, um fazendeiro cuja propriedade incide sobre Pyelito entrou com um pedido de interdito proibitório da Justiça Federal de Naviraí.

Leilão

Fazendeiros do Mato Grosso do Sul irão leiloar “de galinha a vaca OP [gado de Origem Pura]” para financiar a luta contra indígenas. Organizado por associações de criadores de gado e produtores rurais do estado, os recursos arrecadados no chamado “Leilão da Resistência”, anunciado para o dia 7 de dezembro, serão destinados a ações de combate às ocupações de terras por indígenas no estado.

Indígenas e organizações sociais lançaram uma carta aberta à presidenta Dilma Rousseff exigindo uma intervenção federal no Mato Grosso do Sul, acusando proprietários rurais de estarem “organizando força paramilitar para atentar contra a vida de coletividades e contra o Estado de direito no Brasil”.