Novas raízes da terra são formadas em saúde do campo

Viviane Tavares
Da EPSJV/Fiocruz

O nome da turma de formandos já anunciava o compromisso selado: ‘Raízes da Terra’ foi o nome escolhido pela turma de técnicos em meio ambiente com ênfase em saúde ambiental das populações do campo, que reuniu 34 representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), da Articulação Antinuclear (AAN), do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do Movimento 21 (M21) e do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais dos estados de Alagoas, Sergipe, Piauí, Ceará, Bahia e Pernambuco. A formatura aconteceu no dia 25 de novembro, na Escola Estadual do Campo João dos Santos de Oliveira, na Comunidade de Quieto, no Assentamento 25 de maio, em Madalena (CE).

O curso foi uma parceria entre a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), o Núcleo Tramas da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (Sgtes) e o Ministério da Saúde, por meio da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta – portaria GM 2.866, de 2 de dezembro de 2011. A formação teve como objetivo principal formar trabalhadores rurais para a identificação e o enfrentamento dos principais determinantes sociais da saúde das populações do campo, fortalecendo a luta dos movimentos sociais camponeses na construção de ambientes saudáveis e sustentáveis, com ênfase nos problemas de saúde ambiental de seus territórios.

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Com duração de um ano e meio e carga horária de 960 horas, as aulas foram baseadas na pedagogia da alternância – divididas em tempo escola, com aulas presenciais, e tempo comunidade, com trabalho de campo para estudo e pesquisa nos territórios de origem dos educandos, além de estágio supervisionado. O curso vem sendo planejado desde 2011 por meio de reuniões e oficinas e, ao longo de 2012 e 2013, foram realizadas as aulas. Para um dos integrantes da Coordenação Político-Pedagógica (CPP) e professor do curso, Marcelo Ferreira, foram levantadas várias questões durante a etapa de planejamento, mas, somente na prática, o curso foi se moldando ao modelo apresentado. “Somente no momento da imersão da primeira etapa pudemos entender a dinâmica para trabalhar nela. A questão da metodologia do MST, que é a pedagogia da alternância, para nós foi uma novidade, com a distribuição dos tempos, na qual o tempo aula era apenas um dos tempos educativos, levando em conta também o tempo trabalho, reflexão e cuidado que integram o processo de formação”, explicou Marcelo, que integra o Núcleo Tramas da UFC.

A integrante da CCP e do Núcleo de Saúde do MST, Rosângela Pereira, explicou que a preocupação de formação técnica em saúde e política sempre foi uma preocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. “É importante interligar a prática com a teoria. E isso a gente consegue na educação no campo, quando os educandos vão aplicar o conhecimento adquirido no seu território. Além disso, esse contato com a sua comunidade também é de aprendizado: assim eles sabem o que de fato a comunidade necessita. É uma troca de saberes muito importante para a construção desse conhecimento que é coletivo”, explicou Rosângela.

Formatura

A primeira atividade no dia da formatura, 25 de novembro, foi a apresentação de trabalhos dos educandos escolhidos pela turma: Laureana Santos, Pedro Higo Felipe Feijão, Antônio Francisco Almeida e Maria dos Anjos Nunes (D. Maria da Ilha)- cada um representando diferentes movimentos – expuseram seus Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), que apresentavam seus territórios, as potencialidades e desafios descobertos ao longo do curso.

“O território educa. O curso foi um esforço enorme para os educandos não só pela distância como também pelos estudos. Mas é muito bom saber que teremos em diversos territórios técnicos como os que estamos formando nesse curso, que poderão defender seus territórios e enfrentar com conhecimentos técnicos e políticos aqueles que vierem a causar danos a suas comunidades. Além disso, é importante ressaltar que este curso foi a efetivação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Hoje, temos 33 milhões de pessoas que vivem no campo e na floresta e formamos 34 técnicos. A vitória é grande, mas ainda é pouco diante dessa realidade”, refletiu o professor-pesquisador da EPSJV, Alexandre Pessoa, após a apresentação dos trabalhos.

A cerimônia de formatura começou na parte da tarde e a educanda Ana Maria Horta foi a oradora da turma. Durante seu discurso, ela afirmou estar preparada para enfrentar os desafios de seus territórios. “Estamos prontos para intervir e melhorar a saúde do campo, melhorar nosso território em geral. Somos 34 técnicos e vamos dar qualidade de vida aos nossos territórios. A gente sabe o desafio que cada um enfrentou para chegar até aqui, deixando nossas casas, nossas famílias, nossos trabalhos, mas isso se fez necessário para mostrarmos que filhos de assentados e assentadas também têm o direito à educação de qualidade. Não dá para separar o aspecto técnico do político e político do técnico”, discursou e completou: “Queríamos agradecer à coordenação, que pensou muito bem na dinâmica do curso, à escola João Sem Terra, que nos acolheu, e ao assentamento, que sempre nos recebeu tão bem”, saudou Ana Maria.

A cerimônia contou ainda com a participação do Grupo Teatral do MST do Ceará, que apresentou a proteção da Terra como essencial à vida de todas as pessoas. Familiares e amigos dos 34 educandos participaram da formatura, além do prefeito de Madalena, Zarlul Kalil, da representante do MST, Antonia Ivoneide, do coordenador do Assentamento 25 de maio, Seu Joaquim, da diretora da Escola Estadual do Campo João dos Santos de Oliveira, Sandra Vitor, dos coordenadores do curso, Alexandre Pessoa (EPSJV) e Lara Braga (Núcleo Tramas da UFC), e da vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da EPSJV, Marcela Pronko.

“Quem não vivenciou o dia a dia com vocês não tem ideia do que foi esse curso. Pelo que vi aqui neste dia da formatura pude perceber que valeu a pena. O curso de técnico em meio ambiente retoma o espírito e o caminho da Reforma Sanitária. A EPSJV nasceu nesse contexto, para formar trabalhadores da saúde a fim de fortalecer a Reforma. A Escola preza uma formação integrale, apesar dos anos, vemos aqui que conseguimos manter o espírito da politecnia, que está em nosso nome. A EPSJV apoia a saúde pública e universal e luta por outra realidade”, discursou Marcela Pronko.

“Quantos caminhos um homem e uma mulher sem-terra têm que andar? São muitos. Muitas lutas, muitas discussões, muitas ocupações. Quanto tempo têm que esperar? Se for esperar, vai ser a vida inteira. O que vamos conseguir tem que ser conquistado, assim como esse curso foi”, disse a representante do MST, Antonia Ivoneide, em discurso aos formandos.

Na cerimônia, os formandos também receberam uma homenagem da turma Josué de Castro, do Paraná, que se formará na próxima semana, dias 11 e 12 de dezembro.

Experiências em sala e nos territórios

De acordo com um dos coordenadores da formação, André Burigo (EPSJV), o curso foi além da grade curricular exigida pelo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos do Meio Ambiente. Por fazer parte do eixo de ambiente, saúde e segurança, abordou o conceito de saúde, principalmente de saúde no campo e na floresta, de maneira mais ampla. O curso foi estruturado em três eixos transversais – Ontem e hoje, nossa terra: o território na América Latina; Das ameaças à promoção da vida; e Produzindo e sistematizando conhecimento, saberes e práticas para a promoção de territórios saudáveis. Os eixos são compostos por quatro unidades de aprendizagem: Planejamento, Produção de ambientes saudáveis; Política, trabalho, ciência e cultura; e Trabalho de campo e estágio.

“Essa atividade foi muito rica devido às diversas experiências proporcionadas. A etapa de estágio fez com que os envolvidos no curso pudessem refletir, por exemplo, se o Sistema Único de Saúde (SUS) está atendendo à saúde do campo. Eles também puderam ver a realidade da cidade e olhar para seus territórios com outra visão”, observou o professor André Burigo, que completou: “Tivemos ainda uma caravana ecológica na chapada do Apodi e no Assentamento Maceió, qua apresentam realidades diferentes”.

Na etapa do Nordeste, os alunos puderam participar de estágios por meio do programa VER-SUS/Brasil – um projeto do Ministério da Saúde em conjunto com as entidades estudantis dos cursos da área da saúde e as secretarias municipais de saúde, com o objetivo de oferecer aos estudantes vivências e estágios em diferentes unidades de saúde do SUS. É a primeira vez que uma turma de ensino médio participa desse programa. Além dessa experiência, os educandos puderam ainda vivenciar o campo, por meio do estágio em parceria com a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater).

A integrante do Coletivo de Saúde do MST e uma das coordenadoras do curso, Gislei Siqueira, considera a etapa de estágio um exercício prévio da atuação profissional e que tanto a fase do VER-SUS quanto do Pronater puderam mostrar áreas onde esses formandos podem atuar. “Por mais que a gente tenha trabalhado na perspectiva do sistema de saúde urbano, o sentido foi de construção de um sistema de saúde no campo. Em 2011, foi aprovada a política, mas temos um distanciamento muito grande entre o que foi aprovado e a forma de execução nos municípios. Então, a experiência dos alunos no VER-SUS de conhecer o sistema público de saúde, fazendo uma leitura de seu funcionamento no urbano e entendendo suas demandas no campo possibilitou que eles se apropriassem de ferramentas que no futuro ajudarão na construção do Sistema Único de Saúde no campo”, explicou Gislei.

Próximos passos

Um dos grandes desafios mencionados pelos educandos foi a retenção dos filhos e filhas de assentados em seus territórios. A partir de agora, a turma Raízes da Terra criará raízes por todo o Nordeste com o intuito de atuar como técnicos em meio ambiente em seus territórios. Entre os outros desafios indicados nos TCCs estão o uso de agrotóxicos, a poluição das águas e a falta de um sistema único de saúde para o campo.

Reforços do modo de vida dos povos tradicionais, cuidar do seu ambiente, manter a sua cultura, cultivo no quintal e se alimentar do que se planta também foram lembrados por Auderice Rodrigues- uma das colaboradoras do curso e funcionária da Escola Estadual do Campo João dos Santos de Oliveira- como expectativas para o trabalho dos novos técnicos. “Precisamos de parceiros como esses para ajudar nas nossas lutas. Para nós é muito importante esse tipo de formação. Já estamos vendo a diferença desses educandos em relação aos seus territórios. Tínhamos um diagnóstico e agora temos outro com o trabalho dos alunos”, afirmou. E completou: “Não queremos formar nossos filhos para trabalhar com o agronegócio ou para as grandes empresas; queremos formar nossos filhos para trabalharem com a gente, para ajudarem a tocar a nossa realidade. Queremos que nossos filhos possam ter a oportunidade de crescer dentro dos assentamentos também”, ressaltou Auderice.

O trabalhador da Escola Estadual do Campo João dos Santos de Oliveira e um dos colaboradores do curso, Rosivaldo dos Santos, disse que esse tipo de curso, do qual ele também gostaria de ter participado como educando, vem trazer novas perspectivas para os assentamentos e para o enfrentamento do agronegócio. “Após esse curso, baseado em diversos trabalhos que fizemos ao longo dele, os alunos passaram a querer aderir mais à luta dos diversos movimentos e muitos estão sentindo isso no sangue, já não é mais na pele. Sempre falamos que queremos um técnico que esteja atento às mazelas provocadas pelo capital”, disse Rosivaldo, que completou: “Quem sabe no próximo congresso nacional do MST, que acontece em 2014, poderemos propor mais escolas do campo e mais cursos como esse, para que formemos trabalhadores e trabalhadoras que vão ajudar a combater as desigualdades e valorizar a cultura camponesa”.

O educando Pedro Higo pretende corresponder às expectativas. “Eu já tenho algumas propostas de intervenção no meu território e a primeira delas é envolver mais a minha comunidade com o MST, criar esse vínculo, porque proposta nenhuma vai adiantar se a comunidade não tiver unidade, se não fizermos um debate e uma luta coletiva”.