Para diretor do Greenpeace, modelo do agronegócio é insustentável




Por Daniela Chiaretti
Do Valor


Kumi Naidoo, ativista sul-africano que lutou pelo fim do apartheid e há cinco anos é o diretor-executivo do Greenpeace International, espera que o próximo relatório do IPCC (o braço científico das Nações Unidas), que está em discussão esta semana em Berlim, na Alemanha, "tire da letargia as negociações internacionais de clima". O sumário para tomadores de decisão do IPCC, que será divulgado domingo, versa sobre a mitigação dos gases-estufa no mundo.

 


Por Daniela Chiaretti
Do Valor


Kumi Naidoo, ativista sul-africano que lutou pelo fim do apartheid e há cinco anos é o diretor-executivo do Greenpeace International, espera que o próximo relatório do IPCC (o braço científico das Nações Unidas), que está em discussão esta semana em Berlim, na Alemanha, “tire da letargia as negociações internacionais de clima”. O sumário para tomadores de decisão do IPCC, que será divulgado domingo, versa sobre a mitigação dos gases-estufa no mundo.

 

“Vamos ser honestos: o IPCC é fundamentalmente uma organização conservadora”, disse. “Os cenários que colocam sobre a mesa não são os piores possíveis. Ou seja, qualquer coisa que o IPCC disser é preciso multiplicar por quatro para se ter um quadro genuíno das ameaças climáticas.”

 

Naidoo esteve em São Paulo há poucos dias para falar no Global Agribusiness Forum, megaevento promovido por entidades do agronegócio. Colocou sua perspectiva da mudança do clima sobre a agricultura e produziu, segundo ele, reações hostis na plateia. Disse que as grandes fazendas industriais são menos resistentes aos impactos do clima que as pequenas culturas ecológicas, que grandes terras tomadas por monoculturas e dependentes de fertilizantes e agrotóxicos não são sustentáveis e que é preciso mudanças urgentes e radicais. “A natureza está nos dando fortes sinais de que estamos correndo contra o tempo e que já ultrapassamos vários limites planetários.” 

 

O sr. faz distinção entre a produção de commodities e a de alimentos. Pode explicar?

 

O agronegócio costuma dizer ao mundo ‘somos importantes, porque somos fundamentais para a segurança alimentar’. Mas o que acontece, e no Brasil também, é que a maior parte da comida é produzida por pequenas fazendas familiares. A abordagem do setor costuma ser o da monocultura voltada ao mercado de commodities e ao consumo animal. Fomos a essa conferência para dizer que os combustíveis fósseis – e não estou falando do transporte, mas dos fertilizantes e agrotóxicos – contaminam o solo, os recursos hídricos e os oceanos. Essa forma de agricultura é disruptiva.

 

Mas, por enquanto, não é possível desistir dos combustíveis fósseis, não é?

 

Não podemos migrar para energias renováveis num piscar de olhos, há que haver uma fase de transição. Assim como a co-existência das grandes fazendas industriais com os pequenos fazendeiros ecológicos, que estão aumentando no mundo, inclusive no Brasil. O que o setor não entende é a própria vulnerabilidade, tanto ambiental como financeira. Na Europa, a consciência está aumentando em relação a essa forma de produção e na China as pessoas começam a reclamar dos pesticidas nos rios. As grandes fazendas industriais são mais vulneráveis aos impactos da mudança do clima do que as pequenas.

 

Por quê?

 

O tipo de semente usado para se ter safras mais produtivas é dependente de climas específicos e estáveis. Se o clima vira inadvertidamente, agricultores observam o tempo e buscam uma opção de cultura que se adapte, mas as grandes fazendas industriais não trabalham com diversidade de plantio. Isso não faz nem sentido econômico. Eu disse que a maioria dos nossos líderes está sofrendo de uma doença cognitiva – todos os fatos estão aí, mas estamos nos atrasando nas ações urgentes que precisamos tomar.

 

O que quer dizer?

 

Não precisamos do IPCC para nos dizer que o clima está mudando. Nos últimos dez anos foi o que todo mundo viu, tivemos 100% a mais de eventos extremos em todas as partes, secas intensas na Austrália, invernos rigorosos nos EUA. São Paulo está ficando sem água, há fortes secas no Brasil. Se não houvesse Copa do Mundo e eleições, talvez os governos fossem mais abertos com a situação atual.

 

O que o agronegócio deveria fazer?

 

É uma escolha. Os grandes atores do agronegócio têm o poder de mudar o modo de produzir e investir seriamente em uma forma ecológica. Agricultura ecológica significa produzir com diversidade. Também há que ver a questão da escala. Tudo isso exige uma mudança de mentalidade.

 

Como a plateia reagiu a esses pontos que o sr. levantou?

 

Sabíamos que seria como entrar na caverna dos leões, que seria duro. O Greenpeace foi convidado e decidimos ir, queríamos apresentar a nossa visão. Os organizadores me disseram que, a despeito do clima hostil, minha presença tinha sido importante e que o setor tem que lidar com essa perspectiva, que é preciso gerar esse debate no agronegócio.

 

E os mais jovens?

 

A audiência parecia dividida, foi muito interessante. Os mais jovens, que estão chegando ao agronegócio agora, parecem mais abertos a fazer essa transição.

“O que me surpreende no Brasil é o governo não investir em energia solar. Há tanto potencial”

 

Qual era o teor da crítica que o sr. recebeu?

 

Foram críticas duras, do tipo ‘não precisamos de estrangeiros nos dizendo o que fazer’. O que estamos dizendo é do interesse de quem quer ter a longo prazo um negócio sustentável. É o mesmo que discutimos com as grandes empresas que se engajam nas campanhas de pesca sustentável. Em 40 anos, por causa da exploração predatória, a poluição dos oceanos, a acidificação das águas, haverá mares com imensas zonas mortas. Mas há formas de pescar que não causarão zonas mortas no futuro. É preciso pensar no longo prazo, e é o mesmo com a agricultura. Esse modelo industrial é o da agricultura fácil: uma única cultura, uma grande safra. Parece muito conveniente e faz muito dinheiro no curto prazo. Nós entendemos que a economia brasileira é muito dependente das receitas agrícolas.

 

Vocês são contra o lucro?

 

O que estamos dizendo é que é preciso trabalhar com o padrão natural e ecológico de produção agrícola. Há vantagens na agricultura ecológica, como o manejo natural das pragas, por exemplo. Quando há diversos cultivos crescendo, você tem 67% mais biodiversidade. Há mais abelhas, mais insetos e os danos das pragas são mais controlados. Se você tem uma única cultura, a biodiversidade se foi e não há a proteção natural da biodiversidade, os riscos são muito maiores. A produção ecológica é mais capaz de resiliência quando há ameaças fora do padrão.

 

Essas mudanças são urgentes?

 

Se queremos ser sérios diante da mudança do clima e tomar medidas solidárias com as gerações futuras, a coisa certa a fazer é desenvolver um plano de transição agressivo da monocultura industrial e dependente de fertilizantes e agrotóxicos para uma agricultura ecológica.

 

E a resistência a abandonar os combustíveis fósseis?

 

Os lucros que as companhias de combustíveis fósseis estão fazendo hoje as tornam resistentes à realidade que está sendo apresentada pela comunidade científica, de que nosso tempo para agir está acabando. O IPCC irá provavelmente dizer que precisamos deixar entre 60% e 80% das reservas conhecidas de combustíveis fósseis sem explorar, se quisermos ter a chance de evitar mudança climática catastrófica. E mesmo se a ciência não fosse tão clara assim, a natureza está nos dando fortes sinais de que estamos correndo contra o tempo e que ultrapassamos vários limites planetários.

 

Quais limites?

 

Muitos. Chegamos a 400 ppm [partes por milhão] de concentração de carbono na atmosfera em 2013, registrou-se o menor nível de gelo marinho no verão do Ártico em 2012 e tivemos um aumento de 100% no número de eventos climáticos extremos na última década. Se olharmos para a resposta de quem está no poder, nos governos e nas empresas, infelizmente, há uma negação da urgência e as coisas continuam como sempre foram. Se esta tendência continuar, temo que a previsão feita por Paul Gilding, ex-diretor do Greenpeace, em seu livro “A Grande Ruptura”, se confirme. Ele diz que só vamos agir de acordo com o que a ciência recomenda quando estivermos completamente contra a parede e só depois de grandes impactos como os que já estamos vendo agora, em todos os continentes.

 

Como o tufão das Filipinas em 2013?

 

Nas negociações internacionais de clima todos concordaram, em Copenhague, que temos que limitar o aumento da temperatura a 2° C do período pré-industrial, quando começamos a queimar petróleo, carvão e gás até o fim do século. E onde estamos agora? A temperatura já aumentou 0,8° C e com isso já tivemos eventos extremos, como o tufão das Filipinas. Falando como um africano, a África está nesse momento pagando o pior preço dos impactos climáticos. Mas as pessoas não se dão conta.

 

Por que não?

 

Porque não se trata de eventos como os tufões, que arrasam tudo em um segundo. Seca, como a africana, é uma tragédia que vai se desenvolvendo aos poucos, silenciosamente. Não é visual até o final, quando há animais mortos e gente faminta. Em janeiro, Ban Ki Moon [secretário-geral da ONU] falou para 10 chefes de Estado e 12 ministros do ambiente. ‘Gente, nosso tempo está acabando, temos que agir’, disse. Haverá essa reunião especial em setembro, em Nova York, que ele convocou. Ban Ki Moon dizia: ‘Temos que conseguir ali erguer as chances de um acordo em 2015’.

 

Quais são suas expectativas para esse evento?

 

Em setembro, no encontro climático de Nova York? Duas coisas. Seria patético se, pelo menos, não conseguíssemos um acordo para banir a produção de HFCs, um gás estufa pior que o CO2 e que vai para refrigeradores. São pequenos volumes, mas é importante.

 

China e EUA estiveram falando sobre isso em 2013?

 

Houve conversas interessantes entre os dois, mas nada na prática. O Greenpeace pressionou para que todas as grandes empresas concordassem com o fim da produção desses gases em 2020, mas há países resistentes, como Índia e Arábia Saudita.

 

E o outro ponto?

 

É ter na COP [a conferência do clima deste ano] do Peru uma base do texto do acordo de 2015, assim teremos um ano para negociar. Se não tivermos um texto no Peru, não teremos nada para negociar em Paris [quando deve ser fechado o novo acordo climático]. No Peru, temos que ter o rascunho do acordo e aí teremos um ano para que tudo fique pronto. Se isso não acontecer, teremos chances mínimas de ter algo em Paris. Tem gente dizendo que nunca teremos um acordo em Paris. Se olharmos as posições de negociação iniciais dos países dominantes, parece que nada vai acontecer. Precisamos de uma mudança radical e urgente, e é isso que os relatórios do IPCC estão repetindo. E a consciência do público dobrou agora.

 

Cresceu?

 

Cresceu muito desde a conferência do clima de Copenhague, em 2009, principalmente entre os jovens. Fiquei empolgado no evento do agronegócio vendo que havia divisão de opiniões na plateia. Os mais jovens, que estão chegando ao setor, começam a contestar a ortodoxia das gerações anteriores.

 

E sobre o Ártico? É verdade que 25% das reservas de petróleo globais estão ali?

 

É o que dizem. Mesmo depois da prisão dos nossos ativistas na Rússia, a Gazprom está começando a extrair o petróleo no Ártico e o primeiro lote está para ser transportado. Iremos fazer campanhas para dizer que aquele petróleo é do Ártico e tentar convencer os consumidores a não comprarem. Até pelo ponto de vista de negócios há riscos. Estive no Fórum Econômico Mundial, em Davos, e havia várias discussões sobre ‘stranded carbon assets’.

 

É sobre o que vai acontecer quando as empresas que pagaram pelos direitos de explorar campos de petróleo, gás ou carvão, ficarem com ativos encalhados, quando os políticos recuarem e disserem que não se pode fazer nada com aquilo, porque o petróleo terá que ficar em terra.

 

O que espera do relatório do IPCC?

 

Espero que tire da letargia as negociações internacionais de clima. Depende de quão forte será. Vamos ser honestos: o IPCC é uma organização conservadora. Todos os governos estão envolvidos, é um processo complicado de negociação. Os cenários que eles colocam sobre a mesa não são os piores possíveis. Ou seja, qualquer coisa que o IPCC disser é preciso multiplicar por quatro para se ter um quadro genuíno das ameaças.

 

Por que o Ártico é importante para quem vive no Brasil?

 

O Ártico funciona como um ar-condicionado do planeta. Este ano, durante os eventos extremos nos Estados Unidos, em dezembro e em janeiro, pela primeira vez vi jornalistas falando do vórtex polar. As pessoas começam a entender que todo esse sistema está relacionado. Há uma possibilidade de, ainda nesta década, no verão, o Ártico ficar totalmente sem gelo. Esperemos que não, mas as piores projeções sugerem isso.

 

O sr. falou sobre isso no evento do agronegócio?

 

Sim, porque vai ter impacto no clima. O Ártico também é importante porque tem uma biodiversidade única. No Golfo do México, com um esforço enorme ainda não se conseguiu limpar todo o derramamento de petróleo, imagine se isso acontece no Ártico. Quando estivemos lá, em 2012, levou três dias para um navio russo chegar onde estávamos. Um derramamento de petróleo no Ártico no fim do verão, quando o oceano começa a congelar de novo, pode deixar aquele petróleo preso por seis ou oito meses, provocando quem sabe qual dano. Por várias razões o Ártico é importante. Ele é fundamental na luta contra o aquecimento global.

 

E há o metano na tundra, não é?

 

Exatamente. Há a ameaça da liberação de gás metano da tundra. O fato de o Ártico ficar muito longe da maioria das pessoas não justifica que os líderes políticos e de negócios não entendam o que está em jogo. Não precisam ler um livro inteiro, basta que leiam um simples estudo.

 

O sr. acha que os líderes estão mudando no discurso sobre mudança do clima?

 

Apenas nas palavras. Não estão mudando na ação para responder ao desafio. É muito frustrante quando vou a eventos com chefes de Estado. Porque não há nenhum desacordo sobre como é sério esse problema. Claro, estamos preocupados, eles dizem. Depois, tudo continua como sempre.

 

Como acha que os países emergentes deveriam encarar o novo tratado?

 

Brasil, Índia e China sozinhos produzem a maioria dos alimentos do mundo e também a consomem. A economia global depende deles, os três estão na lista das dez economias mais importantes do mundo. Nossos governos têm uma escolha agora, e também os dos países emergentes: ou continuam a gastar dinheiro em armas, corrida espacial e outras coisas não fundamentais para a sociedade ou veem com seriedade como podem ganhar a corrida verde. As empresas e os países bem-sucedidos do futuro têm que dirigir seus investimentos para isso agora. É o que estamos vendo em alguns países europeus, como a Dinamarca e a Alemanha, que até 2050 pode ter 100% de energia renovável. O que me surpreende no Brasil é o governo não investir em energia solar. Há tanto potencial. Deus deu o Sol para este país e o presente não é aberto.

 

Sabe que no Brasil há o plano de se fazer quatro ou cinco usinas nucleares?

 

Isso foi decidido? Há quatro razões para que esse passo não tenha sentido. É muito caro, muito perigoso e não há nenhuma solução para o lixo nuclear que leva entre 200 e mil anos antes de deixar de ser perigoso. E por fim, depois de Fukushima, você pensa que cidadãos irão tolerar, sem brigar, usinas nucleares no quintal?

 

Mas sem combustíveis fósseis e sem nucleares é possível…?

 

Há estudos que mostram isso. O que é preciso é só vontade política, que não está aí porque as nossas economias são controladas pelos setores de combustíveis fósseis, militar e nuclear. O nuclear não pode ser pensado como solução para a mudança do clima, porque será muito pouco e muito tarde. Leva 20 anos para construir uma usina nuclear e nós não temos 20 anos. Há 1,6 bilhão de pessoas no mundo sem acesso à eletricidade.

 

Estão em pequenas comunidades remotas. Você acha que quando fizerem usinas nucleares vão levar eletricidade a essas pessoas? Não. Se é verdade que se quer tirar 1,6 bilhão de pessoas do escuro, o jeito é descentralizar o fornecimento de energia. Como os governos dizem que vão lutar contra a pobreza e falam em justiça social, e escolhem opções energéticas que não servem para a maioria das pessoas?