Mercado verde, madeiras de sangue
Por Felipe Milanez
Do blog do Felipe Milanez
O Greenpeace lançou, há alguns dias, uma nova campanha contra a extração predatória de madeira na Amazônia. Dessa vez, a investigação foi bem além do impacto ambiental evidente que cortar árvores produz na mata. Mostrou como essa economia extrativa não apenas saqueia matéria prima da Amazônia como também alimenta um dos principais mecanismos de corrupção e violência no Brasil.
Por Felipe Milanez
Do blog do Felipe Milanez
O Greenpeace lançou, há alguns dias, uma nova campanha contra a extração predatória de madeira na Amazônia. Dessa vez, a investigação foi bem além do impacto ambiental evidente que cortar árvores produz na mata. Mostrou como essa economia extrativa não apenas saqueia matéria prima da Amazônia como também alimenta um dos principais mecanismos de corrupção e violência no Brasil.
A campanha pode – e deve – ser acessada nesse link. “Chega de Madeira Ilegal” mostra como a corrupção e a violência são utilizadas para lavar madeira extraída ilegalmente para ser comercializada no mercado nacional e internacional.
Não se trata de uma novidade, mas sim do esgotamento de um sistema que foi totalmente corrompido ao longo dos últimos anos. Sejam os sistemas estaduais de controle, como o Sisflora, ou o federal, como o DOF, a credibilidade de qualquer um para determinar onde a madeira foi extraída é nula.
A realidade é que qualquer madeira de qualquer lugar da Amazônia pode hoje receber um selo de legalidade. Não importa a rede de ilegalidades. Nem a série de assassinatos contida. O atual selo de credibilidade seria a orelha de um assentado – pois é a parte do corpo que os pistoleiros cortam para comprovar o serviço. É mais fácil descobrir quem morreu para a madeira chegar até uma mesa de jantar em São Paulo ou Nova York do que comprovar que sua extração foi feita de forma “sustentável”.
Alguns anos atrás, em 2008, quando o sistema de comércio de madeiras começava a ser digitalizado para o “DOF”, criado em 2006, eu publiquei, na revista RollingStone, uma reportagem na qual chamei de “Madeiras de Sangue” esse mercado que, movido a ganância, tem como principal característica a violência. Violência que opera tanto contra os humanos como contra o ambiente.
O início do texto pode ser lido nesse link. Pouco antes, também na RollingStone, publiquei uma reportagem sobre Colniza, violento município no norte do Mato Grosso, na qual entrevistei um madeireiro que assim justificou sua atividade: “Quero preservar a floresta, e o único meio de trazer progresso para cá é vendendo madeira”. Mas e quando ela acabar? “Daí a gente vai embora, porque não vai ter mais nada para fazer aqui.”
É transtornante constatar, como mostra o Greenpeace, que depois de quase uma década e tantas promessas de “sustentabilidade”, de “modernização”, de “progresso”, de “aceleração do crescimento”, o comércio de madeira continua produzindo uma imensa mancha de sangue na Amazônia.
E é pouco provável que as coisas mudem nesse ano eleitoral. Ao contrário. São raros os políticos e políticas na Amazônia, não importa qual partido, que não beijam a mão de madeireiros ou ruralistas. Essa estreita relação entre poder político e ganância econômica é um desastre que se reconfigura, se ressignifica, e que sempre muda para permanecer igual.
O Greenpeace explica, tim tim por tim tim, como é feita a “lavagem” da madeira. Foram escolhidos alguns casos de estudo no Pará, e que bastam para demonstrar como todo o sistema de comércio de madeira no Brasil está corrompido. A situação não seria melhor se os estudos de caso fossem realizados no Maranhão, no Mato Grosso ou em Rondônia, nem no Sul do Amazonas, nem em Roraima.
Infelizmente, até no Acre, que alguns anos atrás de gabava de ter controlado o mercado, a situação degringolou, como já mostrou o blogueiro Altino Machado, sobre crimes ambientais e como a extração de madeira triplicou na última década no estado da “florestania” ou ainda como denuncia o líder seringueiro Osmarino Amâncio Rodrigues, antigo companheiro de luta de Chico Mendes: “No Acre, extração de madeira é desordenada e o seringueiro não pode tirar madeira para a sua casa”.
Diante da anuência dos governos, nesses últimos anos, dezenas foram mortos, como Adelino Ramos, Zé Cláudio e Maria, João Chupel Primo, Diana Nink, 13 mortos em 2010 no assentamento Cururuí, em Pacajá. Detalhes podem ser encontrados nos relatórios de violência no campo da Comissão Pastoral da Terra, onde transparece que o Brasil é o país mais violento do mundo nesse quesito – como mostrou a ONG inglesa Global Witness.
Em outubro de 2010, quando estive com o castanheiro José Cláudio Ribeiro da Silva caminhando na floresta, dentro do seu lote, no interior do Pará, ele me contou que tinha uma coisa que ele, “um caboclo aqui da mata”, não entendia: “como é que esse pessoal compra madeira sem ver a origem?” Neste sábado completaram-se três anos do assassinato de Zé Cláudio e sua esposa, Maria.
O corte da motosserra produzia, segundo ele, um “gemido”, as folhas tremiam “como quem vão dando adeus”. Zé Cláudio sentia como “se o cara matou alguém, porque é um ser vivo”. Enquanto ligavam a motosserra, a árvore ficava “quietinha, no lugar dela”. E, para ele, “o que a natureza levava para fazer, acaba em menos de uma hora. Põe fim naquilo tudo”. Tudo isso, disse ele, “em nome do capital”. Fácil ganhar dinheiro assim, ainda por cima driblando a fiscalização e trabalhando ilegalmente “só a ponto de enriquecer”.
E seguiu Zé Cláudio:
“E por que compram? Por que não procuram a origem? São coisas que eu procuro entender, como caboclo aqui do mato, e não consigo. Não consigo mesmo. Como é que sai daqui de Nova Ipixuna, daqui do sudeste do Pará, e vai parar nos portos do Espirito Santo, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, uma madeira proibida. E daí embarca e vai para a Europa, vai para fora. Como pode? Ninguém entende. Isso é de doer. Aqui fica o estrago, fica o buraco. E lá fora, a burguesia, os caras que tem poder aquisitivo, ficam morando no seu chalé, a custa de madeira ilegal que sai da Amazônia. E ainda ficam fazendo comercial dizendo que são protetores da natureza. O protetor da natureza sou eu, que vivo aqui no meio delas (as árvores) e não pretendo vendê-las”.
Neoliberalismo florestal
Por trás do DOF e desses sistemas modernos de extração de madeira está o neoliberalismo. Sim, ele não só ainda existe e domina o mundo como hoje é a regra de governo no Brasil, segundo a qual a melhoria da qualidade de vida pode ser alcançada pela liberdade do empreendedorismo individual, com um suporte institucional que proteja os direitos privados, o mercado e o livre comércio. Posto em prática esse sistema, de forma autoritária, bastaria sair jogando.
Na última década, cada vez mais, essa ideologia expandiu-se para os domínios tidos como “naturais”, com a privatização de ambientes comunitários. A criação de mercados sempre foi tida como a salvação: o que estaria fora do mercado, seria consumido barbaramente; e lá dentro, em módicas mordidas. Acontece que isso é justamente o contrário da própria formação da Amazônia
A Amazônia, como uma enorme fronteira, é um dos grandes espaços do mundo onde esse jogo do neoliberalismo tem sido travado, de forma bastante cruel e violenta. É um espaço de expansão do neoliberalismo, na terra, no ar, na mata, na água, nas ideias, em tudo onde for possível. Na Amazônia, o teatro do neoliberalismo ocorre ao ar livre, e os atores são expostos sem metáforas. É mais fácil perceber a violência do sistema. Principalmente no Brasil, onde o sangue jorra.
A exploração madeireira na Amazônia é um dos casos mais criativos da expansão do neoliberalismo sobre a natureza. Não apenas criou-se uma grossa maquiagem para tapar cicatrizes profundas, como produziu-se discursos que parecem sem sentido se tirados de contextos – talvez justamente porque não fazem sentido. O DOF, o Sisflora e afins são instrumentos neoliberais em essência, criados e postos em prática na última década.
Nessa ideologia, o mercado regularia tudo. Construindo um mercado eletrônico de madeiras, isso iria resolver os principais desafios da Amazônia, uma vez que a exploração madeireira é uma tradicional frente pioneira de expansão do capitalismo na floresta. O mercado iria “proteger” a floresta com uma exploração “sustentável” e todo mundo iria ganhar com isso. Só que não é bem assim que a última década passou. Ao menos para as pessoas mortas em conflitos pela exploração madeireira.
É difícil imaginar que qualquer sistema de mercado consiga oferecer madeira nativa suficiente para alimentar o metabolismo global, ou mesmo a ganância da elite nacional. Para a população que leva a vida junto da floresta, não há dúvidas de que o uso das madeiras é sustentável, pois não apenas protege, como constrói e molda a própria floresta.
Mas alimentar luxo mundial destruindo o ambiente não vai melhorar a vida do povo brasileiro, principalmente daqueles que vivem na Amazônia. Não vai ser colocando os móveis na fogueira que a vida dentro de casa vai melhorar, para usar analogia pensada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para descrever, de forma sintética, esse crescimento devastador em marcha. Só uma democracia radical, onde aquelas populações afetadas pela extração de recursos possam decidir sobre o seu futuro, é que talvez mude alguma coisa.