Após duas décadas de ataque às sementes, empresas apertam o cerco

 

Germán Vélez (Grupo Semillas)*
Da Revista Biodiversidade


As sementes têm sido o eixo fundamental do sustento, da soberania e da autonomia alimentar dos povos. Acompanham a humanidade desde a criação da agricultura, há milhares de anos. As sementes são o fruto do trabalho coletivo e acumulado de gerações de agricultores e caminharam com eles de comunidade em comunidade, se adaptando a cada ambiente e às necessidades dos povos. Expressam-se em múltiplas formas, cores, nutrientes e sabores.

 

Germán Vélez (Grupo Semillas)*
Da Revista Biodiversidade

As sementes têm sido o eixo fundamental do sustento, da soberania e da autonomia alimentar dos povos. Acompanham a humanidade desde a criação da agricultura, há milhares de anos. As sementes são o fruto do trabalho coletivo e acumulado de gerações de agricultores e caminharam com eles de comunidade em comunidade, se adaptando a cada ambiente e às necessidades dos povos. Expressam-se em múltiplas formas, cores, nutrientes e sabores.

Como dizem os povos andinos “As sementes nos criaram, e nós criamos as sementes”, são nossa herança do passado e nossa responsabilidade para o futuro. Por isso as sementes são consideradas “Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade”. 

Hoje mais que nunca as sementes estão ameaçadas pelo capital global que quer se apoderar de todos os bens comuns, dos bens públicos e dos patrimônios coletivos dos povos. Desde o início da Revolução Verde, em meados do século 20, as sementes foram adquirindo relevância em nível mundial quando se evidenciou o processo alarmante de erosão genética dos recursos fitogenéticos para a agricultura e a alimentação, o que levou ao surgimento dos sistemas de conservação ex situ, através dos Centros Internacionais de Pesquisa Agrícola (CGIAR), administrados pela FAO.

Paralelamente, algumas empresas de sementes viram o grande potencial econômico desses recursos genéticos e desenvolveram sementes de “alta resposta” aos pacotes tecnológicos modernos, que buscavam ser protegidos pelos sistemas de propriedade intelectual. No caso das sementes, foi adotada a proteção por meio dos Direitos de Obtentores Vegetais (DOV), reconhecidos pela Convenção Internacional da União para a Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV).

A Convenção em suas versões dos anos de 1972 e 1978 foi adotada inicialmente pelos países do Norte, e depois — na década de noventa — muitos países do Sul foram obrigados a subscrever a Convenção UPOV, como foi o caso dos países andinos que, por meio da Decisão Andina 345 de 1994, incorporaram a UPOV 78 nas legislações nacionais.

O sistema UPOV acabou com a forma como tinham sido concebidos no mundo a interação dos povos com suas sementes e os direitos dos agricultores sobre as sementes, que tinham sido reconhecidos pela FAO na declaração dos “direitos do agricultor”, na década de setenta. A UPOV 78 se baseia no reconhecimento dos direitos dos fitomelhoristas de variedades “modernas”, e considerou só de forma declarativa os direitos do agricultor a produzir, guardar, trocar e vender sementes.

Na década de noventa, com o desenvolvimento da biotecnologia e dos organismos transgênicos protegidos pelas patentes biológicas, aumentou a pressão em todo o mundo, principalmente sobre os países do Sul biodiversos, para que adotassem novas leis de propriedade intelectual, com maior alcance sobre a matéria viva e especialmente sobre as sementes.

A convenção UPOV foi revisada, a versão UPOV 91 foi expedida, e iniciou-se a ofensiva sobre todos os países para que a subscrevessem. Entre os aspectos mais críticos dessa convenção se destacam: a proteção das obtenções vegetais é equivalente a uma patente, tem como requisitos para a proteção as características de novidade, homogeneidade, estabilidade e distinguibilidade, que só são possíveis de aplicar ao fitomelhoramento convencional; não reconhece os direitos dos agricultores e desconhece a possibilidade de proteção das variedades crioulas e nativas desenvolvidas pelos agricultores.

Os países do Sul desde a década de noventa não quiseram adotar a convenção UPOV 91, apesar das múltiplas pressões através da OMC e de outros acordos comerciais. Por isso, nos últimos anos, os Estados Unidos e a União Europeia vêm pressionando todos os países que assinaram tratados de livre comércio a avançar na aplicação dos sistemas de propriedade intelectual, incluindo a obrigação de subscrever a Convenção UPOV 91.

Vários países da América Latina, como é o caso dos países centro-americanos, subscreveram essa convenção; também na Colômbia, por meio da lei 1518 de 2012, a UPOV 91 foi aprovada; mas a Corte Constitucional, após a pressão social, finalmente revogou essa lei. Em países como Chile, Argentina e México, apesar da enorme pressão sobre os governos e de várias tentativas de aprovar leis de sementes que incluem a convenção UPOV 91, sua aprovação foi impedida, também pela pressão social nos âmbitos legislativos nesses países.

Atualmente, em todos os países da América Latina se aplicam normas de sementes com diferentes alcances e âmbitos de ação. Existe uma forte pressão para que muitos países adequem suas leis nacionais aos padrões internacionais, pois em vários casos têm normas pouco restritivas ou que não são aplicadas com rigor. Em muitos casos a estratégia utilizada tem sido ir introduzindo os aspectos mais fortes das leis através de modificações pontuais das normas já existentes.

As normas que estão generalizadas em nossos países se referem à proteção de direitos de obtentores vegetais, outorgam esses direitos baseadas na UPOV 78 (convenção que foi adotada pela Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Argentina, México e Chile, entre outros), mas, em vários casos, as leis nacionais incluem algumas diretrizes da UPOV 91.

Também há em todos os países normas de certificação e registro de variedades vegetais e normas que controlam a produção, uso, manejo e comercialização de sementes, que buscam que os agricultores só utilizem sementes certificadas, selecionadas e registradas, e que, em vários casos, levam a criminalizar o uso e circulação das sementes crioulas. Adicionalmente, as leis de biossegurança na maioria dos países da América Latina permitiram às empresas biotecnológicas introduzir massivamente cultivos e alimentos transgênicos sem os devidos controles.

Todas essas leis de sementes, olhadas em conjunto, têm como objetivo tirar as sementes das mãos dos agricultores, aplicar propriedade intelectual às inovações tecnológicas, permitir o controle transnacional de todo o sistema de sementes e criminalizar o uso de sementes crioulas e nativas; ou seja, essas leis são instrumentos eficazes para controlar os sistemas nacionais de sementes; é por isso que, em alguns países onde não se conseguiu impor a UPOV 91, as empresas estão tranquilas, pois consideram que as outras leis em seu conjunto permitiram alcançar esse objetivo.

Em alguns países, as normas de controle das sementes são muito fortes, como é o caso na Colômbia, onde a Resolução 970 de 2010 do Instituto Colombiano Agropecuário, ICA, permitiu a realização de apreensões, a destruição de sementes e que agricultores fossem processados judicialmente pela violação dessa norma.

Foi assim que entre 2010 e 2013 o ICA impediu que os agricultores comercializassem mais de 4 mil toneladas de sementes. Em outros países ainda não se chegou a esses procedimentos, mas em todos os casos existe pressão para que os agricultores só utilizem sementes certificadas e registradas; e, na medida em que as normas forem apertando, esses procedimentos podem se generalizar.

Hoje mais que nunca se tornou evidente em todo o mundo a ameaça que as leis de sementes representam, impedindo que os agricultores exerçam sua autonomia e soberania alimentar, e também a alarmante situação de perda da agrobiodiversidade, principalmente nos centros de origem e de diversidade da América Latina.

É por isso que surgiram em nossos países numerosas iniciativas locais que buscam recuperar, multiplicar e difundir as sementes nativas e crioulas e os sistemas produtivos tradicionais. Também, por toda a América Latina, múltiplos setores sociais, rurais e locais estão articulando ações de defesa e de resistência frente a essas leis de sementes. É neste contexto que nossas lutas e ações deveriam se centrar em aspectos como:

* Revogar todas as leis de propriedade intelectual sobre sementes e as normas que controlam e penalizam os agricultores pela produção, uso e comercialização de sementes.

* Pressionar os governos para que exerçam controles estritos sobre a qualidade e sanidade das sementes das empresas, para que estas não afetem os sistemas agrícolas nacionais e, principalmente, a agricultura e as sementes camponesas.

* Exercer controle sobre o monopólio e o mercado especulativo das sementes exercidos pelas empresas, de tal forma que sua disponibilidade seja garantida aos agricultores.

* Proibir o plantio de sementes e alimentos transgênicos. Nossos países devem se declarar livres de transgênicos.

* Fortalecer os processos de recuperação e uso das sementes crioulas e dos sistemas produtivos biodiversos, que permitem que as sementes se mantenham vivas e andando.

* As políticas públicas governamentais devem se orientar para apoiar os agricultores na conservação, produção e circulação de sementes crioulas de boa qualidade, de acordo com as condições ambientais e socioeconômicas dos agricultores.

Se deixamos nossas sementes se perderem, perdemos nossa liberdade, dignidade e autonomia alimentar!

* Germán Vélez é fundador e coordenador do Grupo Semillas e colaborador antigo de Biodiversidade, sustento e culturas.