Os 30 anos do MST e a longa caminhada por Reforma Agrária



Por Gabrielle de Paula
Da Revista Sextante


Fotos: Yamini Benites

Em 1984, era realizado o 1º Encontro Nacional dos Sem-Terra, no Paraná. A reunião que marca o início da construção do Movimento contou com centenas de trabalhadores rurais. Juntos, decidiram pela fundação de um movimento social camponês autônomo, que lutasse por reforma agrária e por transformações sociais.

Por Gabrielle de Paula
Da Revista Sextante

Fotos: Yamini Benites

Em 1984, era realizado o 1º Encontro Nacional dos Sem-Terra, no Paraná. A reunião que marca o início da construção do Movimento contou com centenas de trabalhadores rurais. Juntos, decidiram pela fundação de um movimento social camponês autônomo, que lutasse por reforma agrária e por transformações sociais.

Segundo o MST, o encontro reuniu trabalhadores que estavam desprovidos do seu direito de produzir alimentos e foram expulsos por um projeto autoritário para o campo brasileiro, capitaneado pela ditadura militar.

O modelo de reforma agrária adotado pelo regime priorizava a “colonização” de terras devolutas em regiões remotas, tais como as áreas ao longo da rodovia Transamazônica. Um projeto que, de acordo com os sem-terra, anunciava a modernização do campo, mas, “na verdade, estimulava o uso massivo de agrotóxicos e a mecanização, baseados em fartos (e exclusivos ao latifúndio) créditos rurais”.

Para João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do Movimento, o surgimento do MST representa a continuidade de outros movimentos camponeses que a ditadura militar havia destruído, como as Ligas Camponesas, o Master do RS, e as Ultabs. A atuação de Stédile tem início em 1977, em um conflito agrário entre colonos e indígenas, na Reserva Cacique Nonoai, no norte do estado.

A cada dia mais numerosos, colonos expulsos do campo começavam a formar um exército “maltrapilho”, como denomina o jornalista Caco Barcellos em uma passagem do livro “Repórteres”.

Caco Barcellos comenta que em um primeiro momento torcia para os índios, mas as circunstâncias o levaram a reconhecer que, na realidade, era uma guerra de maltrapilhos e esfarrapados. Sobre este episódio, Stedile afirma ter sido um momento importante: – “As lutas sociais foram se multiplicando em todo o país, e depois, em 1984, deram o substrato social organizativo para surgir o MST como um movimento nacional”.

E ver que toda essa engrenagem, já sente a ferrugem lhe comer

Um dos primeiros códigos inteiramente elaborados pelo Governo Militar no Brasil foi o Estatuto da Terra, concebido como uma forma de colocar um freio nos movimentos campesinos que se multiplicavam. No entanto, para Roberto Ramos, superintendente do Incra do Rio Grande do Sul, o estatuto é de certo modo “revolucionário”: – “Se considerarmos a época (1964), foi uma legislação bem avançada, pois ele tira o direito ao imóvel rural como propriedade absoluta, a terra é tua desde que tu cumpras a função social”.


Embora os ruralistas tenham imposto emendas na Constituição de 1988, que significaram um retrocesso em relação ao Estatuto da Terra, os movimentos sociais tiveram uma importante conquista.

Os artigos 184 e 186 fazem referência à função social da terra, que consiste, basicamente, na produtividade, e no cumprimento das legislações ambiental e trabalhista. De acordo com o Estatuto, o território que não obedecer esses critérios será desapropriado para fins de reforma agrária.

A fiscalização cabe ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, que é dividido em Superintendências Regionais descentralizadas, responsáveis pela execução das ações nos estados. O estado do Pará, devido às dimensões e características dos conflitos, possui três superintendências.

Em tese, propriedades que cometem crimes ambientais e trabalhistas, como o trabalho escravo, não seriam produtivas. Mas, até hoje, o Incra não desapropriou nenhuma fazenda por esses delitos.

Stedile classifica a atuação do órgão como “vergonhosa”: -“É uma falta de coragem, e um verdadeiro comprometimento do governo federal com o agronegócio.

Ou seja, o governo está comprometido com suas alianças partidárias, com setores conservadores do campo, e com isso, o Incra não tem força para realizar as desapropriações das fazendas”.

Ramos justifica que a dificuldade está relacionada ao fato de esses crimes terem legislações próprias: -“A produtividade da terra é o Incra que fiscaliza, mas a questão trabalhista é o Ministério do Trabalho, por exemplo, que sabe caracterizar o que é trabalho escravo e já estabelece uma punição”.

Apesar de o Movimento dos Sem-Terra ser considerado uma continuidade das Ligas Camponesas, ele inovava na forma de atuação. Em 1985, o MST realizou seu 1º Congresso Nacional, em Curitiba, cuja palavra de ordem era: “Ocupação é a única solução”.

Neste mesmo ano, o governo de José Sarney aprova o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que tinha por objetivo dar aplicação rápida ao Estatuto da Terra, mas pressionado pelos interesses do latifúndio, ao final de um mandato de cinco anos, assentou menos de 90 mil famílias.

Lá fora faz um tempo confortável, a vigilância cuida do normal
 
O superintende do Incra no estado, Roberto Ramos, destaca que setores conservadores, como a bancada ruralista, fazem uma grande pressão política. No Rio Grande do Sul, a Federação da Agricultura (Farsul), é uma das instituições mais organizadas: -“Em 2008, nós tivemos um contra movimento.

A Farsul impedia o Incra de fazer as vistorias nas fazendas, trancando as estradas”. Segundo Ramos, os ruralistas também atuam no processo de compra e venda, fazendo pressão para que propriedades não sejam vendidas ao Instituto.

Além da pressão política, os sem-terra ainda convivem com a violência e a impunidade. Não é de hoje que o vermelho da terra se mistura com o vermelho do sangue. No país que se expandiu sobre a dominação e assassinatos de indígenas por portugueses e tantos outros conflitos, o cenário agrário brasileiro ainda teria uma barbárie promovida pelo aparato de segurança do Estado: O massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, no Pará.

Mil e quinhentos trabalhadores ligados ao MST faziam parte do acampamento da Fazenda Macacheira e deslocavam-se para Belém para exigir do Incra e do Governo do Estado o cumprimento de um acordo, que previa a desapropriação da fazenda.

Após um cerco policial para desobstruir a rodovia, o batalhão comandado pelo Coronel Mário Colares Pantoja avançou disparando e lançando bombas de efeito moral.

Com os primeiros disparos, os policiais acertaram o lavrador surdo-mudo Amancio dos Santos. Muitos sobreviventes acreditam que o número de mortos supere os 19 que foram divulgados. Várias das pessoas que estavam acampadas eram garimpeiros ou vítimas de trabalho escravo, que não tinham vínculo familiar, nem registro.

Situação favorável para a ocultação de cadáveres. Metade dos mortos foram executados à queima-roupa. Quatro deles receberam tiros na testa a curta distância, depois de rendidos. Os demais apresentavam sinais de terem sido barbaramente espancados antes da execução.

Dos 155 policiais que participaram da ação, Mário Pantoja e José Maria de Oliveira, comandantes da operação, foram os únicos condenados. As penas superaram os 150 anos, porém o processo judicial se arrasta após um pedido de apelação. Os dois estão em prisão domiciliar num quartel da PM de Belém, em apartamentos com todas as regalias de oficiais.

No Rio Grande do Sul não é diferente. Admirado pelos ruralistas por resistir a assentamentos, o município de São Gabriel foi palco de disputas acirradas entre sem-terras e produtores rurais. Em reportagem de André de Oliveira e Jefferson Pinheiro publicada pela Agência Pública em 2012, há a reprodução de um panfleto divulgado na cidade, na época em que várias famílias foram assentadas na região.

Um trecho pede: “Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em voo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles”.

Em 2009, também em São Gabriel, o acampado Elton Brum foi brutalmente assassinado pela Brigada Militar, com um tiro pelas costas, durante a desocupação de um latifúndio.

Dezenas de pessoas ficaram feridas e até hoje ninguém foi punido. Em 2013, trinta e quatro pessoas morreram em conflitos agrários, no Brasil. Neste ano, em Faxinalzinho, no norte do estado, dois agricultores foram mortos em uma região de conflito com indígenas.

Em reunião marcada para promover o diálogo entre camponeses e indígenas, sete índios caingangues foram presos pela Polícia Federal. Parece que a guerra de “maltrapilhos e esfarrapados” continua por essas bandas.

Nos últimos anos, o MST tem demonstrado um comportamento diferente. Mais do que a ocupação para forçar as desapropriações, o Movimento, estrategicamente, diz priorizar melhorias nos assentamentos existentes, com melhor qualidade de vida, além de adoção da agroecologia e da agroindústria.

“A estratégia é que os camponeses precisam se aliar com os setores organizados da cidade, para derrotar o agronegócio como modelo de reprodução agrícola”, afirma Stédile. Mesmo assim, neste ano, em meio às celebrações dos 30 anos do Movimento, no 6° Congresso Nacional, foram decididas uma série de ações para marcar o Abril Vermelho.

Em Passo Fundo, 300 pessoas acamparam na propriedade da família de um advogado foragido da Justiça. Também houve ocupações em Pelotas e Capão do Leão, na zona sul, Catuípe, no Planalto Médio, e Cruz Alta, no Alto Jacuí.

Demoram-se na beira da estrada, e passam a contar o que sobrou!

Três anos sem água, sem luz e sem estrada. Essa é uma realidade que vem mudando a passos muito lentos, no assentamento Nova Esperança, em Charqueadas. Os lotes das 14 famílias estão divididos. O documento da terra ainda não chegou. Sem a carta, os assentados não recebem o talão de produtor, o que impede o desenvolvimento da produção agrícola para a venda.

“A gente se vira como pode”, conta a assentada Neli da Silva. A luta pelos serviços básicos tem sido uma constante, segundo Gilberto Soares. O Cigano, como é conhecido, se destaca como uma das lideranças do local e empilha ofícios de pedidos de melhorias para os órgãos responsáveis.

Segundo dados do Incra, o Rio Grande do Sul possui 339 assentamentos, entre estaduais e federais, o que corresponde a uma área superior a 290 mil hectares. O Instituto apresenta diversos programas para o desenvolvimento das famílias, como assistência técnica e financiamentos.

“Temos disponibilizado um técnico para cada 70 famílias, também oferecemos crédito para aquisição de pequenas ferramentas, incentivos para a produção de subsistência, por exemplo”, afirma Roberto Ramos.

Porém, para os assentados do Nova Esperança, “o Incra ainda não sinalizou a implantação de nenhum programa”, de acordo com Cigano. Ao mesmo tempo, alguns assentados demonstram um sentimento de abandono por parte do próprio MST.

A assentada Samanta Soares comenta a contradição: “Eles falam que tem que melhorar os assentamentos que já existem, mas estão dando mais atenção aos acampamentos”.

Além da angustiante espera por avanços, a insegurança também preocupa: -“Eu não sei como alguém que tem família, consegue assentar pessoas ao lado de um presídio”, diz Neli da Silva.

O assentamento é a possível rota de fuga dos presidiários da vizinha Colônia Penal de Charqueadas. Cigano comenta que no momento a movimentação está tranquila, mas que já sofreram com a repressão durante as rondas polícias na área, buscando por fugitivos. Ele também lamenta a perda de uma gleba do assentamento para a penitenciária.

Por outro lado, assentamentos mais antigos vêm mostrando uma boa estrutura. É o caso do Itapuí, em Nova Santa Rita, onde moram 52 famílias. Recordando um passado de luta e repressão, Juraci de Oliveira conta: -“Tu não tem ideia a alegria do povo quando chega o documento da terra”.

Ela faz parte da coordenadoria regional dos assentamentos da região metropolitana de Porto Alegre e explica que o desenvolvimento do local se deve também ao surgimento de uma cooperativa.

Segundo ela, os programas do governo ainda são insuficientes, mas “é melhor ter do que não ter”. O sentimento de pertencimento ao MST fica mais evidenciado por aqui e Juraci demonstra um discurso alinhado com o do Movimento: -“Antes a luta era contra o latifúndio, hoje a gente luta contra o agronegócio”.

Apesar do ambiente aparentemente próspero, o agricultor Olair Nunes comenta que o campo ainda está muito sucateado e a vida não é fácil: -“A gente trabalha demais pra ter uma vida boa, os filhos da gente também estão indo embora”.

Outra queixa no Itapuí é referente à venda de lotes por parte de alguns assentados, o que constitui uma das principais críticas realizadas por setores conservadores ao MST. A sergipana, Gorete Menezes, contesta: -“A luta agrária não tem fronteira, o Movimento Sem-Terra é uma grande família, e como toda família tem gente que não presta”.

E sonham com melhores tempos idos, contemplam esta vida numa cela
Esperam nova possibilidade, de verem esse mundo se acabar

Outra conquista do assentamento de Nova Santa Rita, é a escola estadual Nova Sociedade, fundada por eles. Andar pelo colégio é perceber a preservação de uma consciência política e social, desde as bandeiras do Movimento nas paredes às atividades de horta no pátio.

Elisabete Witcel foi professora de uma das escolas itinerantes do MST que foram fechadas durante a gestão de Yeda Crusius no Governo do Estado.

Hoje é diretora da escola Nova Sociedade e salienta a procura de alunos externos ao assentamento: -“Nós temos alunos que vem de fora, e que estão desenvolvendo essa consciência de transformação social junto com a gente”.

O casal Olair e Gorete, também é exemplo de respeito à natureza e à saúde. Eles exibem uma grande diversidade de produtos plantados em sua lavoura sem nenhum agrotóxico: -“Trabalhar com alimento é vida, e questão de respeito com a sociedade”, reflete seu Olair.

João Pedro Stedile garante que o MST tem incentivado muito a agroecologia nos assentamentos: -“Fazemos um enorme esforço para construir a matriz tecnológica da agroecologia nos assentamentos. Porém isso é um longo processo, que começa na necessidade de termos escolas de agronomia, de nível médio”.

Trabalhar com a agroecologia é uma vontade de Neli da Silva, do assentamento Nova Esperança, assim que os programas de desenvolvimento chegarem. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, ela garante que não irá desistir: -“Depois que a gente conquista a terra, não dá pra largar”.

Cigano também demonstra força: -“Agora a gente enfrenta na cara e na coragem, mas espero que da próxima vez que tu venha aqui, eu tenha a minha lavoura”. Crentes em dias melhores, parecem encarnar o nome do assentamento.

O que se percebe ao colher relatos dos envolvidos ao MST é de que lutar pela reforma agrária é romper com um sistema que coloca muito nas mãos de poucos. É romper com o medo da repressão. É romper até mesmo com as estratégias.

Inegavelmente, com todas as rupturas, o MST segue sendo a principal bandeira de esperança e luta pela terra. Luta dos filhos deste solo, por um pedaço de chão nessa imensidão chamada Brasil.