De tijolo em tijolo, Sem Terra construíram a primeira escola do campo em MT

A Escola Madre Cristina, a primeira escola do campo no Mato Grosso, traz a realidade do campo para dentro da sala de aula.

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Por José Coutinho Júnior
Da Revista Sem Terra

Fotos: Heriberto Paredes

O assentamento Roseli Nunes pode ser visto como um símbolo de resistência da Reforma Agrária no Estado do Mato Grosso. Sua área de mais de 7 mil hectares, onde moram cerca de 325 famílias, está cercada por grandes latifúndios do agronegócio, que muitas vezes contaminam a produção dos assentados com agrotóxicos.   

O Mato Grosso é um dos estados que mais concentra terras no Brasil. 69% das áreas rurais são latifúndios acima de 3.500 hectares, de acordo com a cartilha lançada pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, em 2010.

Mesmo assim, o assentamento resiste e produz uma diversidade de alimentos, proporcionando às famílias assentadas uma condição de vida digna. Cada núcleo do assentamento tem uma área social, onde se constroem escolas, igrejas, postos de saúde.

 

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Damião, um dos assentados que participou da construção da escola.

Os agricultores produzem leite, milho, batata, mandioca, arroz, banana, abóbora, laranja, manga, melão, abacaxi, melancia, feijão, verduras e diversos tipos de legumes. O trabalho agroecológico da região começou no assentamento, em 2004. Hoje, 60 famílias assentadas produzem alimentos livres de agrotóxicos.

Além da produção, o assentamento Roseli Nunes é referência na área da educação. A escola Madre Cristina, primeira escola rural do estado, se localiza no centro do assentamento, e proporciona aos alunos, professores e assentados uma forma de ensinar no campo e se integrar com a comunidade raramente vista em outras escolas.

Atualmente, a escola conta com cerca de 360 alunos do ensino fundamental, médio e do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do assentamento Roseli Nunes.

Na época de sua fundação, em 1997, uma lona era a sala de aula dos alunos. Após o assentamento ser criado, em 2002, cada assentado doou R$ 50 para a compra de materiais, e um mutirão construiu a escola.
 

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Cerca de 100 dos 360 alunos da escola são do EJA. Muitos nunca tinham entrado numa sala de aula.

Segundo Damião, assentado que participou da construção da Madre Cristina, “a importância da escola é que ela é diferenciada. Além de aprender as matérias normais, os alunos aprendem sobre produção, a respeitar a natureza, como nos proteger do veneno, que para nós é um grande problema”.

Ao todo, a escola tem sete salas de aula em dois pavilhões. Quatro à direita, no pavilhão maior, e três à esquerda, no menor. Um jardim divide os dois pavilhões, e em frente a cada sala de aula, há uma planta diferente, plantada e cuidada pelos alunos daquela sala.

No pavilhão maior, ainda há um laboratório de informática com 19 computadores, uma sala de aula para alunos com necessidades especiais e o refeitório. Os alimentos adquiridos pela escola são todos agroecológicos, vindos tanto do Roseli Nunes como de outros assentamentos próximos.

A escola serve um café-da-manhã, almoço, lanche da tarde e janta aos alunos. Alunos, professores e funcionários comem juntos no refeitório. Merendas como sopa de legumes e carne, macarrão com carne e arroz com farofa são servidas regularmente.
 

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A merendeira e assentada Nadimar trabalha na escola desde 2001.

Arroz, feijão e carne

Nadimar trabalha como merendeira da escola desde 2001. É assentada do Roseli Nunes, e começou a contribuir na escola porque à época não havia como pagar uma merendeira. Quando a escola obteve o recurso, contratou-a.
Seu filho estudou até a quinta série na escola, e agora são seus netos que frequentam a Madre Cristina. Para Nadimar, trabalhar na escola é uma alegria.

“Chego às 10 horas e fico até às 17. Quando chego já cozinho o arroz, feijão, a carne moída. Os alunos adoram a comida. Adoro trabalhar aqui, se eu sair daqui me dá uma depressão, minha vida é vazia demais sem essa escola, sem os professores, as meninas da limpeza, parece uma família”.

Ao lado do refeitório, há uma árvore cercada por um banco de madeira, onde os alunos sentam para conversar durante o intervalo. Seguindo pelo refeitório, há a sala da coordenação, dos professores e a pré escola. Há também uma grande sala reservada para a biblioteca, que tem um acervo de mil livros, que podem ser emprestados não só para os alunos, mas à comunidade.

A escola também tem duas quadras próximas à sua entrada: uma de esportes, e outra destinada ao projeto +Educação, que realiza oficinas de teatro, artesanato e dança com os alunos.

 

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A escola trabalha com o processo pedagógico da Educação do Campo.

Pedagogia do campo

A estrutura da escola é bem modesta, e não se diferencia em nada de outras. No entanto, a Madre Cristina é uma escola muito diferente quando se trata das aulas e da relação com a comunidade.

Ela só existe por conta da mobilização dos funcionários e assentados. “Sempre houve muito preconceito por sermos uma escola do campo. Tentaram fechá-la várias vezes, e para conseguirmos abrir novas turmas, sempre tínhamos de nos mobilizar”, afirma a diretora Maria José de Souza Gomes.

Hoje, a escola é estatal, e não mais municipal, mudança que ajudou nas negociações para realizações de projetos, aquisição de equipamentos e seu funcionamento diário.

Para Maria de Lurdes Paixão, assessora pedagógica da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), a escola “dá condições do jovem continuar no campo, pois a vivência dela é muito relacionada à vivencia dos acampados. A história do assentamento e do Movimento vem para a sala de aula.”

Ainda há dificuldades a se superar, mas Maria de Lurdes acredita que com o tempo a equipe irá resolvê-las. “Aqui me dizem que essa escola é do campo e no campo. E a metodologia é realmente diferente. Trabalhar com a equipe é tranqüilo. Eles mesmos elaboram a linha e o método dos projetos, e cabe a nós acompanhar e assessorar”.
 

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Da mesma forma, os professores têm a liberdade de criar projetos e suas próprias metodologias nas aulas, sendo que alguns realizam atividades em conjunto. Ronaldo de Queiróz, professor de matemática, notou que os alunos precisavam melhorar suas capacidades de raciocínio.

“Vamos cortar um tronco para fazer um tabuleiro, na aula de artes os alunos vão fazer peças de damas, e vamos começar um torneio de damas entre os alunos de todas as turmas. Isso vai incentivar o raciocínio de uma forma divertida”.

 

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Renata Cristiane, professora de física, acredita que a forma de ensinar a disciplina nas escolas está errada. “O MEC (Ministério de Educação) divide a física em movimento no primeiro ano, calor no segundo e eletricidade no terceiro. Mas essas coisas estão interligadas, separar só torna o ensino muito difícil. Então muitas vezes eu chego na sala e começo a falar de física para os alunos, eles vão perguntando e vamos debatendo”.

A professora também desafia seus alunos, que para se formar, precisam entregar uma monografia sobre um tema de sua aula. “Estudamos nas aulas as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), e os trabalhos que saem costumam ser muito bons”. Renata também leva livros das universidades para resolver os exercícios com os alunos.

“Faço isso para eles perceberem que são tão capazes quanto os alunos da cidade, porque às vezes eles tem essa impressão de que não são tão bons, e fazendo isso a gente tira essa ideia da cabeça deles”.
 

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Da sala a horta

A escola iniciou neste ano um curso técnico de agroecologia para os alunos do ensino médio. O curso dura três anos, e os alunos vão estudar o funcionamento de agroindústrias, agropecuária de base ecológica, além das técnicas agroecológicas na prática, cuidando de uma horta na escola.
 

De acordo com Sidney Martins, engenheiro agrônomo e assentado do Roseli Nunes, que ministra o curso, esse “é um aprendizado importante, para levar para casa, porque além de ser uma forma de produzir alimentos saudáveis, abre uma nova porta de comércio para as famílias”.

 

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O assentado Sidney Martins é quem ministra o curso técnico de agroecologia.

A vivência cultural na escola também é forte. Ano passado, os estudantes do EJA realizaram um festival culinário, onde cada um levou um prato diferente. “Reservamos uma mesa no refeitório, mas como não parava de chegar comida, precisamos pegar mais”, afirma Maria José, rindo.

A escola também realizou em maio uma noite cultural, onde foram apresentadas poesias e trabalhos artísticos dos alunos. Todos esses eventos não são restritos aos alunos e professores; pelo contrário, os assentados também participam.

“Os assentadados participam da rotina da escola. As assembleias principais do assentamento são aqui, eles acompanham o desempenho dos alunos e também avaliam os professores”, diz Maria José.
 

EJA

Além do ensino fundamental e médio regular, a escola Madre Cristina dá grande atenção ao EJA. Cerca de 100 dos 360 alunos da escola são do EJA, e muitos destes alunos nunca tinham entrado numa sala de aula durante toda sua vida.

“Quando comecei a estudar, não sabia nada, agora até sei escrever uma cartinha. Ficamos felizes de estar nessa sala com as amigas e colegas, a gente se sente melhor. Nunca tinha vindo na escola. Tenho 73 anos e achava que não ia aprender nada mais por causa da idade. Mas os professores são bons, entendem as nossas dificuldades e ajudam muito. Esse tempo de estudar era pra ser na infância, como não tive…” diz a assentada Araci Lourinda.

Para as pessoas que não completaram os estudos, o EJA não é apenas uma oportunidade de aprender, como também de se emancipar por meio do conhecimento. O maior exemplo disso é a “sala das margaridas”, composta apenas por mulheres que abandonaram os estudos por conta do casamento, e agora retornaram à sala de aula.
 

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“Minha vida parou na sétima série, quando me casei. Meu marido não vê importância de estudar, e eu fui proibida de realizar meus sonhos. Hoje tenho 37 anos e faço planos com muita segurança pro meu futuro. Se Deus quiser, ano que vem vou fazer meu curso de culinária para abrir meu restaurante”, afirma Luciene Correia da Costa.

As margaridas brincam que “nessa turma não teve nenhum homem para encarar. Ninguém quis entrar. Entraram por algum tempo, mas já foram embora”, dizem rindo.

Para a professora Iraci da Silva Pereira, lecionar para o EJA é uma experiência gratificante. “A experiência deles passa pra mim e a minha passa para eles. Essa troca de conhecimento é muito importante. Não existe isso de que ninguém sabe nada, todos sabem algo. É um processo bem lento de aprendizado, cinco dos meus alunos precisaram de aulas de alfabetização. Mas quando eles aprendem eu me emociono muito”.

Segundo Maria José, é função da escola ir atrás e abrir as portas para que todos possam aprender. “Como eu tive oportunidade, quero que os outros tenham. Estamos de portas abertas para os alunos depois de se formarem.”

 

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A professora Marinalva Paula, que também leciona a quem mais precisa.

A todos que precisam e queiram

A filosofia da escola de chegar a todos que precisam e queiram aprender também se estende à educação especial. Uma sala ao lado do laboratório de informática, chamada de “sala educacional” é onde estes alunos tem suas aulas.

A professora Marinalva Paula da Silva trabalha na sala educacional há cinco anos. Além da formação em letras, ela fez cursos de braile e libras para lecionar para essas crianças. Atualmente há sete alunos na sala, com problemas que variam de paralisia cerebral, surdez e baixa visão.

As aulas são diferentes das tradicionais, focando em jogos no computador, artesanato, pintura, colagem e atividades de leitura. “Nos jogos como dama e dominó eles dão um banho em mim. Eu não trago nenhuma atividade pronta, instigo eles a fazer”, afirma Marinalva.

Em relação ao progresso dos alunos, ela acredita que é pequeno, mas notável. “O Fábio, que tem paralisia cerebral, usava mamadeira até os 14 anos de idade. Hoje ele não faz mais isso, ensinamos a mastigação.Ele conhece a minha voz, meu cabelo é áspero, então quando chego passo a mão dele no meu rosto e no cabelo, e ele sorri porque me reconhece”, diz a professora.

Em relação à forma como essas crianças muitas vezes são tratadas em outras escolas, que não tem o preparo para lidar com suas necessidades, Marinalva acredita que “muitos professores acham que isso não é papel da escola. Mas todos têm o direito de vir para a escola, e a escola tem de chegar às pessoas. As escolas têm de ir atrás, porque é um direito”.

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