Por que Dilma deve vetar o PL da biopirataria?
Da Terra de Direitos
Aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 27, o Projeto de Lei 7735/2014 deve ser analisado pela Presidenta Dilma Rousseff ainda nesta semana.
Tido como “marco regulatório da biodiversidade brasileira”, o PL prevê a facilitação de acesso e repartição de benefícios do uso dos bens comuns naturais, como o patrimônio genético nacional e o conhecimento tradicional a ele associado.
Após uma tramitação marcada pela falta de participação popular, organizações, movimentos sociais e representantes de povos e comunidades tradicionais enviaram à presidenta uma carta pedindo que vete o PL, no último dia 5.
Entende-se que o projeto, construído com ampla participação de empresas interessadas na exploração econômica da agro e biodiversidade,é marcado por inúmeras brechas que podem prejudicar a proteção tanto dos povos e comunidades que vivem nos diversos biomas nacionais, quanto do próprio meio ambiente.
Se aprovado, será criado um fundo para qual será destinado os valores pagos na repartição de benefícios (onde um pequeno percentual dos lucros obtidos através da exploração econômica de determinado produto ou conhecimento serão administrados e revertidos para inúmeros projetos).
Porém, “não existe garantia de repartição de benefícios”, explica o assessor jurídico da Terra de Direitos, André Dallagnol. “Esse projeto é uma nova transamazônica”, compara. “Abre-se o acesso da academia e de empresas que detém o monopólio da informação para explorar o patrimônio genético brasileiro. Mas não estabelece mecanismos de defesa para os povos e comunidades que defendem, protegem e garantem a diversidade dessas riquezas”.
Caso a presidenta opte por não vetar integralmente o Projeto, a carta sugere pontos para não serem sancionados. Caso sejam vetados, ajudarão a diminuir os impactos da lei para os guardiões da biodiversidade brasileira.
Leia a carta aqui.
Entenda cada pedido de veto:
Art. 9.º, § 1.º, III:
No projeto enviado a presidenta Dilma, esse artigo dá a possibilidade que o acesso ao conhecimento tradicional associado a algum recurso genético pode se dar através do consentimento de órgãos oficiais competentes. Dessa forma, uma empresa farmacêutica poderia utilizar os conhecimentos tradicionais de determinados povos indígenas, por exemplo, através de permissão dada pela Fundação Nacional do Índio.
“Nenhum órgão público pode substituir determinado povo indígena ou comunidade tradicional no ato de conceder ou negar o consentimento prévio”, explica Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental (ISA), que ajudou a construir a carta enviada à presidenta.
“Sendo o conhecimento tradicional de domínio e de propriedade (inclusive intelectual) da comunidade, jamais poderia o Estado se imiscuir na função de conceder o consentimento, substituindo a vontade do detentor do conhecimento tradicional”.
Art. 9.º, § 3.º
A Carta defende o veto a esse parágrafo especialmente por trazer, o que juridicamente chamamos de presunção absoluta de que o conhecimento tradicional dos agricultores associado ao recurso fitogenético para a agricultura é sempre não identificável. Em outras palavras, esse parágrafo exclui todo e qualquer agricultor (seja ele camponês, indígena, quilombola, ou qualquer comunidade que desenvolva agricultura) do processo decisório acerca do acesso à sua semente ou animal, e aos saberes relacionados.
Ponto positivo, o parágrafo indicado reconhece que toda variedade tradicional local ou crioula, raça localmente adaptada, ou crioula para atividades agrícolas, contém conhecimento tradicional dentro de si. No entanto, o mesmo artigo afirma que esse conhecimento tradicional será sempre de origem não identificável – o que não é verdade, pois a maioria das variedades tradicionais locais ou crioulas, assim como raças de animais, só são preservadas, melhoradas e multiplicadas graças à determinados povos e comunidades que as mantém e conservam, formando bancos de sementes e tornando-se guardiões das mesmas.
“Trata-se da expropriação e alienação dos direitos dos guardiões da agro e biodiversidades nacionais”, explica Dallagnol.
Art. 17, § 10.º
Essa parte do projeto de lei prevê anistia do pagamento da repartição de benefícios em casos de exploração de recursos genética iniciada antes de 29 de junho de 2000. Caberá ao usuário comprovar que acessou determinado recurso antes da data indicada.
O Brasil ainda não ratificou o Protocolo de Nagoya, acordo internacional que trata do acesso e repartição justa e equitativa de benefícios sobre o patrimônio genético. Segundo a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, a aprovação desse PL possibilitaria adesão ao tratado.
Mas, para o assessor jurídico da Terra de Direitos, André Dallagnol, que ajudou a construir o pedido de veto, diversos dispositivos do PL vão contra os mecanismos propostos no Nagoya.
Art. 19, § 4.º
O PL determina que a repartição de benefícios pode se dar através da modalidade monetária (pagamento direto em dinheiro) ou não monetária (através de projetos, cursos, entre outras formas de beneficiar o detentor do conhecimento tradicional). Esse parágrafo indica que, caso a modalidade de repartição de benefícios seja a “não monetária”, é o explorador que indicará a quem se destinará os benefícios.
Além da possibilidade de gerar conflitos entre as diferentes comunidades detentoras de um mesmo saber, esse tipo de disposição é incompatível com os termos mutuamente acordados previstos no protocolo de Nagoya, por dar unicamente aos exploradores o direito de opção.
Art. 21
Esse artigo estipula que o valor da repartição de benefícios, no caso da modalidade monetária, pode ser reduzido até 0,1% da receita líquida obtida através da exploração econômica de um produto ou material – a lei também prevê que esse valor corresponda, no máximo, a 1%.
A decisão da redução se daria através de acordo realizado entre o setor explorador. A justificativa para essa desvalorização é a de que diminuir o valor pago na repartição dos benefícios garantirá que o preço do produto finalizado seja competitivo. Dessa forma, o setor farmacêutico, por exemplo, poderá depositar no fundo, um décimo por cento do que lucra com a venda de um produto criado a partir desse saber.
“A Lei dá diversas brechas para escapar da repartição”, indica o assessor jurídico André Dallagnol. “Se não escapar, você ainda pode escolher entre pagar de forma monetária ou não, e, na forma monetária, ainda é possível reduzir o valor a ser pago”.
Ao mesmo tempo, esse artigo também indica que, no acordo entre o setor, é opcional (e não obrigatório) que comunidades e povos tradicionais participem da decisão.
Art. 29, § 3.º
Nessa parte, o Projeto de Lei atribui ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a fiscalização de infrações cometidas contra o patrimônio genético e o conhecimento tradicional.
“No entanto, o MAPA ignora historicamente a existência de conhecimentos tradicionais associados à agricultura”, explica Dallagnol. Por isso, acredita-se que tal Ministério não tem preparo para ser o responsável por essa fiscalização.
Art. 41, § 4.º
Nesse caso, o PL estipula que pessoas que estavam regularizando o acesso ao patrimônio genético ou o conhecimento tradicional a ele associado – que antes era acessado de forma ilegal – até a aprovação da Lei poderão optar por repartir os benefícios de acordo com a nova legislação ou com a Medida Provisória vigente até o momento.
Novamente, é do explorador a prerrogativa de escolher o que é melhor para si – o que na maioria das vezes é o pior tanto para a biodiversidade quanto para os detentores dos conhecimentos que foram ilegalmente acessados e explorados.
Art. 44
Para o assessor jurídico da Terra de Direitos, essa parte do Projeto de Lei “dá a tônica de qual é o compromisso do PL”.
Esse artigo anistia multas relacionadas ao acesso irregular do patrimônio genético e do conhecimento tradicional aplicadas até a aprovação da Lei.
“É a cereja do bolo para as empresas”, compara Dallagnol.