Reforma agrária às avessas beneficia Kátia Abreu

No final dos anos 90, o governo do Tocantins expulsou pequenos produtores para beneficiar o agronegócio no estado.

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Do IHU Online

A Defensoria Pública Agrária do Tocantins investiga o favorecimento de políticos na distribuição irregular de terras no estado. Documentos obtidos pelo Canal Rural com exclusividade mostram que até a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, está envolvida. O caso, agora, pode parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

No final dos anos 90, o governo do Tocantins considerou uma área de mais de cem mil hectares como improdutiva e destinou a um projeto agrícola arrojado. Para isso, expulsou pequenos agricultores das terras.

– O que se viu foi uma reforma agrária às avessas. Havia pequenos produtores nesta área e ainda há! Estas terras foram destinadas a grandes produtores a preços praticados fora de mercado na época – diz o defensor público Agrário Pedro Alexandre Conceição Aires Gonçalves, responsável pela defesa dos posseiros desalojados.

Juarez Vieira Reis, 66 anos, é um dos pequenos produtores expulsos da área. Ele mostra os documentos comprovando que há anos vinha pagando impostos sobre os 500 hectares que a família ocupava. Depois de sete décadas, ele viu a terra onde nasceu e enterrou seus familiares passar para as mãos de outro dono: a então deputada federal Kátia Abreu. O despejo da família teve contornos dramáticos, com a presença da polícia. Hoje ele mora em um casebre perto da cidade de Campo Lindo.

A família de Reis é uma das cerca de 80 famílias de posseiros que moravam na área na época da desapropriação. A nenhum deles foi dada a oportunidade de adquirir os novos títulos. Alguns se deslocaram para outras áreas próximas, alguns resistiram por algum tempo e outros foram simplesmente expulsos.

Esta injustiça cometida pelo Estado com o púbico que deveria ter prioridade nas políticas públicas de desenvolvimento agrário está motivando a Defensoria Pública Agrária do Tocantins a entrar com uma petição denunciando o país por violação de direitos humanos na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O pedido deve ser encaminhado à Comissão nos próximos dias.

O projeto agrícola

O Projeto Agrícola Campos Lindos abrange 105 mil hectares de terras no município que leva o mesmo nome. Em 1997, a terra foi considerada improdutiva e de utilidade pública pelo governador Siqueira Campos.

A ideia era impulsionar a agricultura no Tocantins e, para isso, o Instituto de Terras do Tocantins (Intertins), dividiu a área em 44 lotes e vendeu a preços abaixo dos praticados no mercado na época.

Agentes imobiliários afirmam que, entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000, o valor médio do hectare na região variava de R$ 150 a R$ 200. Os lotes divididos pelo governo do Estado foram vendidos por 10% deste valor.

O problema, segundo o procurador da República Álvaro Lotufo Manzano, é que a distribuição privilegiou amigos do governador, em vez de favorecer os posseiros que já estavam no lugar.

– Eu não sei dizer qual foi o critério para distribuição das terras. O que eu sei é que foram beneficiadas algumas pessoas com relacionamento bem próximo com o governo Siqueira Campos.

O ouvidor agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Hilton Faria da Silva, reforça as irregularidades feitas durante todo o processo.

– Quando desapropriou, indenizou-se os detentores de título e procedeu-se a venda a grandes produtores. Não foi dada oportunidade de compra para os pequenos agricultores que lá residiam há décadas.

Além disso, o decreto autorizando a desapropriação da área, publicado em 8 maio de 1997 pelo então governador Siqueira Campos, carece de legalidade. Segundo o jurista Fernando Scaff, especialista em direito agrário e professor da Universidade de São Paulo, este decreto é inconstitucional.

– O governo do Estado não pode desapropriar áreas com a finalidade de tornar imóveis rurais improdutivos em produtivos. Quem deve fazer isto, por disposição constitucional, é a União, através do Incra.

Kátia Abreu

A ministra Kátia Abreu, que na época era presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Tocantins foi contemplada com o primeiro lote do Projeto Agrícola Campos Lindos. Na certidão, registrada no Cartório de Imóveis da cidade, consta que a ministra pagou na época R$ 27.914,00 por uma área de 1.268 hectares.

Nove anos depois de ter comprado a fazenda para a qual deu o nome de Ouro Verde, Kátia Abreu vendeu a propriedade por R$ 4,4 milhões para a Sollus Mapito Participações, empresa que pertence a um fundo internacional de investimento.

Em nove anos, o projeto de desenvolvimento agrícola rendeu à atual ministra da Agricultura o valor de R$ 3.565,00 por hectare, uma valorização de 16.000%. No momento da compra, Kátia Abreu pagou pelo mesmo hectare apenas R$ 22,00. Os detalhes do negócio, realizado no dia 25 de março de 2010, estão registrados no Cartório de Registro de Imóveis de Campos Lindos.

Outros dois lotes adquiridos por meio do mesmo projeto agrícola foram vendidos pela ministra Kátia Abreu para a Sollus: um de 195 hectares, pelo valor de R$ 698 mil; e outro de 74 hectares, por R$ 264 mil. Somando os valores das três áreas, a ministra da Agricultura recebeu R$ 5.368.000,00 pela vendas das terras em Campos Lindos.

A valorização se explica pelos investimentos em infraestrutura que chegaram à região junto com o projeto de desenvolvimento agrícola.

– O hectare de terra ali vale muito hoje porque foi montada toda uma infraestrutura para produzir soja. As estradas asfaltadas, foi aberta estrada nova, colocada energia elétrica com o Luz para todos. Então a terra valorizou muito nestes anos – aponta o ouvidor do Incra, Hilton Faria da Silva.

Os amigos do rei

A ministra Kátia Abreu não foi a única contemplada com a oportunidade de ouro. Outros políticos foram beneficiados com a desapropriação das terras no norte do Tocantins. Estão na lista um ex-ministro da Agricultura, um ex-presidente da Infraero e ex-prefeitos de municípios do Tocantins e Maranhão.

O ex-ministro da Agricultura Dejandir Dalpasquale, já falecido, na época foi contemplado com dois lotes. Pelo maior deles, de 1.695 hectares pagou R$ 37,3 mil. Anos depois, a mesma área foi avaliada por R$ 2,3 milhões, valor declarado pelo ex-ministro como patrimônio para entrar numa sociedade empresarial.

Por um lote bem menor, de 402 hectares, o ex-ministro desembolsou R$ 8,8 mil. A área, mesmo tendo 1.200 hectares a menos, também foi avaliada anos mais tarde por R$ 2,3 milhões.
O ex-presidente da Infraero e atual presidente da Sociedade Brasileira de Direito Espacial, brigadeiro Adyr da Silva comprou 1.530 hectares por R$ 33,9 mil no ano de 2000. Dez anos depois, vendeu o lote pelo mesmo valor comprado.

Jonas Demito, que comprou 1.642 hectares por R$ 36,1 mil é ex-prefeito de Balsas, no Maranhão. Após 11 anos, ele vendeu o mesmo lote por R$ 245 mil. José Wellington Martins Belarmino, ex-prefeito do município de Pedro Afonso, adquiriu 773 hectares por R$ 17,2 mil, seis anos depois vendeu o lote por R$ 80 mil.

Outro político beneficiado foi Emiliano Pereira Botelho, na época presidente da Companhia de Promoção Agrícola (Campo). Por 334 hectares, Botelho pagou R$ 8,6 mil.

– Neste projeto se pode questionar bastante a opção política do Estado. A Constituição determina que os programas de acesso à terra devem ter uma política de inserção do homem do campo, de privilégio ao pequeno agricultor, de promoção da reforma agrária. Causa estranheza um programa destinado a grandes produtores rurais com enorme gasto de dinheiro público – aponta o defensor agrário Pedro Gonçalves.

 

Resposta dos envolvidos

Por telefone o ex-governador José Wilson Siqueira Campos rebateu as acusações. Ele disse que o Estado não realizou uma reforma agrária e, por isto, a desapropriação obedeceu o que diz a Constituição. Ele alegou, ainda, que não houve beneficiamento de políticos e que a escolha dos contemplados foi técnica, uma vez que todos eram produtores rurais. Siqueira Campos também afirmou que nenhum posseiro foi prejudicado com a desapropriação, pois as áreas onde eles moravam não foram afetadas.

Por meio de sua assessoria, a ministra Kátia Abreu disse que não vai comentar sobre o assunto.

Enrosco jurídico

A mais recente fronteira agrícola do Brasil vive uma disputa agrária há pelo menos 30 anos. A história do Projeto Agrícola Campos Lindos, no Tocantins, é um complicado enredo cheio de títulos, posses, processos judiciais e injustiça social.

Os primeiros a chegar foram os posseiros, há cerca de 70 anos. Depois, produtores rurais vieram desbravar a nova fronteira. Por último, políticos e pessoas ligadas ao ex-governador Siqueira Campos foram beneficiadas por uma contestada desapropriação de terras.

Antes da criação de Tocantins, em 1988, o Estado de Goiás demarcou e vendeu as terras da região de Campos Lindos para 35 produtores do Sul do país, ignorando a existência dos posseiros que já viviam no local. A maioria dos compradores, no entanto, não foi morar nas terras.

Poucos anos depois, estes proprietários viram suas terras serem desapropriadas pelo governo do recém-criado Estado do Tocantins, através do decreto que considerou as terras improdutivas e de utilidade pública. O decreto determinando a desapropriação de 105 mil hectares foi publicado em 1997, e os novos lotes foram vendidos por cerca de 10% do valor de mercado. Entre os beneficiados pela distribuição dos lotes está um grupo de políticos próximos ao então governador Siqueira Campos, como a atual ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Kátia Abreu.

O Estado do Tocantins indenizou os proprietários desapropriados – aqueles que tinham os títulos das terras que compõe os 105 mil hectares do Projeto Agrícola Campos Lindos. Parte dos posseiros se mudou para outras áreas próximas e, com o tempo acabaram desistindo de permanecer nas terras. Outros resistiram e permaneceram. E outros foram simplesmente despejados.

Um processo todo feito às avessas, na opinião do procurador da república no Tocantins Álvaro Lotufo Manzano. O procurador diz que o estranho deste processo é que esta área já havia sido titulada pelo Estado de Goiás antes da criação do Tocantins. O natural seria que o governo tivesse procurado os antigos proprietários para ver se eles tinham interesse em desenvolver o projeto Campos Lindos.

– Não havia necessidade do Estado mudar os proprietários para fazer o projeto, se poderia incentivar os antigos proprietários a desenvolver este projeto. É como se tirasse um para colocar outro sem uma motivação muito clara para isto. E para estes novos proprietários não houve seleção pública, processo, licitação para venda destes lotes – analisa Manzano.

A reação dos proprietários

Inconformados, os antigos proprietários da terra questionaram o governo do Estado na Justiça sobre as perdas que tiveram com as indenizações consideradas como abaixo dos valores do mercado. Pelos seis mil hectares que perdeu, o produtor Paulo Roberto Kliemann, por exemplo, recebeu apenas R$ 54 mil em fevereiro de 1998. Nesta época, um hectare na região valia cerca de R$ 150, Kliemann recebeu R$ 9 por hectare.

Em 2010, a Justiça Estadual deu ganho de causa aos ex-proprietários. Como o título de domínio das terras previa que os novos proprietários deveriam ratear proporcionalmente o remanescente do valor da desapropriação, o procurador-geral do Estado do Tocantins Haroldo Carneiro Rastoldo notificou Kátia Abreu e a empresa Sollus a pagarem os R$ 8 milhões de indenização a Kliemann.

A decisão em primeira instância não foi reexaminada pelo Tribunal de Justiça do Tocantins, como prevê a lei. O governo do Estado recorreu da decisão e, agora, o processo vai será analisado pelo Supremo Tribunal Federal. A indenização a Kliemann foi suspensa. A situação é a mesma para os outros proprietários que entraram na Justiça contra a desapropriação.

A situação dos posseiros

A situação dos posseiros é a mais frágil e confusa dessa história toda. Para a Defensoria Pública Agrária, está claro que houve violação de direitos humanos na desapropriação da área, motivo pelo qual nos próximos dias a Defensoria deve encaminhar uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denunciando o caso.

De acordo com o defensor agrário Pedro Alexandre Conceição Aires Gonçalves, há 180 famílias morando na área. Após a implantação do projeto agrícola, a Associação Planalto, que representa os novos proprietários, verificou que várias delas ocupavam a área há décadas de forma tradicional.

Em razão disto o próprio Instituto de Terras do Tocantins passou a reconhecer e titular pequenas propriedades para famílias de posseiros que se enquadravam como populações tradicionais – chegou a titular 78 delas com uma média de 100 hectares para cada.

Mas outras 82 famílias de posseiros reivindicam o mesmo direito – muitas inclusive estão morando na área de reserva legal do projeto agrícola. A Associação Planalto conseguiu na Justiça uma ordem para remover estas famílias da área. Mas, após a intervenção Defensoria Pública Agrária e do Ministério Público Federal, chegou-se a um consenso que algumas delas são, também, populações tradicionais.

A ação de despejo foi parada e a procuradora da república no Tocantins Ludmila Vieira de Souza Mota encomendou um estudo para verificar quais delas são realmente populações tradicionais. O laudo antropológico deve sair a qualquer momento.

Por fim, há um número indefinido de posseiros que foram simplesmente despejados da área. Ninguém sabe ao certo quantos são, para onde foram e nem se algum dia receberão algum tipo de reparação pela injustiça.