Os contornos jurídicos da Constituinte Exclusiva: o desafio da reforma política

Há uma evidente insatisfação popular em relação ao sistema político. Não cabe ignorar a realidade apresentada para sustentar conceitos estanques.

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Por Gladstone Leonel Junior*

“Cui licet quod est plus, licet utique quod est minus”

“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”

A expressão em latim trazida na epígrafe, e recorrentemente aclamada no meio jurídico, diz muito a respeito do debate que esse artigo apresenta: “Quem pode o mais, pode o menos”. A segunda expressão na sequência, também não aparece por acaso.

Por que essa expressão em latim vem a calhar nos dias de hoje? Ela surge para afirmar a possibilidade de uma constituinte exclusiva para reformar o sistema político do país.

Em um período de crise de representatividade extrema e fragilidade das instituições políticas, o Congresso Brasileiro apresenta uma proposta infame de Reforma Política que traz um discurso de mudança, mas tem o ímpeto de aprofundar as mazelas democráticas existentes. Isso, porque não se propõe a nenhum momento enfrentar os temas centrais de uma reforma política séria e sensível aos apelos do povo.

Esse cenário político demonstra que esse Congresso Nacional e seus deputados/as com mandatos vigentes, além de não possuírem interesse, não farão uma Reforma Política necessária ao melhor funcionamento da sociedade, nem capaz de reestruturar as bases democráticas do Estado.

Daí retomamos o debate acerca da Constituinte. Esses mesmos políticos, alguns juristas e os grupos econômicos que estão por trás desses representantes, rechaçam de maneira veemente as mudanças do sistema político através de uma constituinte exclusiva. Os argumentos utilizados são diversos. Por vezes salientaram que seriam eles os “verdadeiros” representantes do povo e diante disso não haveria necessidade de participação dos sujeitos os quais eles representam (ou seja, do povo); há também a narrativa da inconstitucionalidade de uma constituinte exclusiva pela falta de espaço jurídico para isso (1) e por não se ter uma constituinte “pela metade” (2); ou em decorrência de uma desmoralização e negação do sistema representativo (3); ou mesmo do risco inerente a essa iniciativa no sentido de perda de direitos(4).

Diante desse rechaço, cabe destacar, salientando os aspectos jurídicos, os pontos principais do cabimento de uma constituinte exclusiva para fazer um Reforma Política com “P” maiúsculo. Isso é o que tratarei de fazer agora:

01) Retomemos a corriqueira expressão inicial usada no mundo do direito, “quem pode o mais pode o menos”. O fato do poder constituinte originário, em seu aspecto conceitual, não prever quaisquer limitações às matérias que poderá tratar, (pois não ampara seu fundamento de legitimidade a nenhuma outra força que não a si próprio e à soberania popular que o impulsionou) não inviabiliza que ele mantenha parcela jurídica do que entenda relevante. Da mesma forma, já cai por terra essa argumentação da impossibilidade da limitação temática da constituinte, caso a convocação de uma constituinte se dê por um poder constituinte derivado, o qual implicaria em prerrogativas que podem modificar, implementar ou retirar dispositivos, ou seja, limitam o poder reformador. Assim, se a forma usada para convocar uma constituinte exclusiva fosse uma emenda constitucional, desde que não ferisse cláusulas pétreas (as quais não podem ser reformadas) seria plenamente realizável. O que se observa nessa situação, é que uma vez admitida a possibilidade de alteração ilimitada da Constituição, certamente problema algum haveria em mudanças mais limitadas, pois como afirma o brocardo jurídico: “quem pode o mais, pode o menos”.

02) Agora, retomemos a segunda expressão usada na epígrafe, onde salientou-se que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Essa não é uma frase retórica, mas um dispositivo constitucional exposto no parágrafo único, artigo primeiro da Carta Magna. Tanto a presidenta da República eleita por votação majoritária, os deputados/as e os senadores/as eleitos como representantes no Congresso, quanto o povo, legitimado para incidir diretamente nos rumos do país, através de mecanismos como o plebiscito, são atores políticos com poderes garantidos. Todos esses são sujeitos atuantes na materialização constitucional. Eles darão vida às iniciativas que permitam o aperfeiçoamento do exercício democrático e possuem legitimidade para isso. Assim, seria desnecessário, além de configurar uma exacerbação positivista exigir que algum dispositivo constitucional expressamente previsse a possibilidade de uma constituinte exclusiva. Não por acaso, a Constituição explicita: “Todo o poder emana do povo”. Nesse caso, querer é poder!

03) Há importância em ser uma constituinte exclusiva e temática. O fenômeno (da convocação de uma constituinte) deve ser abarcado pelo conceito (de poder constituinte), e não o contrário. O contexto político é dinâmico e seria impensável a letra da lei acomodar todas as possibilidades decorrentes do mundo jurídico. O fato de não haver uma literalidade do conceito “constituinte exclusiva”, não retira sua legitimidade e materialidade, conforme já exposto. Certamente, a dificuldade de controle do conteúdo do tema a ser debatido na constituinte é real no momento da disputa política, sobretudo, após a realizada a convocação pelo Legislativo e legitimada pelo povo através do plebiscito. Embora, essas tensões se façam presentes e sejam comuns a vida de um Estado Democrático de Direito, onde o sistema de freios e contrapesos irá demarcar a independência dos poderes e os mecanismos institucionais e culturais deverão ser capazes de garantir o funcionamento de uma democracia constitucional no Brasil com todas as suas tensões. Por fim, ao tratar de uma constituinte exclusiva, os representantes teriam seus mandatos limitados pelo próprio ato convocatório devendo ser dissolvido o mandato após a realização dos trabalhos da Assembleia constituinte. Diferentemente do congressista eleito para um mandato mais amplo e regular, o qual possui todas as prerrogativas constitucionalmente devidas para o exercício desse mandato.

04) Cabe destacar, os riscos jurídicos que a Constituinte apresenta. A arte, por vezes, apresenta as melhores saídas ou simplesmente auxilia no direcionamento de determinadas questões geradoras de angustias e incertezas. Na canção, Como dizia o poeta, Vinícius de Moraes, dispara em um trecho de seus versos:

“Quem já passou/Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá/Pra quem se deu
Pra quem amou, Pra quem chorou, Pra quem sofreu”

Nessa passagem, o poetinha ilustra os riscos da vida e a necessidade da ousadia em determinado momento. De fato, nada é realizado sem riscos, por menores que sejam, eles existem. Contudo, certas ocasiões exigem uma postura ativa, pois a omissão também é um risco de piorar situações em que a ação era necessária. O que se pode fazer é prevenir esses riscos dentro do possível e passar do campo da arte para o direito. Nesse sentido, considerando a força da convocação da constituinte exclusiva semelhante a de uma emenda constitucional para esse fato político específico, os direitos e as garantias fundamentais presentes ainda serão cláusulas pétreas não passíveis de mudança ou exclusão.

Ainda assim, se a constituinte vier através de um poder constituinte originário, pode ser reivindicada a teoria do “effet cliquet” ou no bom português “o princípio da vedação ao retrocesso”. “A origem da nomenclatura, em âmbito jurídico, é francesa, onde a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso se aplica no sentido de que não é possível a revogação de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente.(6)” Além das liberdades e direitos fundamentais, a doutrina se estende à vedação ao retrocesso social, seja na Constituição vigente ou nas vindouras, salienta Canotilho.(7) Logo, qualquer tentativa de retirada de direitos fundamentais em uma constituinte ou nesse caso, uma constituinte exclusiva, pode ser rechaçada através de fundamentações jurídicas contemporâneas como essa.

05) Quanto às formas de construção de um plebiscito constituinte para a reforma política, já trouxemos algumas possibilidades ao texto. Alguns juristas entendem que esse tema pode vir por meio de matéria de revisão constitucional. Essa posição é verificada em uma das análises feitas por Wadih Damous, ex-presidente da OAB/RJ(8); Além dela, a constituinte exclusiva, pode ser reivindicada por meio de um Poder constituinte originário, como destaca o professor José Luiz Quadros Magalhães. Ambas possibilidades, talvez sejam mais complexas à luz de uma conjuntura política, não tão favorável aos avanços que se pretende. Uma aposta para além dessas apresentadas seria a de considerar o Poder Constituinte Derivado dando continuidade à Constituição de 1988. No entanto, a Constituinte poderia ser convocada de maneira plebiscitária e atingiria só uma parcela relacionada a temática que afeta o sistema político. Essa seria a típica ação de um órgão reformador, mas conduzida por deputados com mandatos exclusivos e em decorrência de um plebiscito oficial. Após realizadas as mudanças decorrentes da constituinte exclusiva, as alterações poderiam ser confirmadas por um referendo à população, robustecendo o caráter democrático da ação política.

Certamente, a conjuntura política atual traça cenários delicados. Um dos alvos preferenciais do Congresso, do Judiciário e da grande mídia tem sido o Partido dos Trabalhadores, que preside o governo federal há mais de 12 anos por meio de uma política de conciliação de classes. Política essa incapaz de resolver as grandes questões estruturais do Estado e da sociedade, além de se demonstrar insuficiente para encarar um processo de radicalização e acirramento da luta de classes, tal qual ocorre. Ademais, ao tratar da reforma política, é fato que ela precisa enfrentar a influência exagerada do poder econômico, as corriqueiras coligações partidárias oportunistas e o problema dos partidos fisiológicos com pouca densidade programática.
Conforme destaca Luiz Otávio Ribas, a proposta da Constituinte aqui defendida deve ser:
a. Soberana: originária, sem limites no ordenamento vigente;
b. Exclusiva: eleita exclusivamente para fazer a reforma e se dissolver;
c. Temática: parcial ou autolimitada para fazer somente a reforma política.

Desde 2013 há uma evidente insatisfação popular em relação ao sistema político representativo. Não por acaso as manifestações nas praças e ruas se fizeram mais frequentes e as tensões políticas aumentaram. Nesse momento, não cabe ignorar a realidade apresentada para sustentar conceitos estanques e cômodos aos setores políticos encastelados nesse sistema.

O jurídico e o político andam juntos, nem sempre de mãos dadas, mas numa dinâmica tensa e dialética, a qual justifica a própria existência de ambos. Esse conflito inerente, não é razão para não se alçar novos fronts, deve sim dar vez a uma constituinte achada na rua, nas demandas populares. Mantendo a linha das expressões em latim, não temos mais tempo a perder:

Extremis morbis, extrema, exquisita remedia optima sunt, ou seja,
Para grandes males, grandes remédios.

Notas:

1- Referindo-se a fala do ministro do STF, Gilmar Mendes. “Brasil dormiu como Alemanha e acordou como Venezuela”

2- Referindo-se a fala do ex-ministro do STF, Carlos Velloso. “Juristas questionam propostas de Constituinte para reforma política”.

3- Referindo-se a fala do vice-presidente da República Michel Temer. “Não à constituinte exclusiva”.

4- Referindo-se a fala do presidente do Conselho Federal da OAB, Marcos Vinícius Coelho.  “Constituinte exclusiva é desnecessária e perigosa”.

5- Ver PEREIRA, Thomaz Junqueira. Conjur. http://www.conjur.com.br/2014-mai-24/ideia-constituinte-exclusiva-mostra-tensoes-entre-direito-politica”_ftn14.

6- LEITE, Ravênia Márcia de Oliveira. Do efeito cliquet ou princípio da vedação de retrocesso, Revista Jus Vigilantibus, 13 de maio de 2009.

7- CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002.

8- DAMOUS, Wadih. Constituinte parcial é possível e necessária. In: RIBAS, L. O. Constituinte Exclusiva: um outro sistema político é possível. São Paulo, Expressão Popular, 2014. 

9- MAGALHÃES, J. L. Q. Entendendo o poder constituinte exclusivo.  In: RIBAS, L. O. Constituinte Exclusiva: um outro sistema político é possível. São Paulo, Expressão Popular, 2014.

10- Reforma política: Constituinte e participação popular. In: IANONI, Marcus. Reforma Política Democrática: temas, atores e desafios. Perseu Abramo: São Paulo, 2015. 

*Doutor em Direito pela Universidade de Brasília, realizou estágio doutoral na Facultat de Dret de la Universitat de València, Espanha, professor de Direito da Universidade Católica de Brasília, um dos autores do livro Constituinte Exclusiva: um outro sistema político é possível, publicado pela editora Expressão Popular e O Novo Constitucionalismo Latino-americano: um estudo sobre a Bolívia (no prelo) pela editora Lumen Juris.